Primeiros anos de (Des)governo
Introdução
O ponto de partida deste livro foi a publicação pelo site A Terra é Redonda de uma série de artigos sobre diferentes aspectos do governo Bolsonaro no momento em que se completou a metade do mandato do presidente.
Os autores dos ensaios são ativistas políticos, intelectuais e professores universitários das mais diversas áreas do saber acadêmico: historiadores; filósofos; cientistas políticos; sociólogos; juristas; economistas; jornalistas; médicos sanitaristas; pedagogos; críticos de artes, de cinema e de literatura; etc.
Os artigos debruçam-se sobre distintos campos da administração e gestão governamental, atentos aos seus impactos sobre a esfera pública, a vida social e as subjetividades individuais.
O resultado constitui, assim, um diagnóstico multifacetado da gestão governamental e do movimento político denominado “bolsonarismo”.
A situação atual é explicada, muitas vezes, por meio de um recorte histórico que busca compreender as fontes subterrâneas da crise econômica e política que possibilitou o golpe de 2016 e suas metamorfoses no atual colapso social, sanitário e institucional.
Alguns autores optaram por remodelar o seu texto, mas a maioria preferiu mantê-lo tal como foi publicado à época.
Esperamos que o leitor possa extrair daqui reflexões importantes para este momento tão difícil e complexo da vida brasileira. Boa leitura!
Ricardo Musse
Paulo Martins
Organizadores
Prefácio
Esse livro é, inicialmente, a expressão da capacidade de intervenção e análise da universidade brasileira diante de um dos mo- mentos mais sombrios de nossa história. Nele, as leitoras e leitores encontrarão textos analíticos e de intervenção a respeito do processo de explicitação do colapso da democracia formal brasileira a partir da ascensão de Jair Bolsonaro. Enquanto o Brasil confrontava-se com o fim do sistema de pactos da Nova República, com o retorno das matrizes do fascismo nacional, com a explicitação da guerra civil não declarada do estado policial contra as populações submetidas historicamente à pauperização e desaparecimento, a universidade compreendeu que era tarefa sua intervir, alertar e mobilizar. Nesse sentido, ela lembrou daquilo que lhe define, a saber, ser o espaço de exercício da crítica implacável do existente, na crença de que tal exercício é condição fundamental para que a sociedade encontre forças para criar novas situações e se confronte com a verdade de sua condição, por mais dura que ela seja.
Quando o governo Bolsonaro subiu à cena política, um de seus alvos reiterados e preferenciais foi a universidade brasileira. Contrariamente àqueles que afirmavam ser a universidade brasileira espaço estéril, produtora de um saber que não teria contato com as fontes vivas da sociedade, esse governo entendeu muito bem a força do que se produz em nossos campi, assim como entendeu a transformação que está a se operar a partir da integração irreversível das camadas populares a nosso corpo discente e docente. Na universidade, gesta-se novas potencialidades de configuração da sociedade brasileira. Por isso, para governos como esse, ela deve ser quebrada e calada.
Em sua luta contra a universidade, o governo Bolsonaro não temeu mobilizar discursos e práticas que nos remetem aos mais dramáticos momentos do fascismo histórico. As acusações de “marxismo cultural”, as “denúncias” de “permissividade sexual” entre nós podem parecer dignas de anedotário, mas elas tem método. Elas ressoam as acusações de “bolchevismo cultural” e “bolchevismo sexual” que já foram ouvidas nos anos trinta do século passado. Pois elas indicam focos reais de luta.
Toda transformação social efetiva começa por mudar o lugar natural dos corpos, criar novas circulações e visibilidades de desejos. E a universidade brasileira tem um papel importante nesse processo, ao forçar debates sobre as estruturas disciplinares da vida social e a maneira com que os corpos são sujeitados, classificados e construídos. Mas toda transformação social efetiva começa também por questionar as estruturas de reprodução material e seus circuitos de riquezas. Isto, a universidade brasileira fez desde sua consolidação, através das mais diversas tradições e perspectivas.
A consciência de habitarmos uma sociedade cuja célula fundamental é o latifúndio escravagista primário-exportador, com suas divisões ontológicas entre dois tipos de sujeitos, a saber, aqueles re- conhecidos como “pessoas” e aqueles postos na condição de “coisas” foi uma arma que a universidade brasileira apontou contra aqueles que procuravam nos fazer acreditar que nossa sociedade saberia lidar com suas contradições em um ritmo tranquilo de conciliações.
Nesse sentido, há de se lembrar que as inúmeras conciliações que vimos nas últimas décadas foram incapazes de garantir transformações graduais e seguras. Sequer elas foram capazes de desarmar os setores militaristas e fascistas da sociedade brasileira. Nesse exato momento, o Brasil se debate com riscos concretos de derivas autoritárias ainda mais profundas. Em momentos como esses, as sociedades contam apenas com a plasticidade de sua revolta e a insistência na confiança em sua própria capacidade de criação. São exatamente nesses momentos que as universidades tornam-se mais importantes, que seu trabalho deve se tornar mais inegociável e irreconciliado. Livros como esse demonstram como várias gerações de pesquisadores, vindos de várias regiões do país são capazes de mobilizar sua sensibilidade se sentido de urgência para colaborar e lutar ao lado dos mais vulneráveis e espoliados.