quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Hora e Vez do Choro Olímpico

Por Paulo Martins


"skiás ónar ánthropos"

"O homem é a sombra de um sonho"
Píndaro


Os Jogos são a dimensão humana dos deuses. Neles, nos jogos, os homens sonham atingir os limites humanos e, se possível, superá-los, emulando com próprios deuses. Esses, sim, capazes de realizar tarefas inimagináveis. “Mais alto, mais forte e mais rápido” (altius, fortius, citius), lema olímpico, cunhado por Henri Martin já na modernidade, impõe aos atletas olímpicos uma responsabilidade superlativa.

A atual medalha olímpica comporta a deusa Vitória, em grego Niké – note-se o acento agudo no “e”, o que a distancia da “marca”, para não dizer, do real símbolo moderno dos Jogos. Ela, a Vitória, em sua representação antiga e mais comum era conduzida por Palas Atena, a deusa da sabedoria, da guerra, do discernimento... Sua antípoda era Týche, divindade do Acaso, do Inelutável, daquilo que não depende de nós e apenas, da espera, da possibilidade ... do “quem sabe?”. Ela portava uma cornucópia e um timão que simbolizavam ao mesmo tempo, a fartura e a condução da vida humana, respectivamente. Não por acaso tinha seus olhos vendados, pois seus desígnios eram distribuídos aleatoriamente.




Niké de Éfeso

Assistindo, como boa parte dos brasileiros, aos Jogos Olímpicos de Pequim e ao seu final, notei que o Brasil não é profícuo em atletas regidos pela deusa parceira da sabedoria, antes são norteados pelas benesses de Týche. Foi assim com Jade, Hypolito, Murer, Derly e Larissa. Assim também, com o basquete feminino que joga só bem, mas não vence, com o Vai Thiago, que só vai no Brasil, com o handball, com o salto triplo de Jardel, com a calamidade institucional do boxe olímpico e do levantamento de peso. Não me venham dizer que estar nas quartas ou oitavas de final é bom ou que o que interessa é competir..., pois, ao atleta, que é considerado "de alto rendimento", o que realmente vale é o pódio.



A triste queda de Hypolito - Foto de Marcelo Pereira/Terra

Mas por que somos regidos pelo Acaso, por Týche? A resposta é imediata. Não há sabedoria esportiva no Brasil. De um lado, para sermos vencedores e, portanto, ligados a Niké, necessitamos de atitude de vencedores e essa não nasce conosco, ela deve ser cultivada e cultuada e, para isso, os exemplos se avolumam a cada Olimpíada, basta olharmos para Phelps, para Bolt, para Cielo... De outro, precisamos de gestores esportivos que realmente desejem que os atletas sejam vencedores e não eles mesmos, os ganhadores. Necessitamos de uma política de esporte e não de políticos no esporte. Não precisamos de Nuzmans, de Orlandos, de Teixeiras, aliás, não lhes queremos. Do que precisamos e o que queremos? Escolas públicas de ensino fundamental e médio que garantam a prática sistemática do esporte. Espaços públicos dedicados a ele e para todos que o desejem.


Týche

Jade: duas quedas - Foto: Marcelo Pereira/Terra

Note-se que em alguns esportes isso já acontece. Não há como negar que nossa tendência à Vitória no vôlei masculino e feminino (indoor ou areia) e, a partir dessa Olimpíada, no Cielo que não é do Brasil, é dos Cielo, no futebol feminino que contra todos (con)vence, no Scheidt, o amigo dos ventos, na Maggi, de pés alados, e de outros poucos que aprenderam a ser devotos da deusa que interessa e dar pouca atenção àqueles que querem usar seus feitos para promoção política e econômica.



Maggi de pés alados - Foto: Marcelo Pereira/Terra

Cielo dos Cielos - Foto: Getty Images

Não quero aqui desmerecer o trabalho, o esforço, a dedicação de todos esses atletas brasileiros, antes desejo externar que a expectativa criada em torno deles é desmesurada se observadas as reais condições de suas habilidades no concerto mundial dos esportes. Digo que parte da mídia, mormente a Vênus prateada, é campeã em “vender” certa possibilidade de desempenho que não corresponde à realidade concreta. Digo que certos atletas, mesmo com condições de desempenhar bom papel, não são formados dentro de uma cultura vencedora. Digo que a cartolagem e os governantes não estão preocupados com o esporte de base. E diante disso, no Brasil, não somos regidos por Niké, mas por Týche.

As Bucólicas de Virgílio

“Phyllidis hic idem teneraeque Amaryllidis ignes
bucolicis iuvenis luserat ante modis.”

“Aquele mesmo, ainda rapaz, cantara os ardores de Fílis
e da tenra Amarílis, em versos bucólicos.”
Ovídio, Tristia 2, 537-8




Por Paulo Martins
Nas aulas de Literatura muitas vezes o professor, ao falar acerca do Arcadismo, propõe como uma das características desse estilo de época “o bucolismo” (boukólikos em grego significa algo relativo a bóus – boi), associado a duas expressões latinas: locus amoenus (lugar aprazível) e fugere urbem (fugir da cidade). Assim a poesia árcade, cuja essencialidade está centrada na retomada de valores “estético-literários” da Antigüidade Clássica greco-romana, torna-se mais clara e óbvia para os leitores contemporâneos pelo simples motivo de revelar certos preceitos nomeados numa língua extinta, o latim.

Contudo, a simples citação dessas características soa como receita ou etiqueta vazia de conteúdo, porquanto estão absolutamente descontextualizadas de sua origem: o mundo antigo greco-latino. Em que se pese aqui o seu caráter romântico, isto também pode ser observado na música erudita, se observamos a 6ª Sinfonia de Beethoven, A Pastoral (1808), pois temos uma divisão assim proposta: “Despertar de sentimentos alegres diante da chegada ao campo” (1º Movimento), “Cena à beira de um regato” (2º Movimento), “Dança campestre” (3º Movimento), “A tempestade” (4º Movimento) e “Hino de ação de graças dos pastores, após a tempestade” (5º Movimento). Notemos que o compositor nada mais fez do que relacionar os conceitos literários antigos (locus amoenus/fugere urbem) à vida pastoral.


Beethoven por Karl Joseph Stieler - 1820

Tais referências, entretanto, não são uma exclusividade desse professor de Literatura/Música, antes assolam também descontextualizadas e, talvez, com maior freqüência, ao professor de História quando trata desse mesmo período (o século XVIII), propondo culturalmente a relevância das Academias que surgem nesse período, ou ainda, quando observa a Inconfidência Mineira e fala do lema dos inconfidentes: libertas quae sera tamen (liberdade ainda que tardia).

Certamente, a vida seria mais simples aos professores de Literatura e de História se mostrassem que o século XVIII, antes de ser devedor do Mundo Clássico Antigo como um todo (e vale dizer que esse espectro temporal é vastíssimo, pois vai, pelo menos, do século IX a.C. ao século V d.C.) é, sim, calcado fundamentalmente em uma obra do mundo latino: As Bucólicas de Virgílio - autor d’A Eneida (Discutindo Literatura, 7 – março de 2006) e d’As Geórgicas. Essa obra se constitui como marco diferenciado da Antigüidade, pois que poucos foram os autores que se dedicaram a esse gênero específico. Nesse sentido, daquilo que nos restou do mundo antigo temos cronologicamente: Teócrito de Siracusa (310 – 250 a.C.), Virgílio (70 -19 a.C.) e Calpúrnio Sículo (século I d.C.). Entretanto a despeito da exigüidade de textos, o gênero “bucólico”, metonímica e tematicamente, tornou-se referência da “simplicidade” na literatura naquilo que ela se opõe à grandiloqüência.

As Bucólicas são compostas de dez poemas, escritos em hexâmetros, curiosamente o mesmo verso da poesia épica (seja de Homero, seja do próprio Virgílio). Digo que isso é curioso porque se o gênero bucólico é “humilde” (genus humile), formalmente, deveria se esperar um tipo de verso distinto daquele da elevação épica (genus altum).

Por seu turno, cada uma das bucólicas recebe o nome de écloga ou idílio (do grego eidón/imagem, eidýllion é um pequeno quadro) e tais termos referem-se basicamente à brevidade das cenas por eles descritas, assim As Bucólicas são, antes de tudo, o registro de pequenos quadros cujo motivo primeiro é a vida simples dos campesinos, dos pastores e pastoras em seu ambiente natural. Daí o próprio Beethoven ter chamado a atenção para o fato de ser sua sinfonia uma pintura, uma fantasia sobre a qual a audiência deveria imaginar cenas como que se a música pintasse um quadro.

Sob o aspecto da forma, os dez poemas, cuja extensão varia de 63a 110 versos, são marcados por uma regularidade estrutural diferenciada, isto é, os poemas ímpares são dialógicos, enquanto os pares são monólogos. Os diálogos são levados a termo por pastores de nomes gregos, propostos intertextualmente numa referência a Teócrito de Siracusa, e assim temos: Títiro e Melibeu (1ª écloga), Menalcas e Dametas (3ª écloga), Menalcas e Mopso (5ª écloga), Melibeu e Córidon (7ª écloga) e Lícidas e Méris (9ª écloga). A citação de Teócrito fica mais explicita quando na 4ª écloga, Virgílio propõe: “Ó Musas da Sicília, erga-se um pouco o nosso tom//nem todos prezam o arvoredo e os baixos tamarizes; //cantamos selvas; selvas sejam, pois, dignas de um cônsul” (Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos). Vale lembrar que Siracusa é uma cidade da Sicília.

Do ponto de vista da elaboração da obra, um dos primeiros comentadores de Virgílio, Mauro Sérvio Honorato no século IV, assevera: “Sua principal qualidade, por seu turno, é, naturalmente o caráter humilde. De fato, dos três caracteres existentes: humilde, médio e grandiloqüente - encontramos todos eles no poeta. Porque, na Eneida, há o grandiloqüente; nas Geórgicas, o médio; e nas Bucólicas, o humilde conforme a qualidade dos temas e das personagens, pois, nesta obra elas são rústicas e estão satisfeitas com a simplicidade e às quais nada de elevado deve ser exigido.” (Trad.: Paulo Martins) São também antigos os comentários sobre a motivação de Virgílio para escrever As Bucólicas, Hélio Donato (século IV) diz que o poeta primeiro trata dos campos in natura (Bucólicas), depois do seu manejo (Geórgicas) e mais tarde dos feitos humanos na terra (Eneida). Tal ordem segundo ele vai de encontro ao interesse do poeta: “ele cantou primeiro os pastores; depois, os agricultores e, por último, os guerreiros”.

A natureza, em seu estado não-latente, portanto óbvio, e a vida que ela proporciona é o leitmotiv da obra. Melibeu na 1ª écloga diz: “Ó Títiro, deitado à sombra de uma vasta faia,//aplicas-te à silvestre musa com uma frauta leve;//nós o solo da pátria e os doces campos nós deixamos;//nós a pátria fugimos (patriam fugimus); tu, na sombra vagaroso,// fazes a selva ecoar o nome de Amarílis bela.” (Trad.: P. E. da S. R.) O que temos nesses primeiros cinco versos no diálogo entre Melibeu e Títiro é o programa da obra: Primeiro, o pastor despreocupado deitado sob uma vasta árvore. Segundo, sua aplicação na flauta suave, leve, logo, humilde. Terceiro, o abandono do campo. Assim, o lugar-comum do fugere urbem é apresentado pelo avesso. Por último, além da função de produzir, Títiro ocupa-se em louvar Amarílis, produzindo uma relação entre a vida campestre e a amorosa, que tão bem foi emulada por Tomás Antônio Gonzaga em Marília de Dirceu. Vale observar aqui o anagrama quase perfeito: Amarílis/Marília.

Já o lema, que está ainda hoje presente na bandeira de Minas Gerais, foi deslocado e descontextualizado, uma vez que na origem, isto é, na 1ª écloga, assim aparece: “A liberdade que me viu ocioso, tarde embora,//quando, ao fazer a barba, esta caía já mais branca”. Assim os Inconfidentes deslocaram apenas parte do verso 27 para um contexto essencialmente político que não havia no texto virgiliano, além de romper com a estrutura sintática do período, soando sem nexo para aqueles que conhecem a língua latina.

Entretanto a écloga mais famosa entre as dez é indubitavelmente a 4ª. A tradição a chama de “Pólio”, nome daquele a quem Virgílio dirige os versos. Essa, que por muito tempo associou-se ao nascimento do cristianismo por tratar de um novo tempo, uma nova idade de ouro trazida pelas mãos de um menino, tem, sim, função política e não religiosa, celebrando a paz de Brundísio entre os discordes do 2º triunvirato (Marco Antônio e Otávio). Virgílio dessa forma vaza o poema com temas elevados, portanto distantes do gênero humilde, conforme as regras estabelecidas para os Idílios, entretanto são magistrais seus versos finais:

Já logo será tempo, marcha para as grandes honras,
Cara prole dos deuses, grande filho, tu, de Júpiter!
Vê como estão de acordo o mundo de pesada abóboda
E as terras todas, e a extensão do mar, e o céu profundo!
Vê como, com os séculos por vir, tudo se alegra.
A última parte desta vida seja-me tão longa,
Que para te dizer os feitos não me falte o alento!
O trácio Orfeu não poderá vencer-me nestes cantos,
Nem Lino, ainda que a Orfeu a mãe Calíope socorra
E por seu turno a Lino dê assistência o belo Apolo.
Se competir comigo o próprio Pã, por juiz a Arcádia,
Dar-se-á por vencido o próprio Pã, por juiz a Arcádia.
Começa, criança, a conhecer a própria mãe com teu sorriso;
Dez meses retiveram tua mãe em longo enfado.
Começa, criança: aquele que não ri à própria mãe
A mesa não terá de um deus, o leito de uma deusa.”

(trad.: P.E. da S. Ramos)