ASCHER, NELSON - Poesia Alheia. 124 poemas traduzidos. São Paulo: Imago. 1998. 378 páginas.
Paulo Martins
Poesia Alheia, livro de poemas traduzidos por Nelson Ascher, que acaba de ser publicado pela Imago, seguramente, é um marco na trajetória profissional deste poeta e crítico. Pelo menos desde 1983, quando publicou o pequeno grande livro Ponta da língua, que, estranhamente, não consta de sua bibliografia, Ascher nos encanta com sua capacidade de produzir boa poesia e, igualmente, excelente tradução poética, caso raro nos dias de hoje.
Infinitos seriam os argumentos que comprovariam tal acertiva, contudo três possibilidades já são válidas para que possamos incluí-lo no rol de grandes tradutores em língua portuguesa: sua consciência no trato do material poético a ser vertido, seu indiscutível conhecimento das línguas de origem e sua concisão.
Segundo ele próprio, “a tradução de poesia é uma arte à parte, singular, cercada por todos os lados de mal-entendidos e permeada, em todos os níveis, de paradoxos. Ela parece poesia, mas não é poesia; assemelha-se e, às vezes, confunde-se com a tradução propriamente dita (...), mas não é a tradução propriamente dita”. Esta consciência poética traz à tona conseqüências práticas dentro de sua “poesia-não-poesia traduzida" , ou seja, ao deparar-se com o empreendimento de tradução, Nelson sabe – e isto foi escrito por ele mesmo – que deverá trabalhar com um material que não foi elaborado “COM palavras”, como num romance ou numa novela, mas com um material composto “DE palavras”, a poesia.
Sua perspicácia, portanto, deriva da capacidade de compressão da importância da palavra, unidade singular, tijolo e cimento da construção de elefantes (perdoe-nos Drummond) ou, simplesmente, de poesia. Assim, tem a consciência de que o poeta utiliza todas, ou quase todas, as possibilidades semânticas, sonoras e significativas de seu material, buscando um resultado final denso, ou melhor, condensado o qual Pound tão bem soube expressar no ABC da Literatura , quando retomando Basil Buting, afirmava que a boa poesia observa a saturação da linguagem e, portanto, nada mais natural que o verbo alemão “Dichten” (Condensar) corresponde ao substantivo “Dichtung”, poesia.
Dessa forma, segundo Ascher, o resultado da tradução de poesia não é poesia, porquanto acata a proposição de Robert Frost que indica: “poesia é o que se perde na tradução”. Mas o que seria isto que resulta de um imenso engenho e arte? Outra solução não há, a não ser a de que o universo da tradução constitui um gênero da literatura no qual há uma interação física entre dois mundos, dois textos e dois indivíduos. Destarte, o resultado final desse “árduo trabalho” será algo que, apesar de calcado numa origem específica, será algo diferente: a poesia-não-poesia que jamais poderá ser considerada certa ou errada e tão somente boa ou ruim.
Realmente, o livro de Ascher compõe instrumentos inumeráveis para levar a cabo essa proposta de gênero literário, a começar pela diversidade temporal e espacial de seu manancial primeiro, o poema em língua estrangeira, diacronicamente tomado. Isto é, se o intuito é observar o resultado como gênero específico, pouco importa recorte temporal ou espacial, uma vez que o resultado é uma obra diferenciada, um génos específico, e este sim deve ser avaliado.
Noutro sentido, esta intenção soterra a possibilidade, talvez romântica, de se ler poesia estrangeira traduzida e, neste caso, quem deseje ler Yeats, Shakespeare, Borges, Horácio, cummings, Safo, Valéry, Ungaretti, Hölderlin não terá outra opção a não ser aprender, e muito bem, inglês, espanhol, latim, grego antigo, francês, italiano e alemão. E ainda, haverá de ter muito claro em mente que, ao ler as traduções desses autores, não estará lendo estes autores e, sim, um tradutor dos mesmos. Poder-se-ia crer, pois, na limitação da poesia à circunscrição lingüística que, talvez, a tornasse menos universal. Triste, porém instigante, dado que um poema geraria uma infinidade de outros poemas, quiçá, superiores àquele os gerou.
O que surpreende na leitura de Poesia Alheia, além do próprio paradoxo do nome (a poesia é própria, é Ascher), é a habilidade técnica no trato de línguas tão diversas e tão distantes, assim como os próprios poetas que apresentam o material, a arché dos poemas do livro. Em 1983, em Ponta da Língua, já causava espanto o tratamento dado ao poema 32 do poeta latino Catulo (I a.C.), transformando um simples epigrama erótico numa inscrição romana “arqueo-erótica”.
Hoje muito mais do que em 83, Ascher produz ótima poesia para quem não conhece a língua de origem e uma excelente tradução para o caso do conhecimento dos originais. Um exemplo disso é a excepcional capacidade de reproduzir a concisão de uma língua declinada, como o latim, trabalhada originariamente por um mestre absoluto dessa língua que é Horácio. Seguramente, por mais que se tente reproduzir os efeitos propostos pelo poeta romano da época de Augusto, sempre esbarraremos em restrições de cunho econômico-poético, fato esse superado com precisão cirúrgica por Ascher.
Se consegue recuperar, economicamente Horácio, nada se pode dizer do cuidado com que trata os poetas de língua inglesa, francesa, provençal, alemã, espanhola, italiana, eslava e hebraica, tão mais próximos no tempo. Nesse sentido, o ecletismo de Ascher, que para muitos poderia soar pejorativamente, recupera o preceito poundiano de “paideuma” cuja intenção visava a propor a leitura dos melhores em diversas línguas e épocas. O que facilmente pode ser aferido, ao percorrermos os 124 poemas de Poesia Alheia.
Outro ponto que vale ressaltar é a proposta de edição bilingüe. Se aceitarmos sua proposta de texto traduzido, o que ocorrerá, ao adquirirmos o livro, é possuirmos dois ou mais, uma vez que leremos Ascher e uma gama de mais de cinqüenta poetas diferentes.
Este livro ímpar está divido em dez partes. Nove delas que compreendem grupos de poetas, ou mesmo, um poeta apenas, como é o caso de Ungaretti e de um poeta anônimo provençal, classificados pela língua de origem, e mais, uma parte primeira, à parte, dedicada a um diálogo poético, fundado no conceito de emulação, pois trabalha diacronicamente o tema Roma durante um lapso temporal de quatro séculos.
Dessa forma dialógica, nos deparamos com poemas de Janus Vitalis, Du Bellay, Szarzynsky, Heywood, Quevedo e Goethe que são observados e trabalhados por Ascher sob o ponto de vista do lugar-comum Roma em Ruínas. Os textos recuperam o conceito de fugacidade da vida diante da grandeza física do centro do maior império da Antigüidade, que deveria ser ou é eterno:
"Recém-chegado, buscas Roma em Roma
sem Roma achar em Roma e quanto vês
– arco, palácio e muro –, o que se toma
por Roma ficou velho e se desfez." (Bellay)
ou
"Procuras Roma em Roma, ó peregrino,
mas não há Roma em Roma onde as muralhas
altivas transformaram-se em mortalhas
e, em túmulo de si mesmo, o Aventino." (Quevedo)
ou
"Tudo está vivo eem teus sagrados muros, Roma
eterna – é frente a mim só que se cala? (Goethe)"
ou
"Recém-chegado que, buscando Roma em Roma,
não encontras, em Roma, Roma alguma,
olha, ao redor, muro e mais muro, pedras rotas,
ruínas, que assustam, de um teatro imenso:
Roma é isto que vês – cidade tão soberba,
Que ainda exala ameaças seu cadáver." (Janus Vitalis)
Apesar de parecer deslocada a primeira parte das demais, Nelson recupera uma estrutura imaginada, antológica, creio, procedendo a apresentação dos autores revisitados por origem lingüística. Nesse sentido, torna pública suas versões do latim que, como já vimos, primam pela concisão. Opera, portanto, uma mixagem temática que salta aos olhos dos mais atentos.
A seguir passa a compor bricolage poético: em provençal, inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, húngaro, eslavo e hebraico onde ecoam preciosidades como a Ode 1,5 de Horácio (para Pirra), To his coy mistress do Metafísico Inglês Andrew Marvell, Funeral Blues de W.H. Auden, Le Sylphe de Paul Valéry, Amor constante más allá de la muerte de Quevedo, Instantáneas de Octavio Paz, Variazioni su nulla de Ungaretti, Der Abschied de Friedrich Hölderlin e outros.
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