terça-feira, 28 de outubro de 2008

Propércio 2,15 - uma tradução

O me felicem! o nox mihi candida! et o tu
lectule deliciis facte beate meis!
quam multa apposita narramus verba lucerna,
quantaque sublato lumine rixa fuit!
nam modo nudatis mecum est luctata papillis, -5
interdum tunica duxit operta moram.
illa meos somno lapsos patefecit ocellos
ore suo et dixit 'Sicine, lente, iaces?'
quam vario amplexu mutamus bracchia!quantum
oscula sunt labris nostra morata tuis! -10
non iuvat in caeco Venerem corrumpere motu:
si nescis, oculi sunt in amore duces.
ipse Paris nuda fertur periisse Lacaena,
cum Menelaeo surgeret e thalamo;
nudus et Endymion Phoebi cepisse sororem -15
dicitur et nudae concubuisse deae.
quod si pertendens animo vestita cubaris,
scissa veste meas experiere manus:
quin etiam, si me ulterius provexerit ira,
ostendes matri bracchia laesa tuae. -20
necdum inclinatae prohibent te ludere mammae:
viderit haec, si quam iam peperisse pudet.
dum nos fata sinunt, oculos satiemus amore:
nox tibi longa venit, nec reditura dies.
atque utinam haerentis sic nos vincire catena -25
velles, ut numquam solveret ulla dies!
exemplo iunctae tibi sint in amore columbae,
masculus et totum femina coniugium.
errat, qui finem vesani quaerit amoris:
verus amor nullum novit habere modum. -30
terra prius falso partu deludet arantis,
et citius nigros Sol agitabit equos,
fluminaque ad caput incipient revocare liquores,
aridus et sicco gurgite piscis erit,
quam possim nostros alio transferre dolores: -35
huius ero vivus, mortuus huius ero.
quod mihi secum talis concedere noctes
illa velit, vitae longus et annus erit.
si dabit haec multas, fiam immortalis in illis:
nocte una quivis vel deus esse potest. -40
qualem si cuncti cuperent decurrere vitam
et pressi multo membra iacere mero,
non ferrum crudele ncque esset bellica navis,
nec nostra Actiacum verteret ossa mare,
nec totiens propriis circum oppugnata triumphis -45
lassa foret crinis solere Roma suos.
haec certe merito poterunt laudare minores:
laeserunt nullos pocula nostra deos.
tu modo, dum lucet, fructum ne desere vitae!
omnia si dederis oscula, pauca dabis. -50
ac veluti folia arentis liquere corollas,
quae passim calathis strata natare vides,
sic nobis, qui nunc magnum spiramus amantes,
forsitan includet crastina fata dies.




Ó minha felicidade! Ó minha luminosa noite! E tu, leito que se tornou alegre, com meus prazeres! Como palavra muita falamos à penumbra da lâmpada! Quanta batalha lutou-se, apagadas as luzes! (5) Pois, ora comigo lutou com seios desnudos e, por vezes, a túnica dissimulada fez-se morosa.

Com seus beijos, ela abriu meus olhos cerrados no sono e disse: “é assim que dormes inerte?” Quantos abraços trocamos variados! Quantos (10) beijos meus habitaram teus lábios! Não apraz a Vênus destruir [o ato] com cego movimento: Caso não saibas: os olhos são comandantes no amor.

O próprio Páris, diz-se, ter morrido com a nudez d’Helena quando se levantava do leito de Menelau. (15) Conta-se também que Endímion capturou nu a irmã de Febo e deitou com a deusa nua. Mas, se obstinadamente vestida deitares, sob a veste rota vais sentir minhas mãos: Ainda mais... Se minha fúria impelir-me além, (20) mostrarás os braços maculados a tua mãe.

Teus seios caídos ainda não te impedem de brincar: isso te preocuparás se já tiver vergonha de ter parido. Enquanto os fados me permitirem: saciaremos os olhos de amor: a noite te chegará longa e o dia não há de retornar.(25) Queira que desejes que estejamos nós assim tão liados com laços duradouros que dia nenhum os dissolva.
Que as pombas unidas te sirvam de exemplo no amor , macho e fêmea em total união.

Erra quem procura o fim de um louco amor: (30) O verdadeiro amor não conhece limite algum, antes a terra enganará com falso pomo os lavradores e o sol fará avançar mais rápido os negros cavalos e os rios começarão a retroceder à nascente e os peixes secos estarão em árido sorvedouro , (35) Antes que eu possa transferir meus amores a outro amor. Dela vivo serei; morto dela serei.

Se ela desejar me conceder com ela noites tais, longo me será um ano de vida; se ela me der muitas, vou me tornar imortal nelas: (40) Numa noite qualquer um pode ser deus. Se todos desejassem levar tal vida e descansar seus corpos tomados de muito vinho, não haveria a espada cruel tampouco naus bélicas, nem o mar de Ácio revolveria nossos despojos, (45) nem, tanta vez, em meio a ataques, com tantos triunfos, Roma estaria cansada de soltar os cabelos.

Com mérito certo, os jovens poderão louvar esses feitos: Nossas taças nunca afrontaram deus nenhum. Tu, por tua vez, enquanto é dia, não abandones os prazeres da vida!(50) Ainda que dês todos os beijos, poucos haverás dado. Pois, como folhas extinguem grinaldas ressequidas, e as vês nadar espalhadas nas taças aqui e acolá, assim a nós, que agora amantes, aspiramos a grande amor, talvez o dia de amanhã encerre nossos fados.

domingo, 26 de outubro de 2008

Biografias Antigas – Plutarco e Suetônio

Paulo Martins

“Demos sem dúvida grande demonstração de paciência; e se os tempos antigos viram o que havia de extremo em liberdade, nós o tivemos quanto à servidão, porque até o uso do falar e do ouvir, por espionarem, nos tiraram. A própria memória teríamos perdido com a palavra, se estivesse tão em nosso poder esquecer quanto calar.”
Tácito – A vida de Agrícola, 2.


A Literatura e a História são disciplinas muito próximas se observarmos as práticas letradas do mundo greco-romano. Aristotelicamente, apenas se distanciariam pelo fato de a primeira tratar do que poderia ser e a segunda do que teria sido. Esta, assim, se ocuparia do particular, aquela, do universal. Entre as diversas possibilidades de subgêneros historiográficos antigos (comentários, histórias pragmáticas, histórias universais, monografias, breviários, anais etc.), temos um que, modernamente, encontra-se mais no limite das duas artes (História e Literatura): a biografia, a que os romanos chamavam uitae (vidas), e os gregos, bíoi (igualmente, vidas). Afinal quem não afirmaria esse limite ao ler os livros de Ruy Castro (O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha, Carmen: Uma biografia), de Fernando Morais (Chatô, O Rei do Brasil ou Olga), ou de Nelson Motta mais recentemente (Vale Tudo: Tim Maia).

Alguém, entretanto, poderia dizer que esses textos, antes de ser literatura, seriam, sim, jornalismo, ou pelo menos aquilo a que se dá o nome de grande reportagem, portanto apegando-se ao que foi – logo, à História. Em parte tal afirmativa é correta, porém, inegável também é que nesses livros, antes de qualquer intenção dos autores em produzir um retrato ou relato objetivo do biografado, preocupam-se com a construção de retratos subjetivos, eivados, contaminados, assim, de focos específicos, de argumentos pessoais, de parcialidades claras e afetivas e, nesse sentido, mais do que retratarem ou relatarem o que foi, efetivam o que poderia ser e, logo, seriam uma ficção.

Pois bem, essa mesma questão se coloca na literatura greco-romana. Penso aqui em duas obras e dois autores, um grego e um romano: Plutarco (45-120 d.C.) e Suetônio (69-141 d.C.). O primeiro, escritor grego, formou-se na Academia de Atenas e foi autor de mais de 200 obras entre as quais está Vidas Paralelas. O segundo entrou para o serviço imperial como encarregado de bibliotecas e arquivos, conselheiro cultural, foi secretário da correspondência do imperador Adriano (não o da Internzionale de Milão), tendo escrito muitas obras entre as quais A Vida dos Doze Césares, talvez seja a mais famosa.

Apesar de Plutarco ser grego, pode-se afirmar que esse subgênero historiográfico é romano, pois que apenas temos registros isolados de sua existência entre os peripatéticos, sem que as obras propriamente ditas tenham nos chegado, o que em certa medida é um índice de sua apequenada importância entre os helênicos de maneira geral. Assim, seu desenvolvimento e circulação são pródigos entre os romanos desde o final da República no final do século 1 a.C. – Cornélio Nepos (De illustribus uirisAcerca dos Homens Ilustres) é uma referência – até os estertores do Império com Aurélio Victor (Liber De Caesaribus – Livro sobre os Césares) no século 4 d.C..



Vitae illustrium virorum. Rome, printed by Ulrich Han (Udalricus Gallus), 1470 - Collection: University of Leeds Library


Sob o ponto de vista de sua constituição, é possível dizer que as biografias, ao contrário da analística (outro subgênero historiográfico) que se ocupa da narração dos fatos tendo em vista o encadeamento cronológico ou causal dos episódios, elas se detêm na efetivação de um retrato verbal, isto é, na construção de uma imagem que passa por categorias aristotélicas do discurso demonstrativo que prevê o louvor ou o vitupério das coisas da alma, das coisas do corpo e das coisas externas. Assim são figuradas nas biografias tais categorias assim dispostas pelo primeiro tratado de retórica romana de que se tem notícia, a Retórica a Herênio, livro III, 6, 10:

“Agora passemos para o gênero demonstrativo da causa. Como esta causa divide-se em louvor e vitupério, consideraremos o louvor a partir de certos pensamentos e o vitupério será cotejado a partir dos contrários. O louvor pode, pois, ser das condições externas, do corpo e da alma. As condições externas são as que, por acaso ou fortuitamente, podem ocorrer favoráveis ou adversas: estirpe, educação, riqueza, poder, glórias, civilidade, amizades e as que são semelhantes ou as que são contrárias. As condições do corpo são as que a natureza atribuiu ao corpo vantajosa ou desvantajosamente: velocidade, força, elegância e vigor. As condições da alma são aquelas que consistem de nossa ponderação e reflexão: prudência, justiça, coragem, modéstia e as contrárias.” (Tradução Paulo Martins)

Os biografados, portanto, são revistos e revisitados a partir de sua origem, de sua educação e riqueza, de seu poder e glória, de sua civilidade e amizades, de sua velocidade e força, de sua elegância e vigor, de sua prudência e justiça, de sua coragem e modéstia. Entretanto, tais categorias poderiam ser observadas para o bem ou para o mal, de acordo com o foco do historiador (biógrafo) e, isso, talvez imprimisse ao texto final certo caráter subjetivo e, portanto, carente da objetividade científica desejável pela História e indiferente à Literatura. Plutarco em suas Vidas Paralelas assim escreve:

“Escrevendo neste livro a vida do rei Alexandre e a de César, por quem Pompeu foi derrotado, em vista da abundância das ações implicadas, não diremos nada como preâmbulo, apenas suplicando ao leitor que não nos denigra por não relatarmos tudo que foi celebrado, nem abordarmos cada coisa a fundo, abreviando a maioria dos fatos. É que não escrevemos histórias, mas vidas – e não é nas ações mais célebres, em absoluto, que está a demonstração de virtude ou do vício, mas, muitas vezes, um breve feito, uma palavra, uma brincadeira dão ênfase ao caráter mais que os combates mortais, as maiores batalhas e os assédios de cidades. 3. Portanto, como os pintores salientam as semelhanças a partir do rosto e das formas visíveis em que se manifesta o caráter, preocupando-se menos com as outras partes, assim também deve-se permitir-nos penetrar antes nos sinais da alma e, através disso, desenhar a vida de cada um, deixando as grandezas e os combates." (Tradução Jacyntho Lins Brandão)

Essa intencionalidade de Plutarco permeia toda sua obra biográfica que curiosamente é divida aos pares, produzindo ao final de cada dupla o que a tradição chamou de síncrise, isto é, o contraste, o confronto entre os biografados de forma a produzir uma comparação ética entre os ilustres. Assim em Vidas Paralelas estão biografados: 1) Teseu e Rômulo; 2) Licurgo e Numa; 3) Sólon e Publícola; 4) Temístocles e Camilo; 5) Péricles e Fabio Máximo; 6) Alcibíades e Coriolano; 7)Timoleonte e Emilio Paulo; 8) Pelópidas e Marcelo; 9) Aristides e Catão o velho; 10) Filópedes e Flamínio; 11) Pirro e Mário; 12) Lisandro e Sila; 13) Cimón e Lúculo; 14) Nícias e Crasso; 15)Eumenes e Sertório; 16) Agesilau e Pompeu; 17) Alexandre e César; 18) Fócio e Catão o jovem; 19 e 20) Ágis e Cleômines/Tibério e Caio Gracco; 21) Demóstenes e Cícero; 22) Demétrio e Antônio; 23) Dion e Bruto.

A estrutura do conteúdo (res) da obra se Suetônio é a mesma, ou seja, fundada nas categorias que devem ser louvadas e/ou vituperadas. Entretanto, os objetos de imitação do historiador romano são mais “perigosos”, afinal ele trata dos 11 primeiros imperadores romanos, antecedidos por Júlio César que não fora um deles, mas sim precursor e pavimentador de um novo sistema que a partir de Otávio Augusto ganha a posteridade até o fim do chamado Império Romano. O suposto “perigo” na figuração dos imperadores reside no “como”, muita vez, Suetônio os registra, inserindo anedotas, os ridiculariza, produz avaliações apimentadas e picantes, contudo sem abrir mão de uma ponderação científica. Vale salientar, contudo, que muita fonte historiográfica do autor não passa de boataria o que equivaleria a uma possível “ficção” histórica. Desfilam pelas linhas do livro assim Júlio César, Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero, Galba, Otão, Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano. Sobre Augusto, Suetônio diz:

“Nem os amigos negam que tivesse cometido adultérios, mas o desculpam: não o teria feito por luxúria, mas por inteligência, para que mais facilmente pudesse, pelas mulheres, descobrir os desígnios dos adversários. Acusou-o Marco Antônio de ter precipitado o casamento com Lívia e de ter, à vista do marido, tirado do triclínio a esposa de um consular, levando-a para o quarto e trazendo-a depois com as orelhas rubras e o cabelo em desordem (...)” (Tradução Agostinho da Silva)


Suetônio

Sejam esses registros história ou ficção, certo é que antes de tudo registram a maneira de ser dos homens ilustres da Antigüidade Clássica. E se essa foi modelo de algo no mundo ocidental, isso não independe dos agentes, dos construtores dessa cultura. Portanto, fato ou ficção, isso pouco importa.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Novo Sítio de Letras Clássicas



Ontem foi publicado na rede o novo sítio do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

O Endereço é: www.fflch.usp.br/dlcv/lc

Vale ser visitado!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ausônio

Epigrama, 96

Tradução de Paulo Martins

XCVI [DE HERMIONES ZONA]

Rubra faixa libertava bicos túrgidos
d'Hermíone: texto havia, era elegíaco:
"Tu que lês a inscrição, Páfia ordena que me ames
e com teu exemplo não vetes ninguém d'amar"

Punica turgentes redimibat zona papillas
Hermiones: zonae textum elegeon erat:
"Qui legis hunc titulum, Paphie tibi mandat, ames me
exemploque tuo neminem amare vetes.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

História e Letras – Verdade e Verossimilhança

Paulo Martins

Hoje em dia, quando falamos em História ou em Literatura pensamos em disciplinas estanques, separadas. A primeira se ocupa da Verdade e é científica; a segunda é ficção e se ocupa do prazer estético, da fruição. Contudo, nem sempre a distinção entre as duas existiu, pois entre os gregos e romanos da Antigüidade, a História era considerada gênero literário como o teatro, a poesia épica e lírica e como tal deveria ser tratada, não se excluindo, porém, suas características diferenciadas que a associam com eventos ocorridos, com a narração, com o conhecimento do mundo e dos homens que nele se encontram.


Aristóteles - Musée du Louvre

Aristóteles, filósofo, cuja obra é caracterizada pelo largo espectro de observação do mundo, em seu texto sobre a poesia, a Arte Poética, no capítulo IX, propõe certa reflexão entre as duas, ao afirmar que: “não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) ─ diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere-se aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (Aristóteles – Arte Poética. São Paulo, Ed. Abril. 1971. p. 451. Trad.: Eudoro de Souza)

Portanto, se as Histórias de Heródoto, o pai da História, poderiam ser postas em verso e isto não impediria que seu texto fosse histórico, então, a conclusão é imediata: os critérios de análise de ambas são os mesmos, a não ser o fato de uma tratar de assuntos que são gerais, a poesia; e a outra tratar de assuntos que são específicos ou particulares, a história. Por outro lado, se a literatura e a poesia tratam de eventos que podem ocorrer, são grandes as possibilidades de encontrarmos textos poéticos e, portanto, literários que deitem seu tema sobre ocorrências que, por obra do acaso ou pela observação sistemática dos homens, tornaram-se uma realidade histórica sob uma perspectiva mais geral. Assim a poesia e a literatura podem auxiliar o historiador em sua tarefa de explicação do mundo, de compreensão da natureza humana.


Hayden White (1928) - Professor Emérito da Universidade da Califórnia

Sob um aspecto formal, podemos partir de outro princípio que norteia a produção histórica e a literária: o texto. E, dentro desta chave, o historiador contemporâneo Hayden White propõe: “Há, porém, um problema que nem os filósofos nem os historiadores encararam com muita seriedade e ao qual os teóricos da literatura só têm concedido uma atenção momentânea. Essa questão diz respeito ao status da narrativa histórica, considerada exclusivamente como um artefato verbal que pretende ser um modelo de estruturas e processos há muito decorridos e, portanto, não-sujeitos a controles experimentais ou observacionais. Isso não quer dizer que historiadores e filósofos da história não observaram a natureza essencialmente provisória e contingente das representações históricas e sua suscetibilidade a uma revisão infinita dos problemas à luz de novos testemunhos ou de uma conceituação mais elaborada.” (White, H. – Trópicos do discurso. São Paulo, Edusp. 1994. pp.98-9.)

Observando essas relações entre Literatura e História, podemos inferir que durante muito tempo e, isto vale principalmente para a pesquisa histórica do século XIX, portanto, idealista e, porque não dizer, romântica, o historiador buscou a partir de considerações específicas de certo evento histórico, traçar certas generalizações que tornaram a história algo geral e, assim, mais poética sob o ponto de vista aristotélico. Assim, ao mesmo tempo em que pleiteavam o estatuto científico da história, implementavam características subjetivas e pessoais de análise que não se coadunavam com o preceito de história como ciência e aproximavam-na de uma visão romântica de poesia.


Um fato interessante é que hoje ainda colhemos os frutos desse paradoxo, a História, tal e qual nos é ensinada, prima pelo poder de síntese e de ilações gerais, sem que atentemos para a idéia de que o registro histórico é um texto e, como tal deve ser observado, isto é, um texto que tem um agente por trás de si, um autor que possui sua visão de mundo, suas ideologias e, assim, o historiador não pode ser considerado o arauto da verdade única e exclusiva. Tanto isto é certo que sobre o mesmo evento, podemos encontrar visões, enfoques diferenciados. Um texto que trate da Guerra na Gália sob o ponto de vista de Júlio César seguramente trará por trás de si os interesses pessoais de Júlio César, bem como os interesses populares na República Romana do período, ao passo que, se nos restassem narrativas gaulesas sobre o mesmo evento, o ocorrido teria outra dimensão que não a proposta pelo general romano que, diga-se de passagem, possui vasta obra historiográfica, na qual se encontram seus comentários sobre a guerra na Gália (De Bello Gallico).


Essa mesma idéia que atinge a tarefa do historiador, também poderia ser aplicada ao jornalismo de hoje, desde assuntos mais prosaicos como o futebol até questões de relevância indubitável como o aquecimento global. O ex-jogador e médico Tostão, em sua coluna na Folha de São Paulo de 17 de fevereiro de 2008, mostra como isso pode acontecer, isto é, como uma observação objetiva dos fatos, ou melhor, dos eventos, pode estar a serviço de uma obra de ficção: “Percebi ainda que, quando há pequena diferença técnica entre duas equipes, o resultado de um jogo depende menos desses detalhes técnicos e táticos e mais do erro de um árbitro, de uma bola que bateu em alguém e mudou a trajetória e tantas coisas inesperadas. Após o resultado de uma partida, criamos, com ótimos ou maus argumentos, uma história ficcional, que parece muito ou pouco com a realidade”. (Andrade, Eduardo Gonçalves de (Tostão) – “O tempo passa”. In: Folha de São Paulo, p. D5. São Paulo. 17/02/08.)


Essa visão na Antigüidade Clássica estava descartada por princípio, pois estava na própria formação do homem grego, e, principalmente, do romano, o conhecimento de uma disciplina unificadora dos textos: a Retórica. Contudo, vale aqui eliminar um preconceito que curiosamente é romântico: a Retórica como algo pejorativo. Hoje quando falamos “isto é pura retórica”, estamos dizendo que o discurso ou fala de alguém é absolutamente vazia, sem conteúdo, o próprio Dicionário Houaiss assim propõe em uma de suas acepções: “discussão inútil; debate em torno de coisas vãs.” Tal posição se coaduna com uma aversão ou maldição a que foi submetida toda teoria clássica do texto no século 19. O mesmo preconceito ocorre quando chamamos alguém de “poeta”, como que esse indivíduo fosse um ser de outro planeta, alguém que vivesse no mundo da lua, fora da realidade, o mesmo dicionário indica: “aquele que é dado a devaneios ou tem caráter idealista”. A recusa da teoria poética e retórica clássicas é um marco histórico da produção literária romântica que, como limite estético, valoriza o individual, o gênio, o inspirado, o diferente e menospreza, desqualifica a técnica genérica que independe de recursos mentais pessoais diferenciados para sua consecução.


Se a Retórica não é isso a que estamos acostumados a entender, o que seria então? Nada mais ou menos do que uma disciplina que regula a produção dos textos, lhes impõe limites para que não haja dúvidas para o que se quer significar quando se fala ou se escreve. Podemos dizer que além de regular a produção textual, instrui a audiência, o leitor para os limites do próprio texto. Assim, se um determinado autor propõe uma metáfora ou uma metonímia dentro de seu discurso, seguindo para tanto a utilização de uma das virtutes elocutionis que é o ornatus, a recepção apta, portanto, conhecedora dos recursos discursivos, jamais as lerá como literais. Para ser mais preciso, a Retórica destina-se a operar cada momento específico da produção textual, independentemente do gênero do texto, isto é, se é filosófico, histórico, oratório ou poético.
Assim, o leitor ou até mesmo uma audiência iletratada diante de uma tragédia ou de um relato histórico procurava reconhecer a habilidade do autor, discernindo se o autor atendia ou não as normas reguladoras do gênero textual que produzira.


Pensando, portanto, a História como texto e, dessa maneira, sujeita aos regulamentos da disciplina organizadora e reguladora dos discursos, podemos dizer que ela, a História, pode e deve ser observada sob dois prismas imbricados: um primeiro que é a própria linguagem e um segundo que é o evento. Contudo, o primeiro interfere na significação do segundo, pois ele é a sua matéria prima e o segundo é apenas uma representação do ocorrido. Fazer História para os antigos pressupunha esses dois níveis, assim todos os textos históricos da Antigüidade Clássica greco-romana contam preliminarmente com um prefácio e/ou uma metodologia que esclarecem não só a prática de investigação, mas também, aspectos da própria concepção de representação e, por conseguinte, de escrita.

Não é de outra forma que devemos avaliar os escritos de Herótodo, Tucídides, Salústio, Tito-Lívio, Tácito, Suetônio, Eutópio ou Plutarco. Tomemos o exemplo de “o pai da História”: “Os resultados das investigações de Heródoto de Halicarnasso são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam. (...) Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira a ofender os helenos, e assim prosseguirei com a minha história, pois muitas cidades outrora grandes agora são pequenas, e as grandes no meu tempo eram outrora pequenas. Sabendo portanto que a prosperidade humana jamais é estável, farei menção a ambas igualmente.” (Heródoto – Histórias, Brasília: Ed.UnB. pp.19-20. Trad.: Mário da Gama Cury)


Heródoto de Halicarnasso - c.485-420 a.C.



Heródoto de chofre aponta seu objetivo de escrita “para que a memória não se apague com o passar do tempo, e para que os feitos (...) não deixem de ser lembrados”. Tal asserção deve ser observada sobre dois pontos de vista: o primeiro diz respeito à própria constituição do discurso que pressupõe função objetiva, isto é, seu “estado da questão”, pressuposto retórico do proemium. O segundo, por sua vez, diz respeito à recepção do texto no viés da narrativa helênica cuja origem é essencialmente épica, afinal há que se observar a indicação de termos que se filiam à tradição homérica: “memória”, “passar do tempo”, “feitos maravilhosos e admiráveis”, “ser lembrados”. Mais adiante, Heródoto aponta o foco particular de sua narrativa ao propor: “Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira”. Sua História, portanto, apesar de dar atenção a dois lados do evento, não exclui em hipótese alguma a “minha opinião”, o que em certa medida obtura a possibilidade da Verdade-geral e faz com que a narrativa granjeie contornos de um verossímil-particular a partir do “sujeito” que o enuncia.


Michel De Certeau: 1925-1986


Entretanto, mesmo tendo em mãos esses dois aparatos essenciais à compreensão dos textos da Antigüidade Clássica, a saber: uma Retórica e certa Metodologia, a historiografia antiga estaria sub iudice no que se refere à Verdade, pois que ela, a História, ainda seria tutelada pelo prisma, pelo foco ou pelo enfoque de um morto, de um ausente ou, simplesmente, de uma ruína que é o próprio texto, seu suporte. Michel De Certeau bem afirmou: “Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no clamo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente. Ela reitera um regime diferente, os mitos que se constroem sobre o assassinato ou uma morte originária, e que fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente de um começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer.” (De Certeau, Michel – A Escrita da História. RJ: Forense. 1982. p.57.)

III SIMPÓSIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS DA USP

(Simpósio Internacional – 18h)

PERÍODO DO CURSO:

de 29, 30 e 31 de outubro de 2008

às quarta, quinta e sexta-feira: 9 às 17h

PÚBLICO-ALVO:

Pesquisadores, docentes, graduandos, pós-graduandos e interessados em Estudos Clássicos.

VAGAS:

100

MATRÍCULA

PERÍODO: a partir de 29.09.2008, enquanto houver vaga.

VALOR: R$ 10,00

OBSERVAÇÃO:

1. Matrícula somente pela Internet;
2. O pagamento será mediante boleto bancário encaminhado via e-mail, no prazo de 24 horas.

OUTRAS INFORMAÇÕES


PROGRAMA E MINISTRANTE:

29 de outubro

Tendências filosóficas "menores"

9h – 9h40: Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho (USP)
9h40 – 10h20: Prof. Dr. Olimar Flores Júnior (UFMG)
10h20 – 10h40: intervalo
10h40 – 11h20: Prof. Dr. Luis Felipe Bellintani Ribeiro (UFSC)
11h20 – 12h: debate

O romance antigo

14 - 14h40: Prof. Dr. Jacyntho Lins Brandão (UFMG)
14h40 - 15h20: Prof. Dr. Pedro Ipiranga Júnior (UFPR)
15h20 – 15h40: intervalo
15h40 – 16h20: Prof. Dr. Cláudio Aquati (UNESP)
16h20 – 12h: debate

30 de outubro

Gêneros dramáticos: drama satírico e mimo

9h - 9h40: Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti (UNESP)
9h40 – 10h20: Profa. Dra. Claudia Fernandez (UNLP – Argentina)
10h20 – 10h40: Intervalo
10h40 – 11h20: Profa. Dra. Tereza Virginia Ribeiro Barbosa (UFMG)
11h20 – 12h: debate
14h – 17h: Encontro com os participantes para discussão de pesquisas
em andamento na área de Estudos Clássicos

31 de outubro

A cidade antiga: arqueologia e história

9h - 9h40: Prof. Dr. Luis Otávio de Magalhães (UESB)
9h40 – 10h20: Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano (USP)
10h20 – 10h40: Intervalo
10h40 – 11h20: Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello (USP)
11h20 – 12h: debate

Tradução

14h - 14h40: Prof. Dr. José Antônio Alves Torrano (USP)
14h40 – 15h20: Prof. Dr. André Malta Campos (USP)
15h20 – 15h40: Intervalo
15h40 – 16h20: Prof. Dr. Joaquim Brasil Fontes (UNICAMP)
16h20 – 17h: debate

OBJETIVO:

Os benefícios esperados da reunião centram-se, antes de tudo, na possibilidade de permitir o intercâmbio acadêmico dos pesquisadores da cidade de São Paulo com seus pares de representativas universidades do país e do exterior onde se desenvolvam pesquisas na área de Estudos Clássicos (UNLP - Argentina, UNICAMP, UNESP, UFMG, UFSC, UESB, UFPR). Assim, o Simpósio consistirá em uma oportunidade a mais de diálogo oferecida aos pesquisadores que comporão o público-alvo bem como aos palestrantes da Reunião, uma vez que todos trabalham com temas afins relativos à questão da definição, construção e percepção das múltiplas formas de erudição no âmbito de Estudos Clássicos.

COORDENADORES:
Profs. Drs. Adriane da Silva Duarte, Breno Battistin Sebastiani e Marcos Martinho dos Santos, da FFLCH/USP.

MINISTRANTE: Alexandre Antoniazzi Franco de Souza (pós-graduando da área de língua e literatura italiana da FFLCH) e Roberta Ferroni (mestre pela área de língua e literatura italiana da FFLCH) .

PROMOÇÃO: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, FFLCH/USP.

CERTIFICADO: Para fazer jus ao certificado o participante precisa ter
100% de presença.

LOCAL DO CURSO: Prédio de Ciências Sociais - Av. Prof. Luciano
Gualberto, 315 - sala 08.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Propércio 1, 12 - Uma Tradução

1, 12

Por que não paras de me imputar a calúnia da preguiça
Por que Roma, minha cúmplice, me retém?
Ela está a quilômetros longe de meu leito
Como está Hípanis (1) do vêneto Erídano (2)
Cíntia não me nutre amor com abraços de sempre
Nem me fala, doce, ao ouvido.
Outrora eu lhe era grato: naquele tempo, ninguém
teve a sorte de poder amá-la com igual fidelidade.
Fomos motivo de inveja! Um deus me oprimiu ou uma erva
colhida nos montes de Prometeu (3) nos separou?
Não sou o que fora: um longo caminho muda as meninas.
Hoje sozinho sou obrigado, antes, a conhecer
longas noites e a ser funesto aos meus próprios ouvidos!
Feliz aquele que pôde chorar com a menina presente;
o Amor em nada se alegra com lágrimas caídas
ou, se desprezado, pôde mudar as paixões,
Elas também são alegrias, mudado o jugo.
Mas nem fas amar outra nem desejar desistir desta:
Cíntia foi a primeira e o termo será Cíntia.

I, XII

Quid mihi desidiae non cessas fingere crimen,
quod faciat nobis Cynthia, Roma, moram?
tam multa illa meo divisast milia lecto,
quantum Hypanis Veneto dissidet Eridano;
nec mihi consuetos amplexu nutrit amores
Cynthia, nec nostra dulcis in aure sonat.
olim gratus eram: non ullo tempore cuiquam
contigit ut (4) simili posset amare fide.
invidiae fuimus: num me deus obruit? an quae
lecta Prometheis dividit herba iugis?
non sum ego qui fueram: mutat via longa puellas.
quantus in exiguo tempore fugit amor!
nunc primum longas solus cognoscere noctes
cogor et ipse meis auribus esse gravis.
felix, qui potuit praesenti flere puellae
(non nihil aspersus gaudet Amor lacrimis),
aut, si despectus, potuit mutare calores
(sunt quoque translato gaudia servitio).
mi neque amare aliam neque ab hac desistere fas est:
Cynthia prima fuit, Cynthia finis erit.


Notas:

(1 )Rio que deságua no Mar Negro na Samartia.
(2) Rio Pó.
(3) O Cáucaso na Cólquida. Cf. elegias i, 1, 24 e i, 5, 6.
(4) contingo + ut = acontece que, ter a sorte de.