quarta-feira, 18 de julho de 2007

A Eneida de Virgílio e a tradição épica ocidental

Virgil reading the ''Aeneid'' to Augustus and Octavia Kauffman, Angelica. Oil on canvas. 123x159 cm Germany. 1788 Source of Entry: Lazenki Palace, Warsaw. 1902

Paulo Martins


Antes de qualquer coisa, faço aqui um pequeno excurso. É comum, todas as vezes que começamos a ler o maior e melhor poema épico em língua portuguesa, Os Lusíadas, nosso professor de literatura associar a idéia de Renascimento à tradição cultural greco-romana e, nesse caso específico, à tradição literária da poesia épica, mostrando o quanto Homero é importante como modelo que foi seguido nesse momento histórico dos séculos XV e XVI. Realmente, não há como negar que as epopéias homéricas, A Ilíada e A Odisséia, como frutos e flores de uma civilização são marcos incontestes do mundo grego, afinal, até mesmo Platão, séculos depois da composição desses dois poemas, afirmara, tratando de Homero em seu livro A República, que “este poeta ensinou a Grécia”.
Nesse sentido, se o poeta grego é o cerne da civilização helênica, também o seria para os romanos e, por conseqüência, para nós, ocidentais. Contudo, a poesia grega homérica possuía uma característica importante e diferenciada se comparada, por exemplo, ao Camões épico: a oralidade. Isto é, aquela poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C. e transmitida oralmente por cantores (os aedos) antes de ser consignada pela escrita a partir do século VII a.C. Tal propriedade é importantíssima, pois determina características formais no poema, a saber: as repetições sistemáticas, a presença de epítetos (aspectos exemplares das personagens), as formulações lapidares que percorrem os milhares de versos das obras. Assim, se por um lado Homero é semelhante a Camões, por outro ele se distancia gravemente do mesmo, uma vez que o meio, pelo qual seus poemas são transmitidos, era diverso: o primeiro a voz; o segundo, a escrita.
Bem, se proponho Homero, em certa medida, distante de Camões, a pergunta mais óbvia seria: Quem é o êmulo do poeta português na Antigüidade Clássica? E a resposta é imediata e direta: Virgílio. Tal afirmação seria até certo ponto irresponsável se não existisse um argumento de autoridade que a respaldasse. Todos sabem que Dante Alighieri (1265-1321), o autor da Divina Comédia, no século XIV, é um dos responsáveis pela grande síntese da história literária ocidental, ao associar a cultura medieval católico-cristã ao mundo clássico greco-latino, afinal, a idéia de paraíso, purgatório e inferno é, a um só tempo, cristã e pagã. Sem falarmos da presença de uma personagem fundamental no texto de Dante que é seu acompanhante ao mundo dos mortos: Virgílio. Vejam, não é Homero que o acompanha! Ainda hoje, também, nesse nosso mundo pós-moderno, “pós-tudo” ainda ecoa a voz de um poeta e crítico norte-americano radicado na Inglaterra nos anos 20 do século XX, T.S. Eliot (1888-1965). Ele nos informa sobre importância de Virgílio para a cultura ocidental ao propor: “Nenhuma língua moderna pode pretender produzir um clássico no sentido que considero Virgílio um clássico. O nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é Virgílio.”
Outras indagações poderiam surgir a partir desta conclusão de Eliot que assumo como minha: O que fez Virgílio então para receber tamanha dignidade? O que produziu? Como e quando escreveu?
Nascido em Mântua, norte da península itálica, em 70 a.C., Virgílio produziu três grandes obras poéticas: As Bucólicas, As Geórgicas e A Eneida. Sua época é a do início do Império, isto é, momento em que a República romana sucumbe como conseqüência das guerras civis e da ditadura de Júlio César. Otávio Augusto assume a função de Príncipe e, a partir daí, se estabelece uma sucessão, em certa medida, hereditária e que só irá se extinguir com a queda do Império do ocidente, quinhentos anos mais tarde (em 476 da nossa era). Virgílio como escritor está associado à imagem de Augusto cujo lugar-tenente, Mecenas, aplica-se na constituição de um círculo cultural que serve ao poder, produzindo propaganda para feitos e poder do novo líder. Nesse mesmo grupo, surgem poetas como Propércio e Horácio (tão importantes quanto Virgílio na tradição literária ocidental).
A Eneida, a despeito do fato de ser uma poesia encomendada com a finalidade de exaltar o poder de Augusto, inaugura uma nova possibilidade de constituição da épica, tendo como meio a escrita e, ainda, tendo por trás de si uma tradição literária que inclui Homero além dos poetas da época helenística. Constituída por 12 cantos, a épica virgiliana trata, como argumento, da fundação de Roma e tem como personagem principal Enéias, guerreiro troiano que foi incumbido pelos deuses a fundar a nova Tróia, Roma. Em sua saga, Enéias percorre um longo caminho até sua chegada à região do Lácio, percurso que, do ponto de vista da estrutura do poema, dura exatamente os seis primeiros cantos. E, assim, ao chegar ao local que lhe fora determinado, age, seguindo sua sina, empreendendo guerras de conquista, afinal é um herói e como tal está predestinado a combater. E essa ação heróica percorre os seis cantos finais da epopéia.
Se observarmos mais atentamente o enredo, notaremos que ele está plenamente de acordo com a proposição do poema, afinal diz Virgílio logo no primeiro verso “Arma uirumque cano” (“As armas e o homem canto”) e isto significa que o poema tratará, de um lado, das desventuras de Enéias (homem) e, de outro lado, das campanhas bélicas empreendidas por ele (armas). Vale lembrar que, para os poetas romanos, a imitação (a mimese) é fundamental, portanto não seria possível produzir um texto épico que desconsiderasse Homero. E o poeta de Mântua, engenhosamente, estabelece a conexão de seu poema com a tradição, afinal de contas, essas desventuras do herói relacionam-se com o seu vagar pelo Mar Mediterrâneo, exatamente aquilo que ocorre na Odisséia, quando Ulisses é posto a realizar tarefas semelhantes até conseguir chegar aos braços de Penélope, sua fidelíssima esposa. Já na segunda parte do poema (os seis cantos finais) estão coadunados com o outro poema homérico (A Ilíada), uma vez que o fulcro é guerra. Curioso é observarmos que essa mesma estrutura permanece viva na épica moderna de Camões. Não é por acaso que em Os Lusíadas o homem Vasco da Gama e suas desventuras são decantadas.
Na verdade, não há, na literatura dita ocidental, nenhum poema épico que não se apóie na estrutura d’A Eneida e segundo Curtius “Para todo o fim da Antigüidade, para a Idade Média, como para Dante, é Virgílio ‘o altíssimo poeta’”.