Paulo Martins
Aqui no Brasil em 1985, o mercado editorial nos surpreendeu pela tradução e conseqüente publicação de um livro do famoso historiador francês Paul Veyne. Não que ele, historiador de renome internacional, não devesse ser publicado, mas esta obra específica não constava dos currículos dos cursos de História como sendo algo substantivo e necessário. Tal obra intitulava-se A elegia erótica romana. O amor, a poesia e o ocidente. Este pequeno livro, hoje esgotado, trata de um gênero poético curioso: a elegia, que, se observados os manuais de teoria literária, ou mesmo, o título de alguns poemas da Literatura Brasileira e portuguesa, pode ser superficialmente associada a uma composição poética de cunho lamentoso, ou seja, é a elegia, na modernidade ocidental, um gênero poético cuja característica está centrada na temática do lamento, da tristeza, das desilusões existenciais.
É assim que a encontramos na lírica de Vinícius, de Rainer Maria Rilke (1875-1926) n’As elegias de Duíno ou de Drummond “ganhei (perdi) meu dia // E baixa a coisa fria chamada noite...”, lembram? Contudo, se associarmos esta idéia ao título do livro de Veyne, poderia haver aqui um paradoxo! Como o erótico, o sensual pode ser alvo do lamento? Por favor, não respondam! Eu sei que a impossibilidade da efetivação erótica pode suscitar graves depressões. Mas saibam: não é da impossibilidade física sexual que os comentários do autor tratam no livro, tampouco as elegias escritas na Roma antiga.
É assim que a encontramos na lírica de Vinícius, de Rainer Maria Rilke (1875-1926) n’As elegias de Duíno ou de Drummond “ganhei (perdi) meu dia // E baixa a coisa fria chamada noite...”, lembram? Contudo, se associarmos esta idéia ao título do livro de Veyne, poderia haver aqui um paradoxo! Como o erótico, o sensual pode ser alvo do lamento? Por favor, não respondam! Eu sei que a impossibilidade da efetivação erótica pode suscitar graves depressões. Mas saibam: não é da impossibilidade física sexual que os comentários do autor tratam no livro, tampouco as elegias escritas na Roma antiga.
O livro de Veyne, mais do que um retrato da vida cotidiana romana na Antigüidade, analisa fidedignamente, mapeia a obra de três grandes poetas romanos: Ovídio, Tibulo e Propércio. Esses três autores, que viveram entre o I século a.C. e o I século d.C., são alvo de uma acurada leitura por parte do historiador que propõe uma ligação íntima entre suas composições e o modo de vida dos romanos. Nesses poetas, encontraremos a história do amor em sua origem. Aprendemos a entender nossos próprios sentimentos amorosos ao observarmos os alheios e como essa forma de amar pode ser tópica e típica para nós ocidentais. E esta era a intenção desses autores: ensinar a amar. Ao lermos sobre amantes, nos tornamos aptos a amar. Dos antigos elegíacos, talvez, Ovídio tenha sido o mais explícito nesse sentido, afinal os títulos de suas obras deixam clara esta preocupação: Arte de Amar, Amores, etc.
Talvez não precisássemos ir tão longe, até a Roma da Antigüidade, para entender melhor este tipo de poesia, ou melhor, este gênero, bastaria escutarmos uma música gravada por Caetano Veloso em seu belo LP (Valha-me Deus! Que coisa velha!), Cinema Transcendental, chamada “Elegia”. Ela é na verdade uma tradução feita por Augusto de Campos de um poema Elegy going to bed do poeta metafísico inglês John Donne (1572-1631): “(...)Desata esse corpete constelado, // Feito para deter o olhar ousado. // Entrega-te ao torpor que se derrama // De ti a mim, dizendo: hora da cama. // Tira o espartilho, quero descoberto // O que ele guarda, quieto, tão de perto.//O corpo que de tuas saias sai // É um campo em flor quando a sombra se esvai. // Arranca essa grinalda armada e deixa // Que cresça o diadema da madeixa. // Tira os sapatos e entra sem receio // Nesse templo de amor que é o nosso leito. // (...)Deixa que a minha mão errante adentre // Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre. // Minha América! Minha terra à vista, // Reino de paz, se um homem só a conquista, // Minha Mina preciosa, meu Império, // Feliz de quem penetre o teu mistério! // Liberto-me ficando teu escravo; // Onde cai minha mão, meu selo gravo. // Nudez total! Todo o prazer provém // De um corpo (como a alma sem corpo) sem // Vestes.(...) // Como encadernação vistosa, feita // Para iletrados, a mulher se enfeita; // Mas ela é um livro místico e somente // A alguns (a que tal graça se consente) // É dado lê-la. Eu sou um que sabe; //Como se diante da parteira, abre // Te: atira, sim, o linho branco fora, // Nem penitência nem decência agora. // Para ensinar-te eu me desnudo antes: // A coberta de um homem te é bastante."
Este texto nos dá chave de compreensão da elegia erótica romana, apesar de ser um texto inglês do século 17. O ambiente do poema é o leito em que os amantes se encontram em pleno prelúdio amoroso. A partir desta circunstância o poeta tece considerações acerca do corpo da amada e subseqüente ilação “metafísica”, afinal o corpo “é um campo em flor quando a sombra se esvai”. Depois desta apresentação, o ato amoroso se consome “deixa que minha mão errante adentre atrás, na frente, em cima, em baixo, entre”. Notem que o poema não apresenta nenhuma referência à impossibilidade do ato amoroso, nem tampouco alude a uma crise existencial que seja geradora do lamento. Ao contrário ele se coloca como ode (nos termos modernos) ao amor, isto é, um canto alegre e entusiástico ao ato sexual e à mulher amada.
Goethe (1749-1832), o famoso poeta alemão, autor do Fausto e do Werther, por sua vez, também compôs elegias e, mais curiosamente, um grupo delas chama-se “Elegias Romanas”. Contudo, uma outra elegia, não pertencente à recolha citada, é muito interessante, pois resgata a influência de um dos três poetas romanos citados sobre a sua obra. Diz Goethe: “É crime que Propércio me haja divertido// e um dia Marcial me acompanhado?” (tradução de Antônio Medina Rodrigues). Mas, dentro ainda das “Elegias Romanas”, podemos encontrar traços de semelhança não só em relação a Donne, como também, à concepção moderna de elegia: “Não te arrependas, Amada, porque a mim tão depressa te deste! // Podes crer, nem por isso de ti penso coisas insolentes e vis! // Vária é a ação das setas do Amor: algumas arranham, // E do rastejante veneno languesce pra anos o peito. // Mas, com penas potentes e gume afiado de fresco, // Outras penetram até ao tutano e rápido inflamam o sangue.” (tradução de Nelson Ascher). Neste pequeno trecho, além da citação explícita da temática amorosa, vemos também traços de certa melancolia, bem própria sem dúvida do século 19. A despeito da indicação da influência de Propércio sobre sua obra, algo novo e inusitado surge aí em suas elegias e, talvez, seja esse o legado romântico às elegias modernistas.
Propércio, por seu turno, assim como Tibulo e Ovídio, descarta o tom melancólico, ao contrário, muita vez, parece ironizar o “eu-elegíaco” que, como em grande parte das obras antigas, confunde-se com o “eu histórico e vivido” e neste caso, Propércio. Traço interessante nessa obra é a insistência na utilização de lugares comuns já experimentados por Catulo (veja Discutindo Literatura, 9), por exemplo. Em seus quatro livros de elegia, o poeta mostra um “eu” que se consome por um único amor: Cíntia. Ela é o centro de sua atenção, amor e desventuras. Propércio também além da construção literária de sua amada, não poupa esforços na caracterização do próprio amor, freqüentemente, antropomorfizado. O que não poderia deixar de ser, uma vez que o amor para os antigos era Amor, Eros, Cupido. Na verdade não era um e sim dois gêmeos, filhos de Vênus. Vejam como o poeta os caracteriza na 12ª elegia do segundo livro: “Quem quer que seja que pintou o Amor menino // Não julgas que ele tivesse mãos admiráveis? // Primeiro viu os amantes viver sem juízo // e os grandes bens perecer sem cuidados. // O mesmo não ao acaso adicionou asas ligeiras // e fez o deus voar no coração humano: // É evidente, porque somos lançados em ondas alternadas // e nosso ar não se conserva em lugar algum // e com razão suas mãos são armadas com setas aduncas // e de seu ombro pende aljava de Gnossos: // Porque feriu, antes que seguros conheçamos inimigo, // ninguém se livra desta cicatriz. // Em mim as setas permanecem, permanece a imagem pueril: // mas, certamente, ele perdeu suas asas, // porque, ah!, não voa de meu peito para lugar algum // e assíduo em meu sangue gere guerras. // Por que te é agradável habitar em um coração ressequido? // Se existe a honra, lance em outro tuas setas! // É melhor atingir pessoas sãs com este veneno: // Não sou eu, mas minha tênue sombra está sendo açoitada. // Tanto que se me perderes, quem será que irá cantar tais coisas, // Essa, minha Musa suave, é tua maior glória: // Aquele que cante a cabeça, os dedos, os olhos negros // de menina e como seus pés irão seguir suavemente?” (Elegia 2,12)
O leitmotiv de sua obra parte desta concepção do Amor. Cíntia é o cerne, mas por trás dela está a divindade que o abala. Note-se, entretanto, que existe a consciência subjacente dos efeitos do amor. A curiosidade maior é a idéia de puerilidade: o amor como a criança é capaz de ser encantador e cruel, cativante e insensível. Por sua vez Cíntia, também é caracterizada, vejamos: “Cíntia foi a primeira que me capturou, mísero , com seus olhos;// eu nunca antes atingido por nenhum desejo. // Então, o Amor arrebatou-me meu olhar de arrogância inabalável// e debaixo de seus pés pressionou minha cabeça // até que me ensinou a odiar castas meninas // e, ímprobo, a viver sem prudência.” (Elegia 1,1)
Cíntia assim como a Lésbia de Catulo é caracterizada em diversas instâncias que percorrem desde a simples observação de que sua beleza natural, que é mais do que suficiente para arrebatar o amado, até sua associação às características mais amargas e contundentes das mulheres de vida fácil em Roma. Ao mesmo tempo em que é figurada no âmbito mais sublime, é também observada sob a perspectiva de traços vis e baixos. Ela, Cíntia, assim, sintetiza o adágio de Catulo “Odeio e amo. Me perguntas por que? // Não sei. Só sei que sinto e me crucifico”. Amor e ódio. Beleza e feiúra. Alegria e tristeza. Arrebatamento e desprezo. Verso e reverso de uma só moeda. Motivo e efeito do amor. Assim Propércio constrói a “sua amada”, pontuando ora traços naturais que lhe são inerentes, ora marcando seu desprezo que nasce da impossibilidade da existência do “affair amoroso”. Diz Propércio: “Em que te adianta, minha vida, andar com cabelos ornados // e ondular os trajes transparentes de Cós // ou espargir com mirra de Orontes os cabelos // e gabar-te com produtos estrangeiros // e perder a natural graça com luxo comprado // e não deixar brilhar o corpo com seus próprios encantos? // Crê em mim, tua beleza não carece de nenhum cosmético: // o Amor desnudo não gosta das belezas artificiais. // Olha as cores que a bela terra produz, // como as heras brotam melhor espontaneamente, // como a árvore surge mais formosa em solitários antros // e como a água sabe correr por vias não ensinadas.” (Elegia 1, 2) Esta elegia - que poderia ser a versão avant a lettre de “Marina morena Marina você se pintou // Marina faça tudo //Mas faça o favor // Não pinte este rosto que eu gosto // Que eu gosto e que é só meu //Marina você já é bonita// Com o que Deus lhe deu (...)” de Dorival Caymmi - é marca da sublimidade com a qual Propércio pinta invariavelmente Cíntia para torná-la inatingível, a despeito do fato de sua beleza não carecer de artifícios humanos, por ser bela em si mesma é também inatingível, platonicamente falando.
Como grande parte dos poetas antigos, Propércio também nos dá chave da sua composição poética, isto é, abunda entre seus poemas a metalinguagem que pode indicar elementos constitutivos da forma, como também do conteúdo: “Perguntais donde são escritos tantos amores por mim, // de onde meus suaves livros vem à boca. // Estes não me canta Calíope, nem Apolo. // A própria menina me produz engenho. // Se a vi caminhar fulgente em veste de Cós, // todo volume será sobre a veste de Cós. // Se vi seus cabelos escorrerem pela sua fronte, // Ela se alegra de seguir soberba dos cabelos louvados. // Se com seus dedos de marfim tocou carme na lira, // admiro que facilmente a sua mão toque com arte // ou quando fecha os olhos que reclamam de sono, // poeta encontro mil novas causas. // Se, tendo tirado a roupa, nua luta comigo, // então certamente torno agradável longas Ilíadas.” (Elegia 2, 1).
Apresentando uma visão típica romana, Propércio repudia a tradição oral e inspirada da poesia grega homérica, ao dizer que não é uma musa Calíope (uma das nove filhas de Zeus e de Mnemosyne – a Memória), tampouco Apolo, o deus do arco e da lira que o inspirou. Ao contrário afirma que é a própria mulher o motivo de suas composições e, mais, de sua habilidade no trato com o verso. Vai além, explicita que mesmo elementos coadjuvantes próximos a ela – e apenas por esta proximidade – são capazes de fazê-lo poeta. Outro dado interessante é a tópica da recusa do gênero épico que aqui aparece subliminarmente. Calíope é musa da poesia épica e Apolo não só é o deus que tão bem maneja o arco (coincidentemente também Cupido o manipula), mas também a lira. Assim ele é bom na melodia e na guerra, elementos sempre ternos à épica. Além disso, uma metáfora que, para os antigos me parece mais uma catacrese, desponta ao fim desse trecho “Se, tendo tirado a roupa, nua luta comigo”: O embate que ele sugere aqui não é o embate entre varões, ao estilo Heitor e Aquiles, antes é o combate dos corpos no leito. Assim sua poesia é marcada ao mesmo tempo pela distância da épica, porém mantém uma proximidade temática arrevesada – de um outro tipo de guerra, a do Amor.
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Para ler em Português:
Aires A. Nascimento (ed.), Propércio - Elegias, Traduzido do latim por Aires A. Nascimento, Maria Cristina Pimentel, Paulo F. Alberto, J.A. Segurado e Campos, Lisboa: Centro de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras de Lisboa; Assis: Accademia Properziana del Subasio, 2002, 473 pp. ISBN: 972-9376-05-0.
Propércio - Elegias
(texto latino e tradução portuguesa, com comentário)
Propércio - Elegias
(texto latino e tradução portuguesa, com comentário)
Edição de Centro de Estudos Clássicos (Lisboa) com o patrocínio da Accademia Properziana del Subasio (Assis)
Realizada por quatro investigadores do Centro de Estudos Clássicos (Aires A. Nascimento, Cristina Pimentel, Paulo F. Alberto, J. A. Segurado Campos) acaba de ser publicada a primeira tradução completa das Elegias de Propércio. Foi patrocinada pela Accademia Properziana, prestigiada instituição que remonta ao séc. XVI e tem a sede em Assis, terra onde nasceu o poeta Propércio. Vem essa tradução acompanhada do texto latino, na edição realizada por Paolo Fedeli para as edições Teubner. O mesmo Paolo Fedeli escreveu a introdução (Propércio, poeta de amor). A edição poderá ser adquirida no Centro de Estudos Clássicos ao preço de 15 � (12 � para estudantes). A apresentação oficial da tradução foi feita no termo do Congresso Properciano que teve lugar em Assis (Accademia Properziana), no dia 26 de Maio de 2002.
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