Espaço dedicado às letras e às artes, especialmente e não exclusivamente do mundo greco-romano antigo. Paulo Martins - IAC/PPGLC/USP
segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
Ode 4,15 de Horácio e uma moeda
domingo, 30 de dezembro de 2007
Augusto e Horácio
Phoebus uolentem proelia me loqui
uictas et urbes increpuit lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
uela darem. Tua, Caesar, aetas
fruges et agris rettulit uberes
et signa nostro restituit Ioui
derepta Parthorum superbis
postibus et uacuum duellis
Ianum Quirini clausit et ordinem
rectum euaganti frena licentiae
iniecit emouitque culpas
et ueteres reuocauit artes
per quas Latinum nomen et Italae
creuere uires famaque et imperi
porrecta maiestas ad ortus
solis ab Hesperio cubili.
Custode rerum Caesare non furor
ciuilis aut uis exiget otium,
non ira, quae procudit enses
et miseras inimicat urbes.
Non qui profundum Danuuium bibunt
edicta rumpent Iulia, non Getae,
non Seres infidique Persae,
non Tanain prope flumen orti.
Nosque et profestis lucibus et sacris
inter iocosi munera Liberi
cum prole matronisque nostris
rite deos prius adprecati,
uirtute functos more patrum duces
Lydis remixto carmine tibiis
Troiamque et Anchisen et almae
progeniem Veneris canemus.
4,15
Desejando eu cantar as lidas e as vencidas
cidades, Febo tocou-me com a lira
para que parvas velas não desse ao
Mar Tirreno. Tua era, César,
Restituiu frutos fartos aos campos
restabeleceu ao nosso Jove insígnias
tomadas de soberbos portais
dos Partas. E isento de combates,
Jano Querinino fechou e freio lançou
sobre a desordem que estendia-se
acima da proba ordem. Crimes
extirpou; trouxe as antigas artes
Por elas elevaram-se o latino
nome, as forças da Itália, a fama e a grandeza
do Império, estendida da morada
Hespéria até onde é nascente o sol.
César, guardião de tudo, nem furor
de civis, força ou ira que forjou
espada e infelizes cidades
inimigas levarão à paz o termo.
Nem os que bebem do Danúbio profundo
Nem Getas, Seres ou infiéis Persas
Nem os que ao largo nasceram
do Tanáide, infringirão as leis júlias.
E nós, tanto nos dias sacros como nos meros
entre benesses de Líber jocoso,
com prole e esposa, no rito,
teremos orado, antes aos deuses;
Os chefes consumidos com virtude,
misturado poema às Lídias flautas,
como os pais, cantaremos Anquises,
Tróia e a progênie de Vênus nutriz.
sábado, 29 de dezembro de 2007
Natalis - Uma tradução para Tibulo 2,2
Natalis é um gênio que preside ao nascimento de cada homem e o acompanha durante a vida.
Dicamus bona verba: venit Natalis ad aras:
Quisquis ades, lingua, vir mulierque, fave.
Urantur pia tura focis, urantur odores,
Quos tener e terra divite mittit Arabs.
Ipse suos Genius adsit visurus honores,
Cui decorent sanctas mollia serta comas.
Illius puro destillent tempora nardo,
Atque satur libo sit madeatque mero,
Adnuat et, Cornute, tibi, quodcumque rogabis.
En age, quid cessas? adnuit ille: roga.
Auguror, uxoris fidos optabis amores:
Iam reor hoc ipsos edidicisse deos.
Nec tibi malueris, totum quaecumque per orbem
Fortis arat valido rusticus arva bove,
Nec tibi, gemmarum quicquid felicibus Indis
Nascitur, Eoi qua maris unda rubet.
Vota cadunt: utinam strepitantibus advolet alis
Flavaque coniugio vincula portet Amor,
Vincula, quae maneant semper, dum tarda senectus
Inducat rugas inficiatque comas.
Huc venias, Natalis, avis prolemque ministres,
Ludat ut ante tuos turba novella pedes.
Digamos boas palavras: o Natal chega aos altares:
Qualquer um, homem e mulher, que aproximes. Silêncio.
Em piras ardem pios incensos, ardem perfumes,
Que a suave Arábia envia da rica terra.
O próprio Gênio, que há de aparecer, assista suas honras,
E delicadas guirlandas ornem seus sagrados cabelos.
Os tempos destilem o seu puro nardo,
E fique saciado com bolo e embriague-se com vinho,
E que ele te atenda, Cornuto, qualquer que seja teu pedido.
Eis! Age! Por que tardas? Ele anuiu: roga.
Pressagio que pedirás amores fiéis da esposa:
Avalio que isso os próprios deuses já escolheram.
Não preferirás para ti tudo o que pelo orbe
O forte lavrador ara no campo com válido boi,
Não, para ti o que de gemas nasce dos felizes
Hindus, no oriente com aquela enrubesce a onda do mar.
Votos acontecem: queira que o Amor voe com asas
Retumbantes e carregue os flavos vínculos da união,
Vínculos que sempre permanecerão, até que a tarda velhice
Tiver trazido as rugas e tiver encanecido os cabelos.
Aqui virás, Natal, ministrarás as aves e a prole
Para que diante dos teus pés a jovem turba brinque.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
Joel, White, Krall, Caymmi e Propércio
Hoje pela manhã, Tatiana mostrou-me a regravação feita por Diana Krall (1964) para o CD "Live in Paris" (2002) de uma canção antiga de autoria de Billy Joel (The Piano Man): "Just The Way You Are", lançada no LP "The Stranger" de 1977 e, posteriormente, regravada por Barry White (1944-2003), no LP "The Collection" de 1978, versão com a qual a música ganharia notoriedade no Brasil. Certo é que esses dois grandes compositores e interpretes do R&B das décadas de '70 e '80 pareciam ter dado à composição tudo o que poderia ser dado.

Entretanto, como é de costume, Diana Krall releu com precisão o hit, imprimindo à música novo colorido e sabor sem que as qualidades anteriores fossem obturadas na releitura. A suavidade e beleza natural da interpretação são impecáveis. O piano e o violão são dignos de atenção, afora a voz sensível e plena de calor, sem esquecermos o tênue limite de conversão do R&B no mais puro Jazz.

Contudo o que mais me chamou a atenção, foram os versos "Don't go trying some new fashion//Don't change the color of your hair", cunhados por Joel. Eles, em certa medida, podem ser relacionados a outros dois momentos. Um primeiro mais antigo: Propércio, "elegia 1,2". Um segundo, bem mais recente: a canção de Dorival Caymmi (1914), "Marina" que foi regravada por Gilberto Gil em "Realce" de 1979.
A beleza feminina natural é um lugar-comum bem interessante e recorrente.
"Just The Way You Are"
Billy Joel
Don't go changing, try and please me
You never let me down before
Don't imagine you're too familiar
And I don't see you anymore
I would not leave you in times of trouble
We never could have come this far
I took the good times, I'll take the bad times
I'll take you just the way you are
Don't go trying some new fashion
Don't change the color of your hair
You always have my unspoken passion
Although I might not seem to care
I don't want clever conversation
I never want to work that hard
I just want someone that I can talk to
I want you just the way you are.
I need to know that you will always be
The same old someone that I knew
What will it take till you believe in me
The way that I believe in you.
I said I love you and that's forever
And this I promise from the heart
I could not love you any better
I love you just the way you are
I don't want clever conversation
I never want to work that hard
I just want someone that I can talk to
I want you just the way you are.
*_*_*_*_*_*_*_*
*_*_*_*_*_*_*_*
Marina
Dorival Caymmi
Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
De mal com você
De mal com você.
*_*_*_*_*_*_*_*
Propércio
I,II
QUID iuvat ornato procedere, vita, capillo
et tenuis Coa veste movere sinus,
aut quid Orontea crines perfundere murra,
teque peregrinis vendere muneribus,
naturaeque decus mercato perdere cultu,
nec sinere in propriis membra nitere bonis?
crede mihi, non ulla tuaest medicina figae sponte sua melius,
surgat et in solis formosior arbutus antris,
et sciat indocilis currere lympha vias.
litora nativis praefulgent picta lapillis,
et volucres nulla dulcius arte canunt.
non sic Leucippis succendit Castora Phoebe,
Pollucem cultu non Helaira soror;
non, Idae et cupido quondam discordia Phoebo,
Eueni patriis filia litoribus;
nec Phrygium falso traxit candore maritum
avecta externis Hippodamia rotis:
sed facies aderat nullis obnoxia gemmis,
qualis Apelleis est color in tabulis.
non illis studium fuco conquirere amantes:
illis ampla satis forma pudicitia.
non ego nunc vereor ne sis tibi vilior istis:
uni si qua placet, culta puella sat est;
cum tibi praesertim Phoebus sua carmina donet
Aoniamque libens Calliopea lyram,
unica nec desit iucundis gratia verbis,
omnia quaeque Venus, quaeque Minerva probat.
his tu semper eris nostrae gratissima vitae,
taedia dum miserae sint tibi luxuriae.
1,2
EM QUE te adianta, minha vida, andar com cabelos ornados
e ondular os trajes transparentes de Cós
ou espargir com mirra de Orontes os cabelos
e gabar-te com produtos estrangeiros
e perder a natural graça com luxo comprado
e não deixar brilhar o corpo com seus próprios encantos?
Crê em mim, tua beleza não carece de nenhum cosmético:
o Amor desnudo não gosta das belezas artificiais.
Olha as cores que a bela terra produz,
como as heras brotam melhor espontaneamente,
como a árvore surge mais formosa em solitários antros
e como a água sabe correr por vias não ensinadas.
Os litorais brilham mais, bordados, com seus próprias conchas
e aves cantam mais docemente sem nenhum aprendizado.
Não foi assim que, a filha de Leucipo, Febe, inflamou a Castor;
nem a irmã dela, Hilaíra, com luxo, a Pólux.
Nem foi assim que outrora a filha de Eveno nas margens de um rio,
seu pai, foi motivo de discórdia para Idas e para Febo apaixonado.
Não com falso candor, Hipódame,levada para longe
por carro estrangeiro, atraiu um esposo frígio:
mas, sua face, não sujeita à gema alguma, o fizera
como a cor está presente nas telas de Apeles.
Aquelas se esforçam em conquistar amantes com o vulgo,
Para elas lhes é suficiente a beleza de elegante pudor.
Agora eu não temo que eu seja para ti mais pobre que esses.
Se uma menina agrada a um único, ela é suficientemente adornada.
Quando Febo a ti concede especialmente seus poemas
e Calíope, com prazer, a lira Aônia e
a única graça não abandonou às tuas agradáveis palavras,
Nem tudo, Vênus ou Minerva aprova.
Com essas qualidades, tu sempre serás a mais grata de minha vida,
até que os luxos deploráveis te sejam enfadonhos.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
Sphragís - Propércio e Horácio
No caso de Horácio, ao terminar seu terceiro livro de odes, ele não pretendia escrever mais odes, o que foi contrariado por ele mesmo, algum tempo depois quando publicou o quarto livro de odes. Assim, no último poema, há um inventário de sua poesia que é o seu selo, sua sphragís:
Ode 3,30
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non Aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens. dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex,
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.
Ode 3,30
Eregi obra mais perene que bronze,
Mais alta que pirâmides reais para
Que nem chuva edaz nem Áquilo colérico
Destruir possam ou inumeráveis séries
De anos ou fuga dos tempos. De todo não
Morrerei e mor parte de mim à Libitina
Sobreviverá, sempre e em todo lugar, novo
Renascerei por louvor at~e que o Pontífice
Com tácita virgem Capitólio escale.
Conhecido, onde Áufido violento ruge
E onde Dauno pobre reinou, n’águas, sobre
Campesinos, serei. Eu, de origem humilde,
O primeiro que trouxe canções eólicas
Ao metro itálico. Toma a grandeza por
Mérito obtida e cinge-me a cabeça,
Melpómene, desejando, com délfico louro.
Já Propércio propõe dois selos no final do seu Monobiblos (primeiro livro de elegias). O primeiro selo é um "atestado de óbito"; o segundo selo é uma "certidão de nascimento". Cada um deles segue as regras dos seus sub-gêneros específicos, isto é, o epitáfio e o natalício, respectivamente. Ambos inseridos no gênero maior, a elegia. Entretanto distantes também da temática erótico-amorosa que é o motivo principal da poesia properciana.
XXI
miles ab Etruscis saucius aggeribus,
quid nostro gemitu turgentia lumina torques?
pars ego sum vestrae proxima militiae.
sic te servato possint gaudere parentes,
haec soror acta tuis sentiat e lacrimis:
Gallum per medios ereptum Caesaris enses
effugere ignotas non potuisse manus;
et quaecumque super dispersa invenerit ossa
montibus Etruscis, haec sciat esse mea.
21
Tu que te apressas em escapar do nosso mesmo ocaso,
soldado ferido lá nos montes da Etrúria
por que volves ao meu lamento os olhos túmidos?
Eu mesmo sou parte de teu exército.
Assim, conserva-te para que teus pais se alegrem
e minha irmã não sinta, a partir de tuas lágrimas, o ocorrido.
Galo tendo escapado através das espadas de César
não pôde escapar de desconhecidas mãos
e, quando ela tiver encontrado quaisquer ossos dispersos
nos montes da Etrúria, que saiba que estes são os meus.
XXII
Qualis et unde genus, qui sint mihi, Tulle, Penates,
quaeris pro nostra semper amicitia.
si Perusina tibi patriae sunt nota sepulcra,
Italiae duris funera temporibus,
cum Romana suos egit discordia cives—
sic mihi praecipue, pulvis Etrusca, dolor,
tu proiecta mei perpessa's membra propinqui,
tu nullo miseri contegis ossa solo—
proxima suppositos contingens Umbria campos
me genuit terris fertilis uberibus.
22
Quais Penates, quem sou e d'onde é minha família,
ó Tulo, me perguntas em nome da nossa eterna amizade.
Se tu conheces a Perúgia, sepulcro de minha pátria,
é o luto da Itália em tempos difíceis,
quando a discórdia romana levou seus homens.
Assim, esta é especialmente, ó etrusca terra, dor.
Tu permitiste que os membros de meus parentes fossem espalhados,
tu não cobriste os ossos dos infelizes com terra alguma.
A vizinha Úmbria, que é limítrofe a esses campos,
ela, fértil, gerou-me em terras fartas.
domingo, 23 de dezembro de 2007
O Jornal e um Drummond
Li jornal.
Mas minha insanidade mental não foi além do caderno de esportes de Folha de São Paulo. Afinal, esse é o meu limite para a observação da desgraça alheia e própria.
Que bela surpresa!
O texto de Tostão "Saudade, saudosismo, modernismo" talvez seja dos mais belos da crônica esportiva brasileira, o mesmo vem coroado por um grande Drummond, como que uma sphragís* temática da crônica:
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
*selo ou assinatura. Alguns poetas antigos propunham ao final de suas obras.
Para quem quiser ler a crônica integralmente, eis o link em O Povo, jornal cearense que disponibiliza o conteúdo:
http://www.opovo.com.br/opovo/colunas/tostao/754321.html
sábado, 22 de dezembro de 2007
Safo de Lesbos
terça-feira, 11 de dezembro de 2007
Duas Elegias - Duas Traduções - Duas Imagens
XII
QVICVMQVE ille fuit, puerum qui pinxit Amorem,
nonne putas miras hunc habuisse manus?
is primum vidit sine sensu vivere amantis,
et levibus curis magna perire bona.
idem non frustra ventosas addidit alas,
fecit et humano corde volare deum:
scilicet alterna quoniam iactamur in unda,
nostraque non ullis permanet aura locis.
et merito hamatis manus est armata sagittis,
et pharetra ex umero Cnosia utroque iacet:
ante ferit quoniam, tuti quam cernimus hostem,
nec quisquam ex illo vulnere sanus abit.
in me tela manent, manet et puerilis imago:
sed certe pennas perdidit ille suas;
evolat heu nostro quoniam de pectore nusquam,
assiduusque meo sanguine bella gerit.
quid tibi iucundum est siccis habitare medullis?
si pudor est, alio traice tela una!
intactos isto satius temptare veneno:
non ego, sed tenuis vapulat umbra mea.
quam si perdideris, quis erit qui talia cantet,
(haec mea Musa levis gloria magna tua est),
qui caput et digitos et lumina nigra puellae,
et canat ut soleant molliter ire pedes?
12
Quem quer que seja que pintou o Amor menino
Não julgas que ele tivesse mãos admiráveis?
Primeiro viu os amantes viver sem juízo
e os grandes bens perecer sem cuidados.
O mesmo não ao acaso adicionou asas ligeiras
e fez o deus voar no coração humano:
É evidente, porque somos lançados em ondas alternadas
e nosso ar não se conserva em lugar algum
e com razão suas mãos são armadas com setas aduncas
e de seu ombro pende aljava de Gnossos:
Porque feriu, antes que seguros julguemos o inimigo,
ninguém se livra desta cicatriz.
Em mim as setas permanecem, permanece a imagem pueril:
mas, certamente, ele perdeu suas asas,
porque, ah!, não voa de meu peito para lugar algum
e assíduo em meu sangue gere guerras.
Por que te é agradável habitar em um coração ressequido?
Se existe a honra, lance em outro tuas setas!
É melhor atingir pessoas sãs com este veneno:
Não sou eu, mas minha tênue sombra está sendo açoitada.
Tanto que se me perderes, quem será que irá cantar tais coisas,
Essa, minha Musa suave, é tua maior glória:
Aquele que cante a cabeça, os dedos, os olhos negros
de menina e como seus pés irão seguir suavemente?
XXXI
QVAERIS, cur veniam tibi tardior? aurea Phoebi
porticus a magno Caesare aperta fuit.
tantam erat in speciem Poenis digesta columnis,
inter quas Danai femina turba senis.
hic equidem Phoebo visus mihi pulchrior ipso
marmoreus tacita carmen hiare lyra;
atque aram circum steterant armenta Myronis,
quattuor artificis, vivida signa, boves.
tum medium claro surgebat marmore templum,
et patria Phoebo carius Ortygia:
in quo Solis erat supra fastigia currus;
et valvae, Libyci nobile dentis opus,
altera deiectos Parnasi vertice Gallos,
altera maerebat funera Tantalidos.
deinde inter matrem deus ipse interque sororem
Pythius in longa carmina veste sonat.
31
Tu me perguntas qual motivo me atrasa? Foi aberta
A porta áurea de Febo pelo grande César.
Todo construído em linha reta com colunas púnicas,
Entre as quais surge feminina turba de Dânao.
Lá Febo marmóreo cantando carme com muda lira
pareceu-me mais belo que o próprio Febo;
E em torno do altar: o rebanho de Míron ergue-se:
Quatro bois - signos vivos do artífice.
Então no meio o templo surge em alvo mármore,
Mais caro a Febo que sua pátria Ortígia.
Acima da cumeeira está o carro do sol
Em suas portas, nobre obra em líbio marfim;
De um lado os galos expulsos do alto do Parnaso,
De outro lamentam os funerais de Tantálida.
E logo entre a sua mãe e sua irmã, o próprio deus
Pítio em longa veste canta carmes.
sábado, 17 de novembro de 2007
A Arte Poética de Aristóteles

Ao invés de falar a respeito de um autor essencialmente literário, como venho fazendo nesta coluna, abro espaço a um filósofo, talvez dos mais significativos e copiosos que os gregos antigos nos legaram: Aristóteles. Isto não sem motivos. Afinal, pode-se dizer, de um lado, que, no âmbito das práticas letradas da Antigüidade Clássica greco-romana, a filosofia, sob a perspectiva da constituição do texto, assim como a história, representa um gênero que, por si, pode ser observado literariamente; de outro lado, não apenas na obra ora observada, a Arte Poética, o filósofo de Estagira centra sua reflexão sobre uma questão literária, mas também em outra cujo fulcro é o texto em prosa e, nesse sentido, encontramos a Arte Retórica, texto, sem o qual pouco ou quase nada poderíamos aferir das técnicas de construção literária até pelo menos o século XVIII. Dessa forma, falar de Aristóteles é também falar dos primeiros textos de teoria literária no ocidente.
Nascido em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C., aos 17 anos, muda-se para Atenas onde passa a fazer parte da Academia platônica, isto é, passa a ser discípulo de Platão até a morte deste em 347. Em 343, assume a função de preceptor de Alexandre, o grande na Macedônia onde fica até 336. Retorna a Atenas e funda o Liceu. Apesar de sua filiação platônica, Aristóteles é conhecido, pelo menos, sob o ponto de vista de uma teoria literária antiga, como antípoda daquele filósofo. Enquanto Platão, seja n’A República, seja no Íon, assim como no Fedro, critica a idéia de valorização da poesia como imitação, julgando-a distante da Verdade e observando que o único tipo de poesia que deve ser valorizada é a inspirada - aquela que sobrevém como inspiração divina ou como “mania” (possessão) - Aristóteles, por seu turno, defende a concepção de poesia como técnica (técne/ars) e mimese (imitação), não construindo, em momento algum, juízo de valor sobre o fato de ela ser Verdadeira, ou ainda, perniciosa ou infesta como um todo à formação do homem político (homem da pólis).
Ao exalçar a atividade humana da técne (ars-técnica) como forma de conhecimento, o filósofo dedicou-se a descrever a atividade literária grega em duas grandes obras: A Poética e a Retórica. A primeira dividida em dois livros dos quais nos restou apenas o primeiro, trata da fundamentalmente de dois gêneros literários muito caros aos gregos: A epopéia e a tragédia. Há a informação de que o segundo livro da Poética trataria de outros dois gêneros: a comédia e a poesia jâmbica (típica da invectiva). Já a segunda obra, dividida em três livros, ocupa-se fundamentalmente da oratória e seus subgêneros: o judiciário, o deliberativo e o demonstrativo. Em que se pese a distinção entre prosa e poesia, vale dizer que os conceitos tratados na Poética podem ser aplicados à prosa, assim como os tratados na Retórica podem ser observados na produção poética. Dessa forma, há quem julgue que estas duas obras podem, de certa maneira, abarcar a totalidade do conhecimento literário antigo como doutrina, como sistema.
A poética parte, portanto, do pressuposto de que a poesia é imitação. Seja da realidade na qual estamos inseridos, seja da tradição poética a que pertence o poeta e, este axioma decorre do fato de ser inato ao ser humano imitar. A poesia como mimese pode ser observada sob três aspectos distintos: por imitar por meios diferentes, por imitar objetos distintos ou por imitar diferentemente ou de modo diferente. Estas três possibilidades de avaliação delimitam genericamente a composição poética, isto é, ao propor tal taxonomia, Aristóteles acabou por estabelecer as primeiras distinções de gêneros poéticos que, por vezes, algo distam da nossa concepção moderna de gêneros.
A imitação “por meios diferentes” decorre da possibilidade da utilização do ritmo e da harmonia: poesias há em que a música é indissociável – um exemplo seria a poesia lírica dos gregos antigos – já, outras existem em que a música seria utilizada em parte dela como ocorre nas tragédias onde a harmonia é trabalhada pelo coro e não nas partes dialogadas. Porém, também, existem poesias dissociadas da música como é o caso da epopéia. Por sua vez, “o imitar objetos diferentes” significa dizer que a atividade poética pode ser observada de acordo com aquilo que imitamos e ,nesse sentido, encontramos aquelas que se ocupam de ações superiores (a tragédia e a epopéia); aquelas que tratam de ações inferiores como ocorre na sátira e na comédia; ou ainda, aquelas que devem observar as ações de homens como nós, isto é, a lírica em geral. Já o “modo diferente da imitação” pode ser detectado quando verificamos que uma mesma ação pode ser apresentada de forma narrativa ou com a presença de agentes e, daí, derivaria a distinção entre poesia épica e trágica.
Certas categorizações aristotélicas são de suma importância. Um bom exemplo disto é a determinação das partes da tragédia e da epopéia. No processo de elaboração poética, o autor de tragédias não pode descuidar das suas partes constitutivas, a saber: o espetáculo cênico (a ópsis), a música (a melopoía), os personagens (os éthe/caracteres), o enredo (o mythos), a elocução (a léxis) e o pensamento (a diánoia). Mais uma vez, o filósofo propõe uma distinção entre tragédia e épica: a segunda, quanto às suas partes constitutivas está inserida na primeira, excetuando-se, assim, o espetáculo cênico e a música que não aparecem na epopéia.
Ao observar a tragédia mais atentamente, Aristóteles também indica que nela podem-se verificar enredos construídos de forma diferente. Um a que ele dá o nome de “simples”; outro a que ele chama de “complexo”. Seria o último o que não possuísse nem “peripécia”, tampouco “reconhecimento”, mecanismos que interferem na sucessão dos acontecimentos no enredo. A “peripécia” constitui na inversão do encaminhamento dos fatos em seu oposto, ou seja, uma “reviravolta”. Já, o “reconhecimento”, a que os gregos davam o nome de “anagnórisis”, ocorre quando certa personagem toma conhecimento de algo e tal fato muda o sucesso dos acontecimentos. Tais diferenciações quanto ao tipo de enredo (“mythos”), lá apreciados pelo filósofo, podem ocorrer na poesia épica.
Talvez, entre seus comentários acerca da poesia, levados a termo na Arte Poética, aquele que seja mais controverso e polêmico é o que aparece no capítulo IX quando compara poesia e história. Diz Aristóteles: “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.”
Propondo a poesia como “mais filosófica e mais séria que a história”, Aristóteles acabou por, de certa forma, “agredindo” o caráter científico das investigações? Ao que parece, por muito tempo historiadores importantes viram-se vilipendiados por ele, uma vez que o fato de a história ser menos séria ou menos filosófica, pode parecer um menosprezo pela “atividade científica” em nome de uma certa “criatividade poética”. Valeria mais o exercício de uma técne/ars do que a observação e análise dos eventos ocorridos. Tal leitura do texto parece-me equivocada. Aristóteles não menospreza a atividade das “históriai” (investigações em grego), antes a propõe como atividade específica, aquela que trata de questões pontuais e inequívocas.
Já a poesia, para ele, por ser uma atividade imitativa, abre a possibilidade de ser uma fictio/ficção e, assim observada, não trata de um evento específico, mas de um fato generalizante e genérico, no mais das vezes, exemplar que pode atingir por similaridade a todos aqueles que o observam, inserindo-os no eixo ativo da fruição poética. Dessa forma, a poesia trabalha o universal em contrapartida à história que se fixa no particular. Daí o caráter educativo da poesia e da pintura que tão bem é verificado em outra obra do filósofo de Estagira, a Política.
Outro aspecto curioso da obra aristotélica é a sistemática aproximação entre a poesia e a pintura. Essa relação que, dentro da tradição ocidental, muitos atribuem a Horácio (Discutindo Literatura, 12) quando observa o “ut pictura poesis” (“como a pintura é a poesia”) na sua Arte Poética (Epístola aos Pisões), é muito anterior a ele. Na verdade, Simônides, poeta lírico grego arcaico já no século 6 a.C., tinha proposto: “a pintura é a poesia muda e a poesia é a pintura que fala”. Ou mesmo, Platão n’A República no século 5 a.C., quando critica a poesia mimética também se opõe a outras formas de mimese como a pintura. Entretanto, parece ponto recorrente na Arte Poética de Aristóteles esta aproximação. Compara, por exemplo, que pode haver pintura sem e com éthos (caráter), assim como poesia. Diz ainda que quanto ao objeto da imitação há pintores que se ocupam de imitar seres superiores; outros, de seres inferiores. Assim da mesma forma, que há uma poesia de caráter elevado ou baixo, também há pinturas desses matizes.
A Arte Poética, portanto, muito além de nos informar sobre o processo de composição de poesia na Antigüidade Clássica, nos indicando todos os passos que devem ser observados pelos poetas em sua atividade técnica, também registra certos aspectos culturais mormente aqueles que se filiam à educação e à formação do homem ocidental. Registre-se aqui, no entanto, um inconformismo que, talvez, tenha sido o mesmo que levou Umberto Eco a escrever o livro “O nome da rosa”: o desaparecimento do segundo livro da Poética.
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terça-feira, 23 de outubro de 2007
Pulp Fiction

Jules Winnfield e Vincent Vega
A história começa com Jules e Vincent , dois mafiosos que devem fazer uma cobrança a mando de Marsellus Wallace (Ving Rhames), tendo uma brilhante conversa sobre fast-food's, massagem e a quanto o chefe de ambos pode chegar para quase matar um homem, que fez um simples gesto de carinho a esposa dele. Nesta parte há um momento muito lembrado pelos cinéfilos em geral: quando Jules cita uma passagem da Bíblia antes de matar um homem. O grande mistério do filme é o que há dentro da maleta que Jules e Vincent foram cobrar dos jovens? Ninguém sabe e provavelmente nunca irá saber. A conversa deles sobre um certo "milagre" que ocorreu com os dois é bastante divertida. Esta é a história do filme que para mim os diálogos são mais bem trabalhados.
Butch e seu relógio
Na minha opinião, esta é a melhor história do filme e, também, a mais violenta. Butch é um pugilista prestes a se aposentar e que em sua última luta, é comprado para perdê-la, mas a ganha e foge com o prêmio e sai em busca do relógio de seu pai.
Tudo começa com o Capitão Koons (Cristopher Walken) chegando à casa de Butch, ainda pequeno. Ele conta a história de um relógio. O avô de Butch foi preso na Segunda Guerra Mundial e guarda consigo mesmo o relógio que seu pai lhe havia dado. Assim, o avô de Butch dá o relógio para seu pai que o leva com ele à guerra do Vietnã. O pai de Butch é preso também e teve que guardar o relógio no ânus. Capitão Koons ficou preso com ele. E assim Koons acaba dando o relógio para Butch. Temos um corte no tempo com Butch deitado dormindo no vestiário do estágio em que faria sua última batalha, comprada para ele perder. Butch não perde, ganha e ainda mata o seu adversário. Fica com o dinheiro e foge num táxi em que temos uma conversa muito bem trabalhada entre ele e a taxista. Está tudo acertado, mas tem um pequeno problema: sua amada Fabienne (Maria de Medeiros) esqueceu o relógio que seu pai guardou dolorosamente durante longos dias. Então Butch parte em busca de seu relógio. Vai até o seu apartamento pega o relógio e ainda mata Vincent Vega (!) que estava o aguardando. Tudo está normal até que na volta pra encontrar Fabienne, ele encontra por ironia do destino Marsellus Wallace no meio da rua. Marsellus super irritado com Butch começa uma longa briga que se sucede até uma loja de guitarras. Lá os dois são presos por outros dois caras, que guardam um homem em roupa de latex como se fosse um animal – puro fetiche neonazista.
Marsellus é violentado e Butch o salva com uma "katanna" mata um dos estupradores. O outro Zed (Peter Greene) não sabemos o que acontece com ele. O que sabemos é que Marsellus atira em suas partes baixas e vai chamar dois 3x4 para fazer técnicas medievais no traseiro de Zed. Marsellus e Butch fazem as pazes, Butch pega a Harley-Davidson de Zed para buscar Fabienne. E solta a famosa frase: "Zed is dead, baby; Zed is dead".
A decisão de Jules Winnfield
Conclusão
A Elegia de Propércio
É assim que a encontramos na lírica de Vinícius, de Rainer Maria Rilke (1875-1926) n’As elegias de Duíno ou de Drummond “ganhei (perdi) meu dia // E baixa a coisa fria chamada noite...”, lembram? Contudo, se associarmos esta idéia ao título do livro de Veyne, poderia haver aqui um paradoxo! Como o erótico, o sensual pode ser alvo do lamento? Por favor, não respondam! Eu sei que a impossibilidade da efetivação erótica pode suscitar graves depressões. Mas saibam: não é da impossibilidade física sexual que os comentários do autor tratam no livro, tampouco as elegias escritas na Roma antiga.
Propércio - Elegias
(texto latino e tradução portuguesa, com comentário)
domingo, 2 de setembro de 2007
Tarantino's Mind - Uma preciosidade
Ele foi exibido pela primeira vez no Festival Rio 2006. E está sendo exibido no programa Panorama Brasil, da 18ª edição do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Na época de sua apresentação no Rio, há quem diga que foi o que ocorreu de melhor e, agora, tendo eu assistido, concordo plenamente, apesar de não ter visto os outros concorrentes.
O curta ambienta-se no antigo bar paulistano Pandoro (Av. Europa) e põe em cena dois personagens protagonizados por Selton Mello e Seu Jorge numa conversa de botequim, regada a chopp e batatas fritas.
O enredo, extremamente simples, gira em torno da possibilidade de decifração da "cabeça" do cineasta norte-americano Quentin Tarantino (do qual sou fã). Na verdade, o que o personagem de Selton Mello propõe é uma unidade possível dos filmes do afamado diretor, isto é, a partir de cenas, personagens e elementos cenográficos, ele verefica que o diretor recicla, repropõe, retoma os mesmos elementos, cenas e personagens constantemente, gerando, por assim dizer, um moto-continuo de intertextualidade ou dialogismo.
Assim, teria o criador de Pulp Fiction, Kill Bill, Grindhouse e Reservoir Dogs, segundo o diálogo impagável e mirabolante, feito um único filme, exibido em etapas. Por sua vez, a montagem curiosa e acurada faz com que a teoria proposta do “código Tarantino” torne-se visível a olhos nus para nós, meros espectadores leigos.
O filme será exibido e estará concorrendo a prêmios nos seguintes Festivais:
Festival de Curtas de Los Angeles - 05 a 16 de setembro.
Festival de Curtas de Veneza - 01 a 07 de setembro.
Clique e confira, são apenas 12 minutos. Vale mesmo!!!
sábado, 1 de setembro de 2007
VERNANT, J.-P. ET VIDAL-NAQUET, P. - Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo, Perspectiva. 1999.

Édipo e a Esfinge - Museu do Louvre - Paris
sábado, 4 de agosto de 2007
Arquíloco e Mimnermo: Duas medidas do homem
O período, compreendido entre os séculos VII e V a.C., na Grécia – lembrem que a geopolítica da época inclui como Grécia não só a península Balcânica, como também as ilhas do Mediterrâneo e a chamada Ásia Menor –, marca significativas mudanças naquela que viria a ser talvez a mais importante civilização ocidental. A relevância desse agrupamento humano, unificado pela língua e pelos costumes, pode ser aferida em todos os ramos de atividade humana: desde a poesia até a medicina, da filosofia às artes visuais, da economia até a astronomia.
Mas que mudanças são estas tão importantes para uma sociedade que já se tornara conhecida no mundo conhecido à época? Uma sociedade que já havia nos legado Homero e Hesíodo? Bem, para que compreendamos isso, alguns pressupostos são fundamentais. O primeiro deles diz respeito à organização sóciopolítica dessa civilização que durante séculos - e isto pode ser verificado a partir dos textos épicos e trágicos, que nos restaram, e a partir da cultura material, que a Arqueologia nos trouxe à luz, – cuja forma era marcadamente centralizada na figura de um rei, ou como eles chamavam um “basiléos”, que, responsável hereditário por um “génos”, grupo expandido de um núcleo familiar, geria a justiça, a política, a economia, a guerra e a religião. Esses reinos mantinham entre si, dependendo principalmente de sua origem, não rara vez, certa rivalidade o que os levava com freqüência à guerra, ao conflito bélico. Exemplo maior: a campanha de Tróia.
Marca expressiva dessa sociedade era também sua agrafia, isto é, os helenos – como eram chamados -, a despeito de em épocas imemoriais terem tido acesso a uma forma de escrita (o linear B do período minóico é uma constatação), no período pré-homérico e homérico não possuíam escrita e, portanto podiam ser caracterizados como cultuadores da memória e da oralidade. A partir, no entanto, do colapso desses reinos, surge um fator geopolítico importantíssimo, a “pólis”, a cidade estado e com ela a escrita e a moeda. Tais criações em certa medida eliminavam o poder centralizador do “basiléos” em nome de um poder coletivo que em sua forma ateniense veio a receber o nome de democracia.
Essas novidades imbricadas - e não poderia ser de outra forma – a cidade, a moeda e a escrita – dialeticamente configuram ou determinam um novo homem, um ser que doravante passa a ser o centro dos questionamentos e das preocupações comuns aos comuns homens: De onde vim? Como vivo? Para onde vou? Quem sou eu? A dimensão divina, ainda que longe de ser descartada, passa a dividir certo espaço dentro das mentes gregas com a dimensão humana. O “mythos” cede, pois, lugar ao “lógos”. O discurso racional valoriza-se diante do discurso religioso, e escrita, por seu turno, é o meio para disseminação desse pensamento, dessas preocupações e desses questionamentos. É nesse ambiente, agora, que novas formas de expressão são valorizadas. Surgem os primeiros discursos filosóficos a que a doutrina vai dar o nome de fisiólogos, uma vez que se atêm à observação e explicação da physis, a natureza. Anaximandro (609-547) e Anaxímenes de Mileto (585-528), Pitágoras de Samos (571-532), Tales de Mileto (625-558), Heráclito de Éfeso (540-470), Parmênides de Eléia (530-460) e outros são exemplos de filósofos ou fisiólogos, hoje conhecidos como pré-socráticos.
Não só a filosofia floresce no bojo dessa nova sociedade, mas também a poesia em outras modalidades que não épicas ou sapienciais – Homero e Hesíodo são prototípicos. Tal poesia, a que hoje em sentido mais amplo dá-se o nome de lírica, passa ocupar lugar de destaque na produção literária grega. Vale lembrar, entretanto, que, ao contrário do que possa parecer, ela não é um fenômeno novo, antes tem suas origens em tempos tão remotos quanto à épica. Teria ela assento dentro da oralidade que caracterizara o mundo helênico pré-homérico junto aos ritos religiosos, às festas de semeadura e colheita, aos funerais, aos banquetes e a outros eventos típicos daquela antiga sociedade. Agora no século VII e VI a.C., no entanto, não se fixa especificamente a estes ritos ou momentos de performance, mas, sim, como meio expressivo do novo homem grego afeito a um tipo de sociedade em que as angústias e anseios do “ânthropos” (o ser humano) devem ser observados e discutidos. O herói isoladamente não é mais uma preocupação a não ser quando colocado lado a lado ao mortal, ao ser como nós, como bem alertou Aristóteles na Arte Poética, trezentos anos mais tarde.
Marcada por uma multifacetada gama de motivos, a lírica arcaica grega, sob essa perspectiva que acabamos de apontar foi explorada amiúde em várias cidades gregas, e, entre os nomes mais significativos encontramos: Safo de Lesbos, Alceu, Estesícoro, Calino, Tirteu, Arquíloco e Mimnermo entre outros. Não se apegando a uma temática específica, tampouco a uma unidade métrica, a poesia lírica arcaica pode ser entendida na Antigüidade Clássica a partir de uma afirmação do poeta latino Tertuliano (150-222 d.C.): “multicolor, de várias cores, versicolor, nunca a mesma, mas sempre outra, embora sempre a mesma quando outra, tantas vezes enfim mudando-se quantas movendo-se.” Outro dado importante acerca dessa era sua subdivisão de gêneros. Poderia a lírica ser monódica ou coral, isto é, além do fato de ser cantada – toda ela o era – poderia ser cantada por um cantor apenas, ou por um grupo deles. Poderia também ser observada de acordo com o tipo de acompanhamento musical: a aulética e a citarística são exemplos de poesia lírica cujo acompanhamento era o aulós, espécie de flauta e a cítara, um de instrumento de cordas respectivamente.
Nascido na ilha de Paros, Arquíloco talvez seja o poeta que mais amplamente trabalhou com a diversidade temática possível para o gênero lírico uma vez que não só se ateve à invectiva (maledicência), mas também se ocupou de tratar de assuntos relativos à guerra e vida comum. Mais do que o simples tratamento de temas diversos, este poeta observou a vida do homem em sociedade: “Coração, coração de imediatos nojos agitado,// levanta, às aflições resiste lançado um contrário // peito, a embustes de inimigos de perto contraposto // com firmeza; e nem vencendo abertamente exultes // nem derrotado em casa abatido te lamentes, // mas com alegrias te alegra e com reveses te aflige // sem excesso; e conhece qual ritmo regra os homens.” (trad.: José Cavalcante de Souza) A temperança e a justa medida das coisas que coíbem o excesso é marca clara nesse poema que se constitui numa clara “crítica” ao pensamento épico ou trágico grego.
Aliás, curioso é o tratamento ao tema bélico que o poeta de Paros oferece a essa nova sociedade se compararmos àquele dado por Homero na Ilíada e na Odisséia: “o escudo um Saio dele se orgulha, numa moita // arma impecável deixei-o sem querer, // mas eu mesmo o fim da morte evitei; aquele escudo // que se vá; de novo um comprarei não pior.” (trad.: José Cavalcante de Souza) Havia uma máxima grega que dizia que uma mãe espartana falara um dia a seu filho que ia à guerra “volte com seu escudo ou sobre ele”. Este pequeno fragmento comprova séria alteração no modo de pensar a guerra, ao contrário, pois, do que ditava a tradição bélica dos helenos, Arquíloco sugere que em nome da própria sobrevivência seria conveniente abandonar as armas, pois esta é facilmente substituível, enquanto a vida não. Outro poema que segue esta mesma chave é: “Vamos, de Canecão pelo convés de veloz nau // anda e a bebida tira dos cavos tonéis // e caça o vinho até a borra; pois também nós // sem beber nesta vigília não poderemos.”(trad.: Antônio Medina Rodrigues). Afora a circunstancialidade do texto, o último verso deste poema é fundamental, pois aponta para os limites de tolerância do homem comum na guerra. Aquela sobriedade épica do guerreiro, agora é trocada pela embriaguez lírica: a guerra é suportável desde que acompanhada de um bom vinho.
Já Mimnermo, nascido na cidade Cólofon (630-600 a.C.), restringe sua poesia lírica não só a uma unidade métrica específica – o dístico elegíaco, como, também, a uma só temática: o passar dos anos e a dicotomia existente entre a velhice e a juventude. Conhecido no século XIX, como o poeta do hedonismo helênico, caracterização absolutamente discutível, além anacrônica uma vez que a idéia de hedonismo solidifica-se a partir de uma visão psicologizante, o poeta pode ser considerado como pai de certos lugares comuns da poesia clássica, como, por exemplo, o da efemeridade da vida: “Nós, como a tantas flores faz a primavera// Abrir as folhas, nós, quais flores tenras, // Ébrios vamos vivendo efêmero fulgor, // Sem sabermos o mal ou bem que os deuses tramam // As negras Parcas espionam, entretanto, // Uma em torturas arremata o tempo nosso, // Outra costura a morte, e dura a juventude // O tanto quanto o sol passeia ao solo. // Morrer prefiro, antes que suma a primavera. // Dentro da alma, depois dela, caem os males, // E, arrematada a queda, sobra a feita mágoa: // Um vai dentro do Inferno uivar os filhos // Que não teve, outro adoece e morre, qual! // Aos males que nos manda Zeus ninguém escapa!” (trad: Antônio Medina Rodrigues). A despeito do fato de a comparação do homem com as plantas já ter ecos na poesia épica, a sua solidificação dá-se a partir do século VII a.C.. Nós, assim, estaríamos sujeitos às mesmas limitações de vida daquelas, além de absolutamente subordinados às benesses dos deuses imortais. Enquanto na épica e na tragédia, em certa medida, os homens se colocam lado a lado aos imortais; aqui eles estão resignados a sua condição de inferioridade. Contudo, sem abrir mão da racionalidade, do “lógos”, pois que, como bem assevera o fragmento de Mimnermo, a velhice e seus males podem estar sujeitos também a uma opção de sobrevivência: “Morrer prefiro”.
Se de um lado, o homem pode optar pela morte – reflexo da imperativa razão –, não é de se estranhar que vitupere contra a velhice e seus limites: “Qual vida tem valor, sem de Afrodite// As da dádivas douradas? Antes quero a morte,// Se os beijos não tiver, e a cama e os apetites,// Que são da rubra mocidade a sorte, // Varões a porem nus e senhoritas.// A idade, ao descambar num ser humano, // Imprime nele os males todos: tudo o irrita. // Nem o aviva mais o sol, o céu de Urano, // Nem nas crianças vê coisa bonita. // E as fêmeas o desprezam, tanto o Soberano // Ao homem no final da vida prejudica.” (trad.: Antonio Medina Rodrigues) É interessante verificar que Mimnermo associa a vida à consumação do amor. Isto é, se já não temos mais condições físicas que façam Afrodite nos “propiciar”, a vida não tem mais motivo de ser.
É tônica desta poesia, portanto, além desse tipo de reflexão humana acerca dos limites da vida, o lamento. Tal fato, de certa forma, corrobora a tese de origem do subgênero lírico: a elegia: “Um sopro, um sonho leve dura a preciosa // Juventude, antes de que em nós se enlace // A insídia gris dessa velhice odiosa, // Que a pele nossa enruga e o corpo infama, // E faz de nós quem nunca fomos, cinza e frio // Da alma com seu simples espraiar-se.” (trad.: Antonio Medina Rodrigues)
Talvez, mais do que a poesia épica de Homero ou a trágica de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a lírica grega arcaica seja a poesia com a qual nós mais nos identifiquemos hoje em dia. Tal identificação só pode encontrar guarida em seu caráter universal, ou seja, a efetiva imbricação entre razão e sentimento, medidas absolutas e definitivas do homem. Arquíloco, de um lado, ao observar limites que devemos transpor ou superar uma vez que não somos deuses ou heróis e Mimnermo, de outro, ao ditar que podemos nos contrapor a imperativos categóricos da própria existência, perfazem, ambos, a figuração do homem que se nos é imposta hoje: limitados, porém com todas as condições de transgressão às razões da natureza e dos deuses.