segunda-feira, 30 de junho de 2008

A Cobra Glikon

O misto romano a “Cobra Glikon”, reencarnação de Asclépio[i]. Seu culto, segundo Bandinelli (1988), era praticado na Dácia, em Mésio e na própria Roma à época de Antonino Pio. A lenda de Glikon e seu conseqüente culto adquirem certa força em Roma por ocasião de uma grande epidemia que assolou a cidade no segundo século de nossa era. Quanto à origem dessa representação, parece ter sido criada por um Alexandre, apadrinhado pelo procônsul da Ásia, Rutiliano, que tomara filha daquele como esposa. Este Alexandre serviu-se de uma cobra domesticada e lhe cedeu uma cabeça de humana e crina de cavalo. Tal representação assemelha-se à hipóstase de Kun, deus criador da mitologia egípcia tardia, cuja representação é a de uma serpente com cabeça de leão.

[i] Herói da Ilíada, conhecido por suas habilidades médicas, mais tarde elevado à condição de deus da medicina.

sábado, 28 de junho de 2008

João Angelo em Lendo Imagens


No dia 2 de julho, o Prof. Dr. João Angelo Oliva Neto (DLCV/FFLCH/USP) irá proferir palestra sobre a Figuração de Priapo em texto e imagens, aos alunos do Curso de Pós-graduação em Letras Clássicas na Disciplina Lendo Imagens (FLC5967), de minha responsabilidade. A palestra insere-se no programa da disciplina que se ocupa das imagines verbais e visuais da República e do Império. No caso específico, a figuração do pequeno-grande deus nos interessa pela versatilidade de sua representação em chave elevada (é deus) e baixa (é fescenino).

Tendo o curso, em suas primeiras 12 semanas, observado os processos de composição e circulação das imagens públicas e privadas, repuplicanas e imperiais, parece eficiente analisar esse tipo de figuração dupla e, essencialmente, diversa daquelas estudadas. Assim, Priapo, como divindade, poderia sintetizar o discurso epíditico em suas duas vertentes, além de ser, salvo engano, um tipo de representação que transborda dos limites da vila, do domus, da horta e dos jardins e, portanto, de caráter privado, repercutindo hiperbolicamente nos portos e nos grafitos, espaços públicos.

Por que achas que meninas querem vara, mesmo
de madeira, e me beijam bem no meio?
Nem áugure é preciso: "em mim", disse uma delas,
"vai ter uso perfeito a tosca vara".
A oportuna palestra de João Angelo lembrou-me de publicar duas resenhas veiculadas pela Folha de São Paulo, distantes 10 anos entre si. A primeira de minha autoria quando foi publicado "O Livro de Catulo" em 1996 (premiado pela APCA em 1997 como melhor tradução - hoje esgotado), contudo a ser reeditado, completamente revisto e ampliado. A segunda de autoria de Flávio Ribeiro de Oliveira (professor de grego da UNICAMP) por ocasião do já famoso "Falo no Jardim - Priapéia Grega, Priapéia Latina", que constou entre os 10 indicados ao prêmio Jabuti de 2007. Além dessas, ao fim, publico o verbete "João Angelo Oliva Neto" no Dicionário de Tradutores Literários no Brasil.

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Um Mestre Clássico da Métrica


Paulo Martins
ESPECIAL PARA FOLHA
25/08/1996

O Brasil, apesar de tentativas es­parsas na divulgação da literatura clássica antiga por meio de tradu­ções, ainda está muito distante da produção do dito Primeiro Mun­do. O desenvolvimento dessa ati­vidade atingiu tal ponto nestes países que hoje já se tem diacroni­camente uma tradição da tradu­ção.

A Edusp vem, mesmo que timi­damente e sem um projeto mais abrangente, incentivando a divul­gação de traduções e ensaios nessa área. Dessa forma, lança nesse semestre um texto inédito em língua portuguesa: a tradução da obra completa de Catulo, que foi objeto da dissertação de mestrado de João Angelo Oliva Neto, professor da USP.

Por si, tal fato já representaria um dado de suma importância pa­ra os estudos literários no Brasil, dada a representatividade e im­portância de Catulo que, segundo Ezra Pound no “ABC da Literatu­ra", seria o único autor a emular com Safo de Lesbos quanto à mé­trica, além de ser superior a poeti­sa grega arcaica no que se refere à economia das palavras.

O Livro de Catulo, poeta vero­nense que viveu em Roma entre 87 e 57 a.C., não é volumoso, contudo plural, abrangendo um espectro genérico que vai da sátira aguda ao hino, perpassando a poesia amo­rosa, circunstancial e a invectiva com a mesma excelência técnica comentada por Pound. O curioso nessa obra é o sentido de unidade dentro da diversidade, porquanto, apesar de apresentar distintos gê­neros, sedimenta-se em torno de um padrão compositivo, que na Roma Antiga diferenciava um grupo de poetas chamado poetas novos (poetae noui ou neóteroi), que divulgava a poética alexandri­na, assentada em Calímaco de Cirene.

Tal padrão técnico estava centra­do na economia das palavras, na sutileza, na leveza, na rapidez, na escrita e no livro, fato esse que tor­na-se evidente em Catulo ao ob­servarmos o primeiro poema de seu livro, quando denomina sua obra de lepidus nouus libellus (no­vo e gracioso livrinho) e seus tex­tos de nugas (versos ligeiros, ni­nharias).

Talvez a aparente simplicidade da poética de Catulo tenha sido um dos principais fatores para a disseminação de seus poemas entre nós, leitores modernos de poesia antiga. Contudo sempre estivemos sujeitos às traduções esporádicas que não contemplavam a magni­tude e riqueza métrica de seus tex­tos e tampouco davam valor a seus saborosos textos fesceninos por conta de um pudor que não deve­ria e não deve cercear o prazer do texto literário.

Estes dois dados traduzem re­dutoramente, o trabalho de Oliva Neto que, num brilhante em­preendimento de tradução para um ótimo português, não só pro­pôs soluções técnicas competentes à variedade métrica e à habilidade no uso das palavras, como, dada à natureza do trabalho, não se dei­xou levar por certo moralismo que encontramos em tradutores que se deparam com os textos mais pi­cantes do poeta de Verona.

Ademais, João Angelo Oliva Ne­to não se limita às traduções e nos contempla com riquíssimas notas,o que é fundamental para intelec­ção dos textos, tendo em vista os leitores não habituados à leitura dos clássicos, e com uma bem cui­dada e esclarecedora introdução que resgata o que há de mais atual na produção acadêmica.

Digna de ressalva também é a pertinência na escolha das ilustrações do livro. As imagens imediati­zam uma associação entre duas linguagens que se completam, tor­nando mais prazerosa a leitura do livro. Por outro lado, vale dizer que muitas dessas iconografias também são inéditas no mercado editorial brasileiro, tão escasso de publicações desse matiz. Assim, para o leitor de língua portuguesa, essa edição, que já valeria pelo iné­dito de Catulo, é duas vezes bem-vinda.




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O deus das pequenas coisas"Falo no Jardim" reúne os poemas gregos e latinos dedicados a Priapo, divindade obscena e zombeteira


ESPECIAL PARA A FOLHA
17 de setembro de 2006

"Priapéia" é uma coletânea de breves e jocosos poemas anônimos, compostos em latim entre os séculos 1º a.C. e 1º, cujo tema é Priapo, deus da fertilidade, burlesco e itifálico (representado normalmente em estado de ereção).

O culto de Priapo surgiu na Ásia Menor por volta do século 4º a.C., de onde se difundiu pelo mundo grego e, mais tarde, pelo romano.

Priapo era um deus menor, disforme e desprovido da imponência e da beleza severa dos olímpicos. Mas, por isso mesmo, era popular entre as classes mais humildes da população que, além de considerá-lo protetor da fertilidade animal e vegetal, se valia de seu caráter apotropaico: Priapo seria capaz de afastar malefícios e maus-olhados que pudessem prejudicar a virilidade dos homens e a fertilidade do solo.

Os poemas da "Priapéia" têm, pela própria natureza do deus, um caráter zombeteiro e francamente obsceno -o que perturba sensibilidades mais delicadas. São, até hoje, pouco conhecidos, pouco estudados e pouco traduzidos. "Falo no Jardim", livro de João Ângelo Oliva Neto, nos oferece não só o texto latino completo e traduções impecáveis de todos os poemas da "Priapéia" mas também todos os poemas da chamada "Priapéia Grega" (coletânea dos poemas priapeus gregos que faziam parte da "Antologia Palatina"), também em edição bilíngüe.

Três capítulos iniciais situam e analisam minuciosamente o fenômeno do culto de Priapo no mundo antigo e suas manifestações literárias; os cinco capítulos finais trazem, respectivamente, poemas latinos de autoria conhecida (Catulo, Horácio etc.) cujo tema é Priapo, mas que não faziam parte da "Priapéia" (texto original e tradução); excertos de poemas que, sem ter tema priapeu, mencionam Priapo (texto original e tradução); os poucos poemas priapeus compostos em língua portuguesa; as raras traduções de poemas da "Priapéia" em língua portuguesa anteriores às de Oliva e, por fim, o texto e a tradução de "Er Padre de li Santi", poema priapeu de Belli, escrito em dialeto romanesco no século 19.

Linguagem franca


Fecha o volume um aparato de grande utilidade para o leitor -esquemas métricos, relação dos epítetos de Priapo, glossário, bibliografia e índices. Além disso, o livro traz rico material iconográfico. As seções teóricas, de extremo rigor analítico e sólida fundamentação bibliográfica, são de grande interesse acadêmico para o especialista e, agora mesmo, os leitores desta resenha devem estar pensando: "Ah, mais um livro erudito da academia, destinado a meia dúzia de gatos-pingados da academia...". Nada disso. Oliva tem o raríssimo mérito de, sem abrir mão da profundidade que um estudo crítico do tema requer, ser perfeitamente acessível a qualquer leitor inteligente. Seu texto, escrito em linguagem clara e, eventualmente, bem-humorada, nunca apela para jargões acadêmicos abstrusos.

Ao longo dos séculos, a "Priapéia" e os temas priapeus têm provocado indignação pudibunda entre os tartufos e os ilibados defensores da moral e dos bons costumes, desde os pais da igreja até os editores alemães que censuraram a palavra "Priapia" (entre outras) em diversas edições de "Frühlings Erwachen" [Despertar da Primavera], de Frank Wedekind (1864-1918).

Ainda hoje, muitas traduções de obras clássicas de caráter erótico empregam eufemismos ou termos científicos para traduzir palavras que, em grego ou latim, pertencem ao registro chulo da linguagem. As traduções de Oliva, de grande valor e invenção poética, são rigorosamente fiéis à obscenidade burlesca, à graça provocadora e ao bom humor debochado dos originais. Nelas, a mêntula não é chamada de membro viril ou pipi.

*FLÁVIO RIBEIRO DE OLIVEIRA é professor de língua e literatura gregas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

FALO NO JARDIM - PRIAPÉIA GREGA, PRIAPÉIA LATINA
Organização e tradução: João Angelo Oliva Neto
Editora: Unicamp/Ateliê (tel. 0/ xx/11/4612-9666)
Quanto: R$ 90 (428 págs.)

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João Angelo Oliva Neto

Há muitos tipos de tradutores. Há muitos tipos de escritores. Existem pessoas que fazem da tradução a sua maneira de escrever. Para estas, traduzir é uma maneira legítima de fazer literatura, pois concebem a tradução como algo que contém a escrita em si. Entre os tradutoes literários brasileiros que se debruçam sobre a Antigüidade clássica, João Angelo Oliva Neto destaca-se por apresentar esse tipo de concepção da prática tradutória. Em desacordo com o ideário que subvaloriza a tradução perante outros empreendimentos de um literato, sua trajetória demonstra que traduzindo se pode alcançar um nível de excelência na composição literária.
Oliva Neto iniciou-se no estudo de letras em 1978, quando ingressou no bacharelado de inglês e português, pela USP. Quatro anos após, assim que concluíra esse curso, começou o de latim e grego. Ao final de seu segundo bacharelado, motivado pela grande quantidade de textos latinos em prosa e verso sem tradução em português, lançou-se ao ofício da tradução. Ainda na USP, obteve os títulos de mestre e doutor. Junto à sua dissertação de mestrado, apresentou a tradução de toda a obra poética de Catulo, que intitulou O livro de Catulo. Durante o doutorado, ocupou-se com a tradução de um conjunto de poemas anônimos gregos e latinos, cuja figura central é Priapo, deus fálico, protetor da fecundidade e da fertilidade. Estas duas traduções vieram a ser publicadas e são reconhecidas como seus principais trabalhos. Em 1996, O livro de Catulo recebeu o prêmio de melhor tradução, conferido pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

A dedicação de João Angelo Oliva Neto à tradução de literatura clássica grega e latina aparentemente deve-se a duas grandes afeições que possui. A primeira - fácil de se inferir - é por essa literatura, inerente ao chamado período clássico. A segunda é pela língua portuguesa e toda a sua literatura. Pelo rigor que se observa em suas traduções, Oliva Neto concebe a transposição da literatura da Antigüidade clássica para a língua portuguesa como um exercício de grande valor artístico. Para ele a literatura traduzida deve ter seu lugar na literatura de uma língua. Sua prática é fundamentada em critérios que transparecem no próprio texto traduzido.

Em paratextos às traduções e em artigos publicados paralelamente, Oliva Neto declara preferência por uma tradução que explicite seus critérios teóricos. Isto é, a tradução deve pressupor e esclarecer os fins que pretende atingir e, portanto, o público que pretende alcançar. Na poesia, ele se preocupa com a métrica original e demais características formais, como as figuras de estilo.

Atualmente, é professor da graduação na área de Língua e Literatura Latina da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde atua desde 1989. Nessa mesma faculdade, também atua no programa de Pós-graduação em Letras Clássicas. Como tradutor, Oliva Neto almeja colaborar para uma história da tradução poética no Brasil ou ao menos para uma história da tradução de textos clássicos no Brasil. Entre seus projetos está o de traduzir os poemas de Calímaco de Cirene, um poeta grego do século III a.C., por quem nutre grande admiração.

Verbete publicado em 28 de setembro de 2005
por: Luiz Henrique Milani Queriquelli
Mauri Furlan

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Nova Coletânea de Novelas Gregas Antigas


"This volume of translations has no English predecessor or foreign equal. . . . Reardon, having miraculously resurrected serious study of this oddly neglected literature, has organized the entire venture, written the general introduction, translated some texts, and edited all."-Choice

Prose fiction, although not always associated with classical antiquity, did in fact flourish in the early Roman Empire, not only in realistic Latin novels but also and indeed principally in the Greek ideal romance of love and adventure to which they are related. Popular in the Renaissance, these stories have been less familiar in later centuries. Translations of the Greek stories were not readily available in English before B.P. Reardon's excellent volume. Nine complete stories are included here as well as ten others, encompassing the whole range of classical themes: ideal romance, travel adventure, historical fiction, and comic parody. A new foreword by J.R. Morgan examines the enormous impact this groundbreaking collection has had on our understanding of classical thought and our concept of the novel.

Full information about the bookis available online: http://go.ucpress.edu/AncientNovels


$39.95, £23.95 paperback

978-0-520-25655-2

Available Now

Exposição sobre Adriano - The British Museum


The British Museum
Hadrian: Empire and Conflit


http://www.britishmuseum.org/whats_on/future_exhibitions/hadrian.aspx


Opens 24 July



Explore the life, love and legacy of Rome's most enigmatic emperor, Hadrian (reigned AD 117–138). This unprecedented exhibition will provide fresh insight into the sharp contradictions of Hadrian's character and challenges faced during his reign. Objects from 28 museums worldwide and finds from recent excavations will be shown together for the first time to reassess his legacy, which remains strikingly relevant today.

Hadrian: Exhibition overview



This special exhibition will explore the life, love and legacyof Rome’s most enigmatic emperor, Hadrian (reignedAD 117–138).
Ruling an empire that comprised much of Europe, northern Africa and the Middle East, Hadrian was a capable and, at times, ruthless military leader. He realigned borders and quashed revolt, stabilising a territory critically overstretched by his predecessor, Trajan.
Hadrian had a great passion for architecture and Greek culture. His extensive building programme included the Pantheon in Rome, his villa in Tivoli and the city of Antinoopolis, which he founded and named after his male lover Antinous.
This unprecedented exhibition will provide fresh insight into the sharp contradictions of Hadrian’s character and challenges faced during his reign.
Objects from 28 museums worldwide and finds from recent excavations will be shown together for the first time to reassess his legacy, which remains strikingly relevant today.

Hadrian: Empire and Conflict catalogue by Thorsten Opper. This book is a great companion to the exhibition. £40 hardback, £25 paperback.


Hadrian (r. AD 117-138) is known for his restless and ambitious nature, his interest in architecture and his passion for Greece and Greek culture. This book and exhibition move beyond this image to give a new appraisal of this Emperor,Individual chapters of the book look at Hadrian the man as an individual; Hadrian the military leader and strategist; Hadrian the amateur architect who created magnificent buildings such as his villa at Tivoli; Hadrian the lover who defied his malefavourite Antinous after his mysterious death in the Nile; and Hadrian the traveller who tirelessly roamed his empire and its boundaries. The book will conclude with the legacy of Hadrian, including a discussion of the genesis of MargueriteYourcenar's famous Memoirs of Hadrian, about to be turned into a major Hollywood film.This important book is richly illustrated throughout with key works of art -both celebrated and less well-known sculptures, bronzes, coins and medals, drawings and watercolours.

sábado, 21 de junho de 2008

Armas e Varões

CORRÊA, PAULA DA CUNHA - Armas e Varões. A guerra na Lírica de Arquíloco. São Paulo: Editora Unesp. 1998. 363 páginas.

Paulo Martins

Na Antigüidade Clássica, há determinados textos que são considerados inaugurais, protótipos, iniciais. Isto é, a partir deles somam-se outros tantos, apropriando-se de seus motivos, valendo-se de seus temas e, fundamentalmente, seguindo seus gêneros. Não foi de outra forma que Homero e Hesíodo tornaram-se monumentos sobre os quais a cultura clássica se sedimentou e se alastrou pelo ocidente, dando origem ao que se convencionou chamar civilizações mediterrâneas.

Assim, Platão n’A República, em que se pese a crítica e conseqüente exclusão do poeta e da poesia de sua cidade perfeita, ainda, estabelece que “este poeta ensinou a Hélade”. E Hesíodo, ainda hoje, é manancial didático-poético dessa mesma cultura tanto no que se refere ao mundo cotidiano (Os trabalhos e os dias) como no que se refere ao mundo religioso (A teogonia).

Contudo, pouco se fala daqueles poetas e respectivas obras que, no rastro dos dois anteriores, foram fundadores de um gênero poético muito caro nos dias atuais: o lírico. Ou seja, muito embora a épica homérica esteja na base de todas as práticas letradas ou composicionais gregas, outras fontes devem ser consideradas a fim de que se produza certo reconhecimento genérico da poesia lírica. Arquíloco de Paros é uma destas.

Poeta, que viveu na Grécia no período arcaico (VII a.C.), é depositário de uma série de lugares (tópoi, loci communes) que, posteriormente, se repetiram na dita literatura clássica, firmando determinados gêneros e servindo de êmulo para outros tantos poetas, dentre os quais destaca-se, e.g., Horácio.

Uma característica observável neste poeta é sua habilidade métrica, que desponta em seus poemas elegíacos, jâmbicos e trocaicos, que, por sua vez, mesclados às variados modos de expressão poética, firmam uma série de temas como a guerra, a invectiva, o convivial e o simposiático, perpetrando, originariamente, gêneros e sub-gêneros líricos. Talvez, tal dado tenha ampliado o leque desse tipo de composição, firmando, o material poético prévio que determinou a formatação de preceptivas poéticas e retóricas a partir do século V a.C..

Paula Corrêa, professora de língua e literatura grega na FFLCH/USP, acaba de lançar o livro Armas e Varões: A guerra na lírica de Arquíloco (sua tese de doutoramento) no qual recupera o percurso poético de Arquíloco e institui, na verdade, aquilo que pode ser chamado de uma poética da lírica arcaica, mesmo se considerado, o estado fragmentário dos textos que nos restaram de Arquíloco e o recorte temático considerado.

Seu trabalho (como já foi bem aferido por Trajano Vieira) tem lugar garantido em qualquer biblioteca de estudos clássicos, não só pela competência técnica desenvolvida, como, também, pela sensibilidade de avaliar questões pantanosas que cercam trabalhos deste quilate, como por exemplo, a distância das fontes, o estado físico do objeto, escassez material, entre outros dados concernentes à pesquisa de ponta em Ciências Humanas, principalmente, em Letras Clássicas no Brasil. Por outro lado, o trabalho agora publicado pela profissional e respeitável editora da Unesp é uma resposta cabal às mazelas e descasos de editores equivocados e a pareceristas de plantão ou de última hora, que não conseguiram compreender a dimensão do trabalho de Paula Corrêa, que poderia hoje citar e. e. cummings e, retribuir a atenção e consideração dispensada, propondo um no, thanks!.

A questão que move o livro é a caracterização do tema "guerra" em Arquíloco. Naturalmente, se o tema é este e o sujeito da enunciação poética é construído por um poeta lírico grego arcaico, aproximações deverão existir entre o poeta em questão e Homero — afinal está muito próximo de Arquíloco temporal e tematicamente. Contudo, tais aproximações são complexas uma vez que há discordâncias quanto ao caráter de continuidade e de distanciamento ou de ruptura entre as técnicas poéticas do poeta de Paros e Homero.

Esse relacionamento, não resolvido no âmbito poético, é levado às últimas conseqüências pela pesquisadora, pois que não se limitaria à questão genérica elementar: Arquíloco lírico e Homero épico. O que, então, é proposto por Paula Corrêa é a observação de alguns dados de cultura que podem caracterizar o homem e o pensamento grego tanto no período homérico como no arcaico.

Entretanto, como muito adequada e competentemente é demonstrado, esses dados sofrem, sincrônica e diacronicamente, mutação entre os críticos modernos do século XIX e XX como: Hegel, Nietzsche, Wilamowitz-Möllendorff, Snell, Fränkel, Vernant, Detienne e outros. Isto é, determinados conceitos levantados pela autora são analisados por eles ora de forma análoga, ora de maneira antagônica. Assim, observam-se questões concernentes ao corpo e à alma; às emoções mistas, à reflexão e à responsabilidade humana com a intenção de reconstituir o caráter desses homens ou desse homem grego, fator imprescindível na aferição dos fragmentos de Arquíloco.

Num segundo momento da obra, Paula Corrêa passa a discorrer sobre Arquíloco dentro da obra de Snell (A descoberta do Espírito) — fundamental dentro do percurso proposto e longe de certa impregnação que seria nefasta — observando os posicionamentos modernos acerca da efemeridade humana; da descoberta do indivíduo e da questão do gênero. Este último, talvez, possa deixar um leitor mais ansioso pouco decepcionado, caso espere encontrar, nesse momento, o desvelar sistemático da questão genérica em Arquíloco.

Na segunda parte do trabalho (II - O guerreiro arcaico: hoplitas, armas e táticas), passamos a tomar contato direto com a obra do poeta. A autora propõe, sistematicamente, uma leitura de fontes, o que, diga-se de passagem, é obrigatório diante deste tipo de “arqueotexto”. E ora aderindo ao comentário, ora distanciando-se, Paula Corrêa passa, indutivamente, a consolidar suas propostas para uma poética arqueloquéia.

A primeira delas é justamente a crença de modificação de status social na Grécia arcaica em detrimento daquela presente no mundo homérico. Ao cabo do primeiro capítulo da segunda parte, encontra-se: “Portanto, não há em Arquíloco, pelo menos nesse fragmento (FR 1W), evidência de uma nova postura ante as Musas, ou de uma noção diversa de arte poética. (...) Em razão disso, seria exagero acreditar, como Page (1964, p.134), que ‘esse dístico resume uma revolução social’”.

Num outro momento é proposta pela pesquisadora nova interpretação àquilo que durante muito tempo se propôs como o novo espírito grego, nascido com a lírica arcaica a partir da figuração de um tipo de soldado que abandona suas armas ou assume posturas não condizentes com sua posição. Demonstra que nada de novo há na figuração. Assim, o que se pode aferir é que certas situações produzidas por Arquíloco apenas determinam a intenção de reproduzir cenas anti-heróicas.

Um outro ponto trabalhado trata de dois conceitos interessantes que poderiam determinar ruptura entre o mundo homérico e o da lírica arcaica: a questão da vaidade e da coragem, partindo de uma possível representação de física de generais em Arquíloco.

A autora evoca o fragmento que dispõe a preferência do sujeito da enunciação pelo general cambaio em detrimento do general vaidoso. Tal juízo de valor indica que não há pelo menos neste caso distanciamento entre os poetas em questão, pois o ponto crucial da preferência não estaria no âmbito da aparência externa, mas no das qualidades internas: “Não gosto do grande general, nem do que anda a largo passo,/ nem do que é vaidoso de seus cachos, nem do bem barbeado,/ mas que me seja pequeno e com pernas tortas/ de se ver, plantado firme sobre os pés, cheio de coragem” (Frag. 5W).

Nos dois capítulos seguintes, pode-se observar aspectos fundamentais na reconstituição desse homem desenhado pelo poeta, discorre-se nesse ponto sobre os aliados e sobre o modo de guerra. A primeira questão perfaz um estudo acerca da philía, conceito que, segundo Aristóteles na Ética a Eudemo (1236a15), não é uno, mas triplo, pois ora está baseado na virtude, ora na utilidade e ora no prazer. Em Arquíloco, a autora constata a ambigüidade do conceito, pois ele afirma “o aliado é amigo enquanto luta” (Frag. 15W).

A terceira parte do livro objetiva situar as narrativas marciais de Arquíloco em termos genéricos, principalmente, se observados os textos anteriores a ele em que o tema central é o mesmo: a guerra. Nesse sentido, seria crucial particularizá-lo em relação à Ilíada. Talvez, esta discussão fosse a mais importante dentro da obra em questão, porquanto revigoraria o que mais se discute hoje em dia em termos de práticas letradas da Antigüidade Clássica, ou seja, o gênero.

O texto, contudo, decorre a partir de Hegel (Estética), buscando aproximações entre Arquíloco e outros dois poetas arcaicos, Calino e Tirteu que haviam sido trabalhados pelo filósofo na chave da dicotomia entre uma forma que é essencialmente narrativa e um tom que é essencialmente lírico. Dessa maneira, careceu a obra de preocupação mais sincrônica, isto é, haveria na Grécia arcaica, efetivamente, a dicotomia proposta pelo filósofo alemão? O conteúdo poderia delimitar o gênero? A forma seria fator preponderante para a caracterização genérica? Apesar de Hegel, Paula produz sua arqueologia com exata precisão que percorre seu texto desde o início e dessa forma, reconstitui o gênero de Arquíloco, até então não normatizado.

Enfim, a obra é essencial para aqueles que desejam debruçar-se sobre o princípio do pensamento grego e sua repercussão literária, ou mesmo, para aqueles que desejam ter um justo e preciso modelo de um raro e excelente trabalho de pesquisa em Ciências Humanas.


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ISBN: 8571392048
Assunto: História, Literatura
Idioma: Português
Formato: 14 x 21cm
Páginas: 363
Edição: 1ª
Ano: 1998
Acabamento: Brochura com orelhas
Peso: 445g

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Biquíni Antigo


É corrente atribuir a criação do primeiro biquíni ao estilista francês Louis Réard que o batizou com o nome do pequeno atol de Bikini, no Pacífico, onde os americanos haviam realizado uma série de testes atômicos. Mais do que isso "a famosa editora de moda Diana Vreeland (1903-1989) disse uma vez que o biquíni 'é a invenção mais importante deste século (20), depois da bomba atômica'. O lançamento do primeiro biquíni foi em 26 de junho de 1946 e causou o efeito de uma verdadeira bomba." (http://almanaque.folha.uol.com.br/biquini.htm)




Micheline Bernardini - 1946 no "primeiro" Biquíni

Entretanto, observando os mosaicos da Villa Armerina na Sicília, encontramos, talvez, os primeiros "biquínis" ocidentais, datados não da década de quarenta do século XX, mas do final do século III d.C.:



Talvez, a presença dessas imagens no final do século III ou início do IV d.C venha a produzir alguma reflexão acerca da liberalidade em relação ao corpo no mundo antigo greco-romano.

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No sítio oficial do sítio arqueológico tem-se o seguinte texto:

Presentazione di Iside Castagnola

"Ci sono luoghi per la storia, dove il tempo ha segnato la sua voce, la verità il suo enigma, nel cuore del mediterraneo, a Piazza Armerina nella dolce valle del casale, maestranze, ispirate scrissero, con la pietra, il testamento di tutta l'umanità classica mentre il vento del tempo, seppelliva le sue spoglie, apparì sulle tessere dei mosaici un racconto musivo, che aveva cucito l'eco di infiniti giorni per comporre le sembianze di memoria e cantare ai posteri il cunto, di Ulisse, di Ambrosia, il cunto della caccia e della vendemmia, il cunto dei giganti e quello dell'impero senza dimenticare mai il destino, umano, che nelle sue opere più significative rimane un mistero...."

La Villa Romana del Casale fu costruita tra la fine del sec. III e l'inizio del sec. IV d.C., nell'ambito di un sistema di latifondi appartenenti a potenti famiglie romane, che vi si recavano a caccia o in vacanza. Alcuni studiosi suppongono che la villa fosse appartenuta ad una personalità altolocata della gerarchia dell'Impero Romano (un Console), mentre altri sostengono che la villa sia appartenuta all'Imperatore M. Valerio Massimiano, detto Herculeos Victor.

Abitata anche in eta' araba, la villa fu parzialmente distrutta dai normanni, in seguito, una valanga di fango, provenienti dal monte Mangone, che la sovrasta, la coprì quasi totalmente.

Le prime campagne di scavo a livello scientifico, promosse dal Comune di Piazza Armerina, furono eseguite nell'anno 1881. Gli scavi furono ripresi nel 1935 fino al 1939, ed infine, con l'intervento della Regione Siciliana negli anni 50, fu portato completamente alla luce l'intero complesso, grazie all'opera dell'archeologo Vinicio Gentili.

La morfologia del terreno ha determinato la planimetria molto articolata della villa: vi si possono distinguere una parte residenziale intorno al grande peristilio centrale su cui si affaccia anche la basilica, una zona di rappresentanza con il peristilio ellittico (Xistus) e la grande sala trilobata (Triclinio), il complesso delle terme dal movimentato impianto planimetrico. Il cortile-porticato d'ingresso, a pianta irregolare, funge da cerniera tra queste tre parti. I mosaici furono realizzati da diversi gruppi di maestranze nordafricane che mediavano eredità alessandrine e tendenze siriache.

Ciò che più piacerà ai visitatori, senza dubbio, sono i magnifici mosaici del pavimento, in tutte le sale, che sono di una ricchezza e di una varietà tale che non ci sono paragoni nel mondo.Sebbene niente possa dare un'idea compiuta della mirabile decorazione musiva di questa fantastica, singolare, misteriosa villa, consapevoli che non si può rendere con parole ciò che può essere gioia solo attraverso gli occhi, vogliamo tuttavia offrire al visitatore la descrizione e una chiave di comprensione dell'immenso tappeto di mosaici pavimentali che ne fanno una gemma inestimabile nella storia dell'arte.

(http://www.villaromanadelcasale.it/)


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Alguma Bibliografia

Luciano Catullo and Gail Mitchell. The Ancient Roman Villa of Casale at Piazza Armerina: Past and Present. 2000.

R. J. A. Wilson: Piazza Armerina, Granada Verlag: London 1983.

A. Carandini - A. Ricci - M. de Vos, Filosofiana, The villa of Piazza Armerina. The image of a Roman aristocrat at the time of Constantine, Palermo 1982.

S. Settis, "Per l'interpretazione di Piazza Armerina", in Mélanges de l'Ecole Française de Rome. Antiquité 87, 1975, 2, pp. 873-994.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Ius Imaginum - Direito de Imagens


Retrato Fúnebre - Musée du Louvre, Paris (1)

Há uma passagem em Políbio (Livro VI, 53-54) que me parece bem interessante. Ela trata da utilidade, da finalidade de imagines mortuárias romanas. Tais esculturas fúnebres, apoiadas nas informações de Políbio, apontam para duas reflexões interessantes.

Retrato Fúnebre - Musée du Louvre, Paris (2)


A primeira diz respeito a um tipo de escultura romana a que a tradição deu o nome de "retrato realístico" (nome, talvez, algo anacrônico), isto é, retratos em que há uma preocupação com a proximidade com o modelo, mimetizando com todas as (im)perfeições inerentes ao figurado.

A segunda diz respeito à circulação dessas. Se, de um lado, são essencialmente privadas, pois devem ser reverenciadas no âmbito do domus (no columbarium), por outro lado, extrapolam essa privacidade ao serem expostas sistematicamente nos funerais junto aos rostros do fórum por ocasião da morte de um patrício pertencente a um determinada gens.

Essas reflexões nos levam a crer que o direito de imagens (ius imaginum) que, em princípio, era apenas da aristrocacia, vazará às demais classes sociais nos séculos seguintes ao fim da República Romana, como bem demonstram os Retratos de Fayoum.



Retratos de Fayoum: (1) Musée du Louvre; (2) The Getty Museum e (3) Staatliche Museen, Berlim


Columbarium II de Vigna Codini na Via Latina


53. Por ocasião da morte de qualquer homem ilustre ele é levado em seu funeral com toda a pompa até o Fórum, perto dos chamados Rostros, algumas vezes bem à vista em posição vertical, e mais raramente reclinado. Ali, com todo o povo de pé em volta, um filho crescido, se ele deixou algum que esteja presente em Roma, ou se não outro parente, sobe aos Rostros e pronuncia um discurso alusivo às suas qualidades e aos seus sucessos e feitos ao longo da vida. Conseqüentemente toda a multidão, e não apenas quem teve alguma participação nesses feitos, mas também quem não teve, quando os fatos são relembrados e postos diante de seus olhos comove-se e é levada a tal estado e empatia que a perda parece não se limitar somente a quem chora o morto e ser extensiva a todo o povo. Em seguida, após o enterro e a realização das cerimônias usuais, coloca-se uma imagem do defunto no lugar mais visível de sua casa, numa espécie de tabernáculo de madeira. Essa imagem consiste numa máscara reproduzindo com notável fidelidade a tez e as feições do morto. Nos dias de festas religiosas públicas essas imagens são expostas e ornamentadas cuidadosamente, e quando alguma pessoa importante da família morre os parentes as levam para o funeral, conduzidas por homens que pareçam assemelhar-se mais a, cada defunto em estatura e compleição. Esses homens vestem uma toga, com um debrum cor de púrpura se o defunto era cônsul ou pretor, toda de púrpura se ele era censor, e bordada de ouro se ele tivesse recebido as honras do triunfo ou alguma distinção desse gênero. Tais homens são levados num carro precedido por fasces, machados e outras insígnias às quais cada um dos personagens por eles encarnados tinha direito de acordo com a função que exercera em vida; quando eles chegam aos Ros­tros, sentam-se em cadeiras de marfim enfileiradas. Não seria fácil imaginar um espetáculo mais nobilitante e edificante para um jovem que aspire à fama e à excelência. De fato, quem não se sentiria estimulado pela visão das imagens de homens famosos por suas qualidades excepcionais, todos reunidos como se estivessem vivos e respirando? Poderia haver um espetáculo cívico mais belo que esse?

54. Além disso, o orador incumbido de falar sobre o homem prestes a ser enterrado, após pronunciar-se a respeito do defunto evoca os sucessos e feitos dos outros defuntos cujas imagens também estão presentes, começando pelo mais antigo. Por esse meio, por essa renovação constante das referências às qualidades dos homens ilustres, a fama dos autores de feitos nobilitantes é imortalizada, e ao mesmo tempo o mérito de quem prestou bons serviços à pátria chega ao conhecimento do povo, constituindo um legado para as gerações futuras. O resultado mais importante, porém, é que os jovens são estimulados assim a suportar qualquer provação pelo bem da coletividade, na esperança de obterem a glória que acompanha os homens valorosos. Os fatos confirmam essas minhas palavras. Com efeito, muitos romanos empenharam-se em combate singular para decidir uma batalha, e não poucos enfrentaram a morte certa, uns na guerra, para salvar a vida dos companheiros restantes. e outros na paz para salvar a pátria. Alguns magistrados chegaram ao ponto de, no exercício de suas funções, ordenar a execução de seus próprios filhos sem levar em conta qualquer costume ou lei, pondo assim os interesses do Estado acima dos laços naturais que os vinculam aos parentes mais chegados e queridos. Muitos fatos desse gênero pertinentes a muitos homens são relatados na história de Roma, porém um deles a respeito de uma certa pessoa bastará no momento como exemplo e a título de confirmação de minhas asserções.
(tradução de Mário da Gama Cury)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Vt Pictura Poesis II

Diz-se freqüentemente que um escritor "carregou nas tintas" ou que "desenhou bem uma característica de uma personagem", ou ainda, que "pintou bem os costumes de um tempo". É comum, pois, se tomar termos emprestados à pintura para qualificar uma determinada situação ou pessoa numa obra literária.

Por outro lado, o atento crítico literário pode também vislumbrar em sua exegese os contornos de um texto, os comparando com uma técnica pictórica. Não é de outra maneira, por exemplo, que Haroldo de Campos em sua introdução às Memórias Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade nos informa: "É bem possível que a influencia primordial na prosa de Oswald – um visual por excelência – seja ainda, para além da assimilação da teoria e da prática futurista, a transposição imediata de suas descobertas pictóricas nas exposições de Paris Como explicar, de outra forma, o cubo-futurismo de tantos trechos do Miramar”.

Destarte, pode-se afirmar que a pintura não só auxilia na qualificação de um determinado texto pelo crítico, mas, também, pode engendrar uma escritura, com a aplicação de suas técnicas específicas pelo autor. Assim a relação entre a pintura e o texto está determinada por uma "dupla-mão", uma que nasce da observação da pintura pelo crítico que a aplica em sua análise Literária e outra que vem da observação da pintura pelo autor e que o leva a transformá-la em texto.

Seria uma tolice, por outro lado, se pensar que essa indene ligação fosse um fenômeno da belle époque, ou de um modernismo radical naquele texto representado tanto pela critica de HC como pelo citado romance de Oswald de Andrade, como poderia inferir o leitor mais incauto.

A especulação acerca dessa complementaridade ou homologia, pintura-textos, remonta à época de Semônides na Grécia arcaica e percorreu toda Antigüidade Clássica, estando em todos os tempos presente nas palavras dos poetas e dos retores nas preceptivas.

Um bom exemplo clássico da operação com o retrato literário é a obra historiográfica de Salústio, A Conjuração de Catilina, pois lá se observam pelo menos quatro imagens que seguem a proposta retórica da enargia. Entretanto, seria impossível expor tais visões do retrato em Salústio, sem antes, se fazer uma breve exposição do quadro geral da preceptiva retórica, pois que esclarecesse principalmente as questões concernentes ao gênero e sua respectiva invenção.

Como foi dito, daquilo que se pode chamar retrato, qual seja, uma descrição precisa dos caracteres físicos, morais e éticos de uma personagem, nas monografias de Salústio, pode-se encontrar pelo menos quatro significativos: O retrato de Catilina, o de Semprônia, esposa de D. Júnio Bruto, e o de Júlio César e de Catão de Útica.

Tais descrições, retoricamente, se enquadram, quanto ao gênero do discurso, no epidítico, pois, como transmite a norma aristotélica, esse gênero é aquele que sempre trabalha uma situação pressuposta como res certa no presente, atribuindo-lhe vitupérios ou elogios. Esse ato de se encontrar pensamentos (res) adequados (aptum) conforme o interesse do partido representado dá-se o nome de inuentio. Tais pensamentos, porém, devem ser entendidos como instrumentos intelectuais e afetivos que se concretizam pelas palavras para que se obtenha êxito na argumentação.

Assim, Salústio, seguindo a preceptiva do gênero demonstrativo, atribuiu às personagens vitupérios ou elogios quando tais categorias se lhe pareciam oportunas dentro da propositura de monografia. A Retórica a Herênio nos informa a respeito de tal procedimento, ao propor a invenção nesse genus: "Quoniam haec causa diuitur in laudem et uituperationem, quibus ex rebus laudem constituerimus, ex contrariis rebus erit uituperatio comparata. Laus igitur esse rerum externarum, corporis, animi. Rerum externarum sunt ea. quae casu aut fortuna secunda aut aduersa accidere possunt: genus, educatio, diuitiae, potestates, gloriae, ciuitas, amicitia, et quae huiusmodi sunt et qua his contraria. Corporis sunt.ea quae natura corpori attribuit commoda aut incommoda: uelocitas, uires, dignitas, ualetudo, et quae contraria sunt. Animi sunt ea. quae consilio et cogitatione nostra constant: prudentia, iustitia, fortitudo, modestia, et quae contraria sunt."

Convém lembrar que a crítica de estudos clássicos, em sua maior parte, afirma que tais retratos primam pela riqueza dos caracteres psicológicos pintados pelo autor, contudo, parece que tal afirmação soa um tanto anacrônica uma vez que as categorias psicológicas, ao tempo de Salústio, ainda não haviam sido formuladas, ou seja, a psicologia, a época de César, não existia, enquanto disciplina capaz de fornecer algum subsidio de análise. Desse modo, seria mais conveniente dizer que a riqueza de tal procedimento retórico, na verdade, está no estabelecimento do "éthos" das personagens e não de sua "psique", freudianamente falando.

Quintiliano, por sua vez, nos esclarece que as qualidades que devem ser louvadas ou vituperadas no discurso demonstrativo são as do espirito, do corpo e as dos bens da fortuna, sendo que as últimas, em todos os casos, são as menos importantes. Quanto as qualidades do espírito, afirma que são sempre verdadeiras e o orador, ao tratá-las, deve seguir uma cronologia partindo, inicialmente, da tenra infância, falando da índole e mais tarde, as aplicações dessa naquilo que o elogiado faz ou obra, naquilo que diz ou pensa, exaltando, então, as virtudes da temperança, da justiça e da fortaleza e suas ações correspondentes.

Das ações que se devem exaltar, Quintiliano propõe: atos que o homem faz por si, naqueles em que foi o primeiro, em que houve poucos que o seguissem, aqueles que excederam a esperança, os que foram imprevistos e, por fim, os que foram em utilidade dos outros do que em utilidade própria. Isso que os retores latinos estabelecem como decoroso acerca da invenção no gênero epidítico, Salústio segue. A Retórica a Herênio indica que são três as categorias, como foi visto, que o orador deve tratar em seu discurso aquilo que é relativo à alma, ao corpo e às coisas externas.

Salústio inicia o retrato de Catilina: nobre quanto ao nascimento (coisas externas), forsa de alma (alma) e, por fim, força de corpo (corpo). Por outro lado, Quintiliano esclarece: "quodque ante eos fuit quoque ipsi uixerunt qui fat;o sunt functi etiam quod est insectum." Por sua vez, o pintor afirma quanto ao protagonista da Conjuração: "Huic ab aduiescentia bella intestina, caedes, rapinae, discordia ciuile grat;a fuere, ibique iuuentutem suam exercitauit."

Poder-se-ia pensar que o historiador, por construir o discurso do retrato, epidítico por excelência, sob o viés do vitupério, poderia, pois, estar construindo uma sátira uma vez que tal gênero ''literário'', muita vez, adere a esse procedimento, estabelecendo assim uma crítica moral, ética ou mesmo, religiosa.

Um prefácio de um estudo sobre a sátira barroca daquele a quern chamamos Gregório de Matos Guerra, adverte que: "São cinco as divisões do livro, da retórica as partes são cinco. Cuida o livro da Sátira, logo, do vitupério." Tal comentário de Leon Kossovich para o livro de J. A. Hansen poderia engendrar um pensamento, qual seja, de que tudo quanto vitupério fosse, retoricamente, sátira seria. Isso não é verdadeiro, pelo menos, no discurso demonstrativo de Salústio. Os vitupérios são cortantes e indicam um éthos negativo no que concerne à imagem ética do protagonista que atinge aquilo que Quintiliano propugna como mais verdadeiro; contudo, o autor não poupa elogios relativos ao corpo e às coisas externas, essa última, segundo a norma, a menos importante das "res" a serem louvadas.

Catilina, apesar de vituperado, vítima de um invectivador, certamente menos mordaz que Cícero, também não escapa dos inúmeros elogios de Salústio: sua origem patrícia, sua força de alma e de corpo, capaz de suportar fome, frio e insônia e, por último, muito eloqüente. Então, apesar dos vitupérios, em quantidade e qualidade, superarem aos elogios, esses, ainda assim não são poucos tal desenho poderia determinar uma certa imparcialidade de Salústio no que tange a figura histórica de Catilina, porém, o pincelar nebuloso do retrato erigido torna pouco determinável a intenção do autor.

terça-feira, 3 de junho de 2008

1 ano na rede - Letras & Artes - Mais um balanço

No dia 8 de junho de 2008, fará 1 ano que o Blog Letras & Artes está no ar. Nesse ano de atividades, tivemos 13.458 visitas (até dia 3 de junho de 2008) com 58 postagens. A partir do dia 26 de dezembro de 2007, foi também possível contabilizar geograficamente 6393 visitas:

794 cidades diferentes

86,63% - Brasil
10,19% - Portugal
3,18% - Outros Países

Entre as cidades que mais acessaram o blog temos:

No Brasil:

São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza, Campinas, Goiania, Florianópolis, Vitória e Niterói

Em Portugal:

Lisboa, Porto, Coimbra, Amadora, Funchal, Barreiro, Alvaro, Braga, Odivelas, Aveiro.

Entre os países à exceção do Brasil (5526) e de Portugal (650), temos em ordem decrescente de visitas os seguintes números:

  • Estados Unidos (82),
  • Itália (19),
  • Espanha (18),
  • França (11),
  • Moçambique (11),
  • Alemanha (10),
  • Grã-Bretanha (7),
  • Suiça (5),
  • Argentina (5),
  • México (4),
  • Bélgica (4),
  • Canadá (4),
  • Japão (3),
  • Comunidade Européia (3),
  • Cabo Verde (3),
  • Chile (3),
  • Peru (2),
  • Porto Rico (2),
  • Rússia (2),
  • Quênia (1),
  • Holanda (1),
  • Romênia (1),
  • Guatemala (1),
  • Israel (1),
  • Polônia (1),
  • Suécia (1),
  • Bangladeche (1),
  • El Salvador (1),
  • Índia (1),
  • Luxemburgo (1),
  • Bolívia (1),
  • Croácia (1),
  • Coréia (1),
  • Tailândia (1),
  • República Tcheca (1),
  • Grécia (1),
  • Emirados Árabes (1)

domingo, 1 de junho de 2008

Palavra Peregrina

GOMES Jr., Guilherme Simões – Palavra Peregrina. O barroco e o pensamento sobre as artes e as letras no Brasil. São Paulo: Edusp, Educ e Fapesp. 1998.


Paulo Martins



Desde muito tempo, pessoas ligadas às letras e à história debruçam-se sobre a questão do barroco. Estilo? Concepção artística? Prática letrada? Corrupção, deformidade, contrapartida, degeneração do clássico? Excesso? Tendência estética? Volúpia? Tormento? Sensualidade? Atitude, modo de governar, de agir? Referências ao termo multiplicam-se com o passar do tempo, e a etiqueta pregada ao conceito, que interessantemente é posterior ao tempo de sua prática, avoluma as possibilidades de conceituação daquela prática artística, temporalmente circunscrita aos séculos XVII e XVIII, que, em certos aspectos, se distancia do tipo de produção do renascimento e, noutros, se filia.


O percurso do termo associado à elaboração do conceito e ao resultado pretendido como efeito de produção artística, no Brasil é o fulcro central de Palavra Peregrina de Guilherme Simões Gomes Jr. que acaba de ser lançado pela EDUSP, em co-edição com a EDUC e com apoio editorial da Fapesp.


O ponto de partida do livro é o epicentro de polêmicas geradas a partir da conceituação do termo barroco e sua conseqüente apropriação pela crítica. Um caso mais próximo: aquilo que se chamou de “o seqüestro do barroco” , ocorrido com o lançamento do livro homônimo de Haroldo de Campos na década de 80, no qual é discutida a não-inclusão do barroco em A Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido.


Para explicar a questão, Simões Gomes Jr. propõe a arqueologia do termo barroco e tudo que deriva de sua utilização. É dessa forma que reitera a não-aplicação do termo como referência a certo tipo de produção artística coetânea, isto é, os barrocos não denominavam barroca sua arte. Dessa acertiva fundamental, tudo o que se convencionou chamar barroco carece de mediação e reflexão cuidadosas que devem revestir a observação de critérios que nortearam a aplicação desse conceito na arte produzida em dois séculos, o XVII e parte do XVIII.


O percurso delimitado pelo autor, neste texto de grande importância para o estudo crítico das letras e das artes no Brasil, observa a produção crítica do início do século dezenove, com o advento da revista Minerva, cujo colaborador mais conhecido entre nós, talvez seja Gonçalves de Magalhães (Suspiros poéticos e Saudades foi recentemente republicado), até a década de 50 deste século, com o trabalho dirigido por Afrânio Coutinho com a colaboração de inúmeros intelectuais em a Literatura no Brasil , obra em seis volumes, da qual vale salientar o ensaio acerca do barroco, assinado pelo próprio Coutinho. Dentro deste recorte ilustrado, Simões insere também – como não poderia deixar de ser – a discussão em círculos internacionais gerados a partir dos escritos de Wölfflin no século XIX (Renascença e Barroco – 1888) que alimentam as querelas estéticas em torno da questão na Europa. Vale dizer que observa, por outro lado, textos coetâneos ao objeto como os de Gracián e Tesauro, preceptistas, até hoje, muito importantes para a avaliação do barroco.
Assim, Palavra Peregrina divide-se em duas partes, subdivididas, ambas, em outras duas. A primeira diz respeito à especificidade da controvérsia do barroco no Brasil e uma segunda em que discorre acerca da cultura do barroco em sem sentido mais amplo.


Na primeira ecoam as observações de Araújo Porto Alegre, brasileiro, pioneiro ao analisar as questões concernentes a esse assunto; as de Mário de Andrade e aqueles que o autor chama de “modernistas áticos”; as de especialistas da década de 30 e, por fim, as de Lorival Gomes Machado.


Na segunda metade da primeira parte, Simões Jr. atenta para o desenvolvimento da crítica brasileira contemporânea, resgatando Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Sérgio Buarque de Holanda e, como sói acontece, Antonio Candido.


Os apontamentos acerca da cultura do barroco, parte mais geral da obra – destaque-se, assim, seu caráter indutivo – detém-se, no rastro de Maravall (A cultura do barroco – SP, 1998, já comentado neste caderno) das relações político-culturais que cercam a produção artística do período e as características mais gerais do estilo e da língua utilizados, por exemplo, por Gôngora e Garsilaso.


No que concerne aos primórdios da conceituação no Brasil, Araújo Porto Alegre (colaborador de Minerva) comprova a tese da não-preexistência do termo e conseqüente juízo de valor sobre o mesmo, ao discorrer sobre as práticas artísticas dos séculos XVII e XVIII, inserindo adjetivações sui generis às pinturas de Manuel da Costa: “espécie de Gôngora acromático, apóstolo dos delírios borronímicos” na qual acumula-se o pejorativo porquanto tanto Gôngora como o arquiteto Borromini são sinônimos de bizarria e ridículo para a escola neoclássica francesa à qual Araújo filia-se.


A partir do início do século XX, inicia-se certa recuperação do conceito com as proposições de Ricardo Severo sobre a arquitetura colonial do XVII. “Suas idéias certamente não caíram no vazio”. Mário de Andrade propõe a si a tarefa de analisar com perspicaz atenção a cultura material do período, redescobrindo-a e valorizando-a, dentro do projeto modernista que opta por olhar para dentro do Brasil. Nesse momento decisivo, contudo, a conceituação barroco possuía ainda um caráter crivado de negatividade que limitava suas qualidades ao ornato, à elocução portanto, e o desqualificava no que diz respeito à táxis, à disposição, retoricamente falando.


Segundo Simões Gomes Jr., no final da década de 30, com a fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), definitivamente, se sistematiza o conceito, apesar de não haver consenso na formulação. “Novo patamar na reflexão sobre a história da arte no Brasil foi estabelecido”. “Uma rápida evolução do debate” é percebida tanto no que se refere à palavra em si – barroco, como ao próprio conceito.


Assim, os escritos de Hannah Levy e de Roger Bastide (ambos de 1941) consolidam as tendências da década anterior, propondo a primeira uma reciclagem das principais teorias sobre o assunto (Wölfflin é fundamental) e o segundo, introduzindo categorias sociológicas, quando vaticina que “não é a atividade econômica, a produção, o comércio, que estimula as artes, mas o ócio que as favorece”.


A questão do barroco encontra finalmente a grande síntese em Lorival Gomes Machado da Universidade de São Paulo, pois é ele que procura integrar as diversas vertentes de explicação do barroco e superar seu caráter pretensamente antinômico. Contudo, esta síntese dirigia-se especificamente às artes figurativas. Nesse sentido, para o autor, o crítico austríaco, Otto Maria Carpeaux, é crucial, porque instaura sistematicamente a tentativa de desfazer o equívoco romântico e neoclássico de entender o conceito (maneirismo, gongorismo, preciosismo, etc.) como expressão do mau gosto e da decadência da tradição renascentista nas letras. Vai além, tendo como ponto de partida Wölfflin, explicita a concepção de barroco como mentalidade da vida social e cultural da Europa do XVII. Destarte, para Carpeaux: “Seu pessimismo [do barroco], seu caráter dilacerado, suas antíteses radicais entre o divino e o mundano, entre o hermético e a teologia católica, no plano do fazer político, não são mais do que o resultado da crise que atravessa a época barroca”.


Mostrando-se um excepcional leitor, Simões Gomes Jr. adverte sobre as incongruências de A. Coutinho em Aspectos da Literatura Barroca, obra que, seguramente, ainda hoje está no centro de muitas intervenções acadêmicas e, principalmente, didáticas. Ele nota que, ao mesmo tempo que AC associa ruptura renascentista e verticalidade medieval contrareformista, no viés de uma teoria wölffliana simplificada, da qual surge um homem barroco saudoso e seduzido, o estilo barroco segue uma evolução própria conforme as leis imanentes às próprias formas artísticas. Dessa maneira, o texto de Coutinho, segundo o autor, é o escamoteador de diferenças que produz aparência de complementaridade entre proposições diversas. Isto pode ser considerado algo muito sério.


Seguindo um percurso presumidamente cronológico, encontra-se a seguir, talvez, a parte do livro mais atraente e significativa, pois o autor resgata o pensamento de um de nossos mais brilhantes intelectuais: Sérgio Buarque de Holanda, que é revisitado em toda sua trajetória formadora, acentuando pressupostos teóricos que deságuam no seu posicionamento sobre o barroco. Nesse sentido, mostra-se imperiosa a formulação de SBH: “o barroco enlaçava-se à Retórica, à Filosofia e não menos, à Lógica da época, na comum aspiração de servir à Verdade e submeter ao seu jugo os corações e a sabedoria dos homens. Essa a soberana missão do poeta, missão que ele aceitava, não com revolta mas com entusiasmo, porque deveria assegurar ao seu esforço uma dignidade sagrada e perene”.


O conteúdo dessa observação promove um posicionamento distanciado do historiador em relação aos seus pares, pois dissocia o barroco de certa afinidade, pretendida por alguns, entre sua época e o início do século XX, além de dirimir qualquer possibilidade de aferição do barroco, tendo em vista os ditames da nova crítica (new criticism). “Fica claro, portanto, que quando Sérgio Buarque, afastando-se dos critérios de nacionalidade, começa a tratar da poesia no Brasil colonial, e para isso serve-se de categorias como Renascimento, Barroco, Neoclassicismo, o conteúdo desses termos não é apenas estilístico. Mais do que isso, dizem respeito a complexos de cultura que devem ser estudados em múltiplas dimensões”.


No capítulo dedicado a Antonio Candido, Simões Gomes Jr. faz um trabalho memorável, porquanto compreende todas as variáveis que nortearam a não-inclusão do barroco na Formação da Literatura Brasileira, o famigerado “seqüestro”. Basicamente, a tese de Candido, que já fora em outros momentos discutida exaustivamente, é retomada numa digressão em certa medida fastidiosa e até certo ponto desnecessária. Contudo, o autor revitaliza a questão ao tratar do comentário à poesia de Cláudio Manuel da Costa, que nas palavras de Candido possibilita "rever em sentido favorável o espírito cultista".


É nessa esfera que se encontra um excelente esclarecimento acerca dos termos cultista e culteranista que são basilares na compreensão que a Formação oferece sobre o barroco e, portanto, a posição de Antonio Candido. Enquanto, o primeiro termo propicia uma avaliação positiva, o segundo continua a ser, como no século XIX, reflexo de defeito. Diz Candido: "[Cláudio Manuel da Costa] encontrou a possibilidade de manter muito da sua vocação cultista encontrando ao mesmo tempo a medida que a conteve em limites compatíveis com a repulsa ao desbragado culteranismo da decadência."


Enfim, Palavra Peregrina nos oferece além da demonstração do estado da questão do barroco nas artes e letras brasileiras , excepcional síntese do pensamento estético dos séculos XIX e XX, que possibilita ao leigo nível de compreensão histórica coerente e ao estudioso interessante roteiro das mais diversas vertentes teóricas que plasmam a intelectualidade brasileira em dois séculos.


Mais além, o presente trabalho de Guilherme Simões Gomes Jr. é capaz de produzir efeitos sensíveis no círculos acadêmicos, onde até hoje encontramos avaliações equivocadas acerca desse conceito que, vale dizer, geram problemas na reprodução do saber em níveis mais elementares.
Ademais, Palavra Peregrina é um ótimo nome, pois associa arqueologia do conceito à peculiaridade característica de práticas artísticas (barrocas), que utilizam da construção da metáfora como marca distintiva de engenho e, ainda, salienta a idéia de percurso e desenvolvimento contínuo, fato essencial para o mundo do conhecimento.