domingo, 22 de julho de 2007

As Catilinárias de Cícero

(Busto de Cícero - Musei Capitolini - Roma)

(Texto publicado na extinta Revista República. v. 52, p. 96, 01 fevereiro de 2001)


por Paulo Martins

Não é raro se ouvir em certos momentos de impaciência, ou mesmo, de intolerância a antiga sentença latina: "Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?" (Até quando, enfim, Catilina, abusarás de nossa paciência?), absolutamente descontextualizada, fora de lugar mesmo, como forma de se mostrar que aqueles poucos anos de latinório do ginásio e clássico (desculpem a velha nomenclatura educacional) serviram para alguma coisa; mesmo que essa coisa, na maior parte das vezes, não passe de puro pedantismo, diletantismo, pernosticismo e outros "ismos" menos cotados.
Mal sabem os pronósticos (aplicados, é certo, nas aulas de rosa, rosae, rosam, rosa..., rosarum) que tal sentença abre um conjunto de quatro discursos pronunciados em Roma entre 8 de novembro e 5 de dezembro de 63 a.C. por Cícero, não o padre do sertão, mas o maior orador e retor romano, representante quase absoluto da oratória forense e senatorial, fato que, por si, o alavancou à magistratura máxima da República, o consulado.
Mas em que contexto a impaciência de Cícero deve ser aplicada? Dado que é um clássico, isso pouco importaria, mesmo assim, vale a pena lembrar que Catilina, a quem se refere o orador e mesmo o próprio Cícero faziam parte da elite, da aristocracia dominante que julgava, apesar do voto censitário, das desigualdades sociais, da impiedade econômica e do absoluto jugo expansionista, ser a República (Res publica) o modelo político mais adequado e até mesmo ideal para as plagas mediterrâneas.
No entanto, distinguiam-se. Um o senador atento às normas vetustas, um conservador; o outro, um homem empobrecido, arruinado, apesar da origem patrícia, e associado, por força de conseqüência, às causas populares (redistribuição de terras e perdão de dívidas junto ao estado), logo um populista empedernido. Mesmo sendo Cícero um homo nouus (homem novo), o que para os romanos muito significava, pois não possuía ascendência patrícia, conseguiu vencer Catilina pela via institucional para o Consulado de 63 e 62 a.C.
O segundo insatisfeito com este resultado optou pela via armada para chegar ao poder, defendendo a mudança de sistema. Foi veementemente rechaçado, ou melhor, morto por decisão do Senado a bem da República. A ação de Catilina tornou-se exemplar: contra o sistema vigente não há perdão, a exemplo de Cipião que anos antes já havia atentado contra Tibério Graco, este, porém, lídimo representante da plebe e defensor inconteste desta.
A série de discursos é tendenciosa, sem dúvida, no entanto traz à tona a questão do jogo do poder, não raramente, inescrupuloso, violento e, até mesmo, hediondo. Neles, Cícero traça o perfil do homem romano que ousou se colocar contra a urbs - bela metonímia de Roma. Ao lado d'As Catilinárias, outra obra deve ser lida: A conjuração de Catilina de Salústio cuja visão mais imparcial delineia monograficamente todo o processo de insurreição do período e mostra que próximo a Catilina somavam-se grandes homens da política da época, entre eles Crasso, aquele do erro. E isto significa que Catilina não agia tão pouco amparado como pode parecer com a leitura de Cícero. A história recente do Brasil oferece inúmeros exemplos de "Catilinas", homens que, ao se colocarem contra o establishment abraçam o populacho, aproximam-se das causas sociais, fingem agir em nome da maioria, porém, continuam sendo merecedores, hors-councurs, do troféu insensibilidade social. Distantes, portanto, das causas populares, homens públicos sistematicamente continuam a criar simulacros éticos em nome de seu próprio bem-estar. Nesse sentido, Cícero é atualíssimo.