DUBY, GEORGES – História Artística da Europa. Idade Média. Tomo I e II. São Paulo. Paz e Terra. 1998.
Paulo Martins
Pautada basicamente na inter-relação entre história e as demais ciências humanas, a nova história (La nouvelle histoire) ou a Escola dos Annales operou durante este século uma verdadeira “revolução” (Cf. Peter Burke – A Escola dos Annales, 1991) na historiografia. Efeitos dessa revolução podem ser observados nas inúmeras publicações dessa nova concepção de fazer história.
Dentro do grupo de intelectuais, reunidos em torno do periódico Annales d`histoire économique et sociale , encontram-se: Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie, Philippe Ariès, Paul Veyne, além de agregados como Michel Foucault, Michel De Certeau e Claude Levy-Strauss. Estes nomes, enfim, revitalizaram e redirecionaram a ciência histórica e produziram epígonos nos quatro cantos do mundo, revolucionando conceitos de longa duração, curta duração, cultura material, mentalidades, etc..
Fundamentalmente, o projeto dos Annales visava a transferir o eixo constitutivo da história produzida até então, que era o da história do poder central ou história oficial, para o eixo da história de capilaridade social, observando-se as relações com a sociologia, com a antropologia, com a psicologia e as demais ciências humanas. Dessa maneira, não far-se-ia mais história de cima para baixo, mas de baixo para cima, a história das menores unidades de relação dentro do corpo social, inserindo-se, assim, na história aqueles que até então se viam desapropriados de sua própria história, excluídos pela história do poder.
Foi dessa maneira que grande um número projetos se desenvolveram a partir do primeiro quartel deste século: o da história da vida cotidiana, o da vida privada, o das mulheres, o das crianças, o da loucura, o do homossexualismo, etc.
O Brasil, por sua vez, presenciou mais proximamente (1997) este fenômeno acadêmico com a publicação dos volumes dedicados à história da sua vida privada que seguem o paradigma da obra francesa homônima.
História Artística da Europa é mais um projeto audacioso que vem somar a esta linha do fazer histórico. Os tomos relativos à Idade Média (dois), organizados por Duby, seguramente um dos maiores medievalistas dos nossos dias, estão baseados em três princípios: a iconografia deve ter precedência sobre as dissertações; a iconografia deve apoiar-se num guia de leitura e, por último, deve abarcar vastos territórios, ou seja, deve observar um intercâmbio franco entre arte e as sociedades que moldam autor e artista, entre historiador e especialistas de campos diversos, entre narrativa escrita e imagem.
Contudo, esta ingente tarefa poderia, apesar das linhas diretrizes do monumento, tornar-se um Frankenstein histórico-artístico. Careceria, pois, de linha condutora que absorvesse em seu bojo unidade, diga-se de passagem costumeira entre os “analistas”. Assim, dentro dos vinte e três ensaios que compõem os dois tomos da obra, encontramos seu fato gerador, sua origem, sua arché, o belíssimo ensaio de Duby que corresponde à 110 páginas do primeiro tomo.
O ensaio introdutório aposta na confrontação, não se sujeitando à submissão da imagem ao texto ou à justaposição de imagens em coadunação ao texto, como é muito comum nos livros de história da arte, ou simplesmente de história nos quais a imagem se assemelha àqueles livros de uma grande biblioteca cujas lombadas ricamente trabalhadas servem apenas ao diletantismo ou ao pedantismo do proprietário da biblioteca. O texto de Duby, muito além de balizar os demais ensaios, dita regras onde a obra de arte é o sujeito.
As imagens, assim, determinam mais do que simples deleite do esteta, trazem em si o crivo de poderes, orientados por certa sociologia histórica da obra de arte que perpassa a cadeia da elaboração do artístico desde a invenção até seu legado como cultura material. Busca Duby resgatar o olhar coetâneo das obras.
Por se tratar de um estudo relativo à Idade Média, o historiador procurou reconhecer nas imagens do período suas funções - dado imperativo e imperioso para os que trabalham com material iconográfico - , portanto, vai mais longe dizendo que as obras da “Idade das trevas” tinham como fundamento uma funcionalidade que é extremamente distante daquela visão que hoje temos de que a obra de arte não tem função alguma. O historiador nos fala : “não consideramos essas formas com o mesmo olhar dos que primeiro as viram. Para nós, são obras de arte das quais esperamos apenas, como das que são criadas nos nossos dias, um prazer estético. Para eles, esses monumentos, esses objetos, essas imagens eram antes mais nada funcionais. Serviam. Numa sociedade fortemente hierarquizada, que atribuía ao invisível idêntica realidade e ainda mais poder do que ao visível e não acreditava que a morte fosse o fim do destino individual.”
Segundo Duby, a arte desse período de dez séculos, a que se convencionou chamar Idade Média, ora são tidas como presentes oferecidos a Deus, ora são simples oferendas aos santos e aos defuntos, ora são a afirmação do poder divino, celebrando o de seus servidores, o de chefes de guerra, o dos ricos.
É justamente em torno dos ricos que a arte na Idade Média se desenvolve, apesar da não-distinção entre artista e artesão (palavras cognatas com origem no conceito de ars, que em latim tinha como significado técnica, aproximando-se, assim do conceito grego da técne – técnica, habilidade). Eles, os ricos, encomendavam estas obras e as distribuíam ao seu redor como prova de opulência e distinção em relação aos demais. Contudo, muitas modificações ocorreram nestes dez séculos e, portanto, aquele que detinha o poder em certo momento, não o manteve em outro. O deslocamento do poder durante a Idade Média determina alterações significativas no fazer artístico do período: “ao afetarem as relações sociais e os diversos componentes da formação cultural, as transformações modificaram as condições da criação artística.”
Resumidamente, o ensaio introdutório de Duby não pretende explicar a evolução das formas artísticas, observadas as estruturas materiais e culturais da sociedade, antes, visa a colocá-las em paralelo, auxiliando a entendê-las simultaneamente, ou seja, como uma é reflexo e origem de uma e outra.
Se a premissa é a de transformação dos agentes e atores sociais e a transformação associa-se a certa cronologia, então, Duby não pôde se apartar do recorte temporal para traçar o roteiro delineador do projeto em questão. Seu texto subdivide-se em quatro partes: Uma primeira dedicada a uma visão geral dos séculos V ao X; uma segunda do ano 960 ao 1160; uma terceira do ano 1160 ao 1320 e uma quarta do ano 1320 ao 1400.
Os cinco primeiros séculos, segundo o historiador, marcam a passagem da Antigüidade para Idade Média. Neste quadro vemos a leste a continuidade do mundo clássico antigo, enquanto que a oeste há o desmoronamento da civilização mediterrânea, precipitado pelas migrações germânicas, provocando por pelo menos três séculos a desordem na qual misturam-se ingredientes de uma nova civilização e, conseqüentemente, de uma nova arte.
O próprio ocidente não pode ser considerado como uma unidade inflexível e, minimamente, nele se destacam duas partes. A primeira ao sul, romanizada e uma segunda parte ao norte onde ressurgem costumes locais, autóctones, que haviam sido sufocados pelo poderio imperial romano.
Ao contrário do que costumeiramente se aprende, este primeiro período da Idade Média não foi marcado só por desgraças, características dos séculos de ferro ou da idade obscura. A despeito de certa devastação do patrimônio cultural legado da Antigüidade, as invasões, segundo Duby, também: “foram fator de rejuvenescimento. Varreram boa parte do que estava vetusto e deteriorado, do que criava obstáculos a inovação. Favoreceram todo tipo de transferências, de trocas.”
No segundo período trabalhado por Duby, 962 marca mais uma restauração em favor do rei dos germanos, Oto. Com ele floresceu o renascimento iniciado por Carlos Magno. A corte imperial, estimulada pela vontade de reviver os costumes e virtudes da alta sociedade romana e de renovação do Império Romano faz nascer, entre outros gêneros, a arte das pinturas de perícopes e da ourivesaria de frontais de altar.
O século XIII, por sua vez, assiste a uma nova expansão da Europa, ao norte os últimos povos pagãos são conquistados; na Península Ibérica são libertados os espaços do domínio muçulmano; no leste territórios vazios ou subjugados pelos príncipes eslavos são colonizados por habitantes que partiram das regiões flamengas, do vale do Reno, da Francônia e da Baviera. Tais movimentos, principalmente, na questão da reconquista do território hispânico, produzem operações de pilhagem que marcam a evolução das formas artísticas. Efetivamente, este momento marca a primeira expansão além das fronteiras do mundo antigo, mediterrâneo.
“No século XI, no século XII, a unidade da arte européia explica-se em parte pela extensão das peregrinações e pela coesão das congregações monásticas; no século XIII, pela mobilidade dos objetos de arte, das estatuetas, das jóias, dos livros ornamentados com imagens. Neles se refletiam as inovações estéticas cuja origem eram obras mais imponentes. Esses objetos contribuíram para propagá-las, pois nessa época começavam a entrar no circuito do comércio.”
Na segunda metade do século XIII, por seu turno, a Itália passa a ser o centro das forças vivas da Europa, lá “o orgulho cívico iniciava a revalorizar a decoração monumental, a traçar os esboços de um urbanismo inspirado na Antigüidade, a desenhar praças, enfeitar fontes, embelezar o palácio municipal glória da cidade.”
O grande nome do período é Frederico II que espantou o mundo por se dizer curioso de todas as crenças, não apenas da divina, mas também das leis humanas e naturais. Ele manda erigir em Cápua uma porta monumental que quis ornamentar aos moldes de Roma imperial, com seu próprio busto e a dos principais artesãos do seu poder. Lançou, definitivamente, as bases da última renascença, a grande. Meio século após sua morte, a Europa assistiria, extasiada o desabrochar das obras de Dante, dos escultores pisanos e de Giotto.
Por fim, o último período que trata Duby é o hiato de oitenta anos entre 1320 e 1400. Por conta de diversos fatores, diz ele que à primeira vista, a produção artística reduz a parte atribuída ao sagrado. “A principal razão desse aparente recuo é que os atavios profanos, os do corpo, os da casa, se conservaram em muito maior número que os paramentos datando de épocas anteriores. Outro fato explica a laicização da grande arte: é que esta aos poucos se libertou da tutela dos homens da Igreja.”
A partir desta grande síntese levada a termo por Georges Duby, História Artística da Europa abre espaço para o detalhe, para as especificidades das obras de arte, seja ela a pintura, a arquitetura, a música, a ilustração, a estatuária, etc. Assim, seqüencialmente são apresentados ensaios precisos, assinados por especialistas de cada assunto.
Ainda no primeiro tomo, são propostos sete textos abarcados sob o grande tema: “TRADIÇÕES, INVASÕES, INOVAÇÕES”. Neste ponto observa-se o desenvolver histórico sobre a arte visigótica, a arte irlandesa, a iluminura carolíngia, a virada arquitetônica do ano 1000, a iluminura otoniana, a arte viking e os mosaicos.
O segundo tomo dedica-se a mais dois grandes temas sob os quais encontramos mais duas grandes seqüências de ensaios. No primeiro do tomo segundo ou segundo da obra: “MONGES E PRÍNCIPES, IMAGENS DE DEUS” enquadram-se os seguintes textos sobre: a produção artística do Al-Andaluz; Benedetto Antelami; a arte românica inglesa e suas relações com o continente; a caligrafia; as fachadas românicas; o tesouro eclesiástico medieval; a música e polifonia; Cluny, cidadela celeste; Sainte-Foy de Conques; o projeto cisterciense; o vitral; a guerra e arquitetura; Frederico II e Castel del Monte e, por fim, os palácios principescos, residências senhoriais.
No terceiro da obra ou segundo do tomo segundo: “FIGURAS DA LUZ, ORDEM DAS COISAS” delineiam-se informações acerca de: os desenhos e tratados de arquitetura; as catedrais; o jubeu; Duccio e os mestres de Siena; o gótico tardio e os países meridionais: a Catalunha; a difusão dos alabastros ingleses na Europa; a escultura italiana no século XIV; o jacente; o cavaleiro de São Jorge; as vidas dos santos; Giotto; Veneza e por último, aurora e crepúsculo de uma arte internacional.
A despeito da excelência científica dos textos, elaborados por uma equipe de estudiosos de ilibada competência técnica, a qualidade editorial desta obra editada no Brasil pela Paz e Terra, evidencia a inserção do Brasil no mercado de publicação de livros de arte, uma carência sempre muito sentida por aqueles que se interessam por artes em nosso país.
Nada devendo a publicações semelhantes de origem européia ou norte-americana, os dois tomos ricamente ilustrados, o papel, a capa, enfim, o acabamento são excelentes e marcam distintivamente esta publicação. Aguardemos, pois, os volumes dedicados aos outros períodos da História Artística da Europa que, certamente, serão tão atraentes, instigantes e esclarecedores como este dedicado à Idade Média.
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