sábado, 1 de setembro de 2007


A tragédia das tragédias – Édipo Rei de Sófocles

Édipo e a Esfinge - Museu do Louvre - Paris

Paulo Martins



Talvez entre as poucas tragédias gregas que nos chegaram, uma seja realmente muito especial: Édipo Rei. Não que as demais de Sófocles (496-405 a.C.): Antígona, Ájax, Édipo em Colono, Electra, Filoctetes ou As Traquinas, ou mesmo as de Ésquilo (525-456 a.C.) e as de Eurípides (480-406 a.C.) sejam obras menores, longe disto! Contudo, a dimensão humana e divina, a trama e a constituição das personagens desenhadas nesta obra ultrapassam, de longe, ao que se via nos festivais de teatro da Grécia dos séculos V e IV a.C., ou mesmo, ouso dizer, ao que se vê nos dias de hoje em relação ao gênero dramático. Outro fator que pode ter colaborado para sua popularização, a despeito de sua qualidade literária, foi ter sido ponto de referência de Freud e Jung – este último deu nome ao conceito descrito pelo primeiro – para uma peculiar constelação de desejos amorosos e hostis que a criança vivencia em relação aos seus pais no pico da fase fálica. Porém, creio que para nós, que gostamos de literatura antiga, Freud hoje possa ser deixado de lado, afinal, Sófocles jamais foi a Londres ou a Viena, tampouco, fez terapia.


Quando, no século IV a.C., Aristóteles (384-322 a.C.) propôs uma teoria da tragédia em seu texto a Arte Poética, sistematicamente, usou como exemplo de tragédia bem construída o Édipo Rei. Apontou elementos que deveriam ser seguidos pelos futuros autores de teatro a fim de lograrem sucesso com suas composições. E, de fato, a tradição clássica nos mostra que seus conselhos eram profícuos. Entre muitos, três são fundamentais: o terror e a piedade, o reconhecimento e a peripécia e, por fim, a função do coro dentro do enredo. Tais elementos observados no interior da obra podem, em certa medida, justificar a fama e a glória desta peça.


Édipo é uma personagem que já nasceu com seu destino predeterminado, seus pais verdadeiros, Laio e Jocasta, antes do nascimento, souberam que o destino dele era matar o próprio pai. Nesse sentido, houve por bem eliminá-lo ao nascimento e, para tanto, deram-no a um escravo para que o matasse, pendurando-no pelos pés no alto do monte Citéron na Beócia – vale dizer que Édipo significa “de pés inchados”. Lá colocado, foi salvo por um pastor, que o entregou aos reis de Corinto, Políbio e Mérope, os quais o criaram como se fosse seu filho. Já na maturidade, Édipo vai ao oráculo de Delfos para saber de Apolo qual seria seu destino e, esse lhe informa que mataria seu pai e se “casaria” com a mãe. Horrorizado com tal vaticínio, foge para tentar evitar o destino prenunciado. É quando volta, sem saber, ao seio dos pais verdadeiros. Entretanto, nessa viagem encontra-se com Laio e o mata. Ao chegar a Tebas, sua cidade natal, a mesma era assolada por uma esfinge, que devorava a todos que não conseguissem decifrar seus enigmas. Édipo para o suposto “bem da cidade” decifra o enigma e devolve a paz à cidade. Com isso e com a morte do rei de Tebas (Édipo já matara Laio, seu pai), Édipo assume o poder da cidade, além de os cidadãos darem-lhe Jocasta como esposa. Tal situação trágica corresponde ao início da peça de Sófocles, pois que é a partir desse ponto que o teatro se desenrola. A cidade, por conta da confirmação do oráculo inicial de Apolo, passa a ser dizimada por uma peste sem que o rei, Édipo, e toda população entendam o porquê.


Toda tragédia deve, pois, suscitar dois sentimentos: terror e piedade e, estes podem advir do espetáculo cênico, isto é, de uma montagem bem elaborada e do bom desempenho dos atores; como, também, da excelência da trama, do enredo. Neste segundo caso, o texto se desprenderia da encenação e autonomamente sobreviveria, despertando aquelas sensações que caracterizam a tragédia, ou seja, a íntima conexão entre os atos seria capaz de despertar em nós a purgação dos males (catarse) que afligem as personagens e, segundo o filósofo, isso acontece no Édipo Rei. Assim, não precisaríamos assistir ao Édipo, bastaria lê-lo.


Outra característica importante da tragédia é a presença do reconhecimento e a peripécia. No primeiro caso, um mecanismo de composição que determina que uma personagem passa do desconhecer ao conhecer, impondo uma alteração no rumo dos acontecimentos. Diz Aristóteles: “O ‘reconhecimento’, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.” Já o segundo seria a alteração no rumo da história em seu contrário, isto é, “a mutação dos sucessos no contrário”. Esses dois elementos constitutivos da tragédia quando ocorrem simultaneamente produzem um efeito belíssimo e é o que acontece na peça de Sófocles: Édipo deverá chegar à conclusão, sozinho, de que ele é o flagelo de Tebas, a não confirmação de sua morte inicial instaurou um confronto entre o plano humano e o plano divino do qual só pode haver um vencedor, os representantes de forças superiores. A descoberta por parte do protagonista de que ele mesmo é o causador dos danos, ao mesmo tempo em que se caracteriza como um reconhecimento, também produz uma peripécia na tragédia, alterando o desenrolar dos fatos em seu contrário, culminando com o desenlace da trama que se reduz a uma autopunição que é a cegueira física de Édipo, reflexo de uma cegueira existencial.


Ainda segundo Aristóteles, uma tragédia bem escrita não pode deixar de lado a função do coro que deve ser considerado uma personagem como outra qualquer, contudo com suas características próprias, ou seja, uma personagem coletiva que se atém ao representar o pensamento da cidade, da polis e se ocupa da dimensão humana da tragédia, desempenhando um papel coerente ao enredo. Édipo Rei de Sófocles, muito além de nos colocar diante de forças divinas superiores e irreprocháveis, também nos coloca diante a clareza, vitalidade e racionalidade do mundo humano grego, que não é outro senão o nosso próprio.

Um comentário:

Natália disse...

Parabéns pelo texto! Foi bastante esclarecedor pra mim, que sou aluna da FEUSP e estou cursando uma disciplina sobre o teatro grego, tema que ainda não conheço bem. Um abraço.