segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Ode 4,15 de Horácio e uma moeda

Denário de Prata - c. 19 a.C.
Obverso - Cabeça de Líber - Inscrição: TVRPILIANVS III VIR - Magistrado monetário
Reverso - Um parta de joelhos - Inscrição: [CAESAR A]VGVSTVS SIGN(IS) RECE(PTIS)


Horácio Ode 4,15:
Tua, Caesar, aetas//fruges et agris rettulit uberes//et signa nostro restituit Ioui//derepta Parthorum superbis//postibus

domingo, 30 de dezembro de 2007

Augusto e Horácio

IV,XV
Phoebus uolentem proelia me loqui

uictas et urbes increpuit lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
uela darem. Tua, Caesar, aetas

fruges et agris rettulit uberes
et signa nostro restituit Ioui
derepta Parthorum superbis
postibus et uacuum duellis

Ianum Quirini clausit et ordinem
rectum euaganti frena licentiae
iniecit emouitque culpas
et ueteres reuocauit artes

per quas Latinum nomen et Italae
creuere uires famaque et imperi
porrecta maiestas ad ortus
solis ab Hesperio cubili.

Custode rerum Caesare non furor
ciuilis aut uis exiget otium,
non ira, quae procudit enses
et miseras inimicat urbes.

Non qui profundum Danuuium bibunt
edicta rumpent Iulia, non Getae,
non Seres infidique Persae,
non Tanain prope flumen orti.

Nosque et profestis lucibus et sacris
inter iocosi munera Liberi
cum prole matronisque nostris
rite deos prius adprecati,

uirtute functos more patrum duces
Lydis remixto carmine tibiis
Troiamque et Anchisen et almae
progeniem Veneris canemus.


4,15
Desejando eu cantar as lidas e as vencidas
cidades, Febo tocou-me com a lira
para que parvas velas não desse ao
Mar Tirreno. Tua era, César,

Restituiu frutos fartos aos campos
restabeleceu ao nosso Jove insígnias
tomadas de soberbos portais
dos Partas. E isento de combates,

Jano Querinino fechou e freio lançou
sobre a desordem que estendia-se
acima da proba ordem. Crimes
extirpou; trouxe as antigas artes

Por elas elevaram-se o latino
nome, as forças da Itália, a fama e a grandeza
do Império, estendida da morada
Hespéria até onde é nascente o sol.

César, guardião de tudo, nem furor
de civis, força ou ira que forjou
espada e infelizes cidades
inimigas levarão à paz o termo.

Nem os que bebem do Danúbio profundo
Nem Getas, Seres ou infiéis Persas
Nem os que ao largo nasceram
do Tanáide, infringirão as leis júlias.

E nós, tanto nos dias sacros como nos meros
entre benesses de Líber jocoso,
com prole e esposa, no rito,
teremos orado, antes aos deuses;

Os chefes consumidos com virtude,
misturado poema às Lídias flautas,
como os pais, cantaremos Anquises,
Tróia e a progênie de Vênus nutriz.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Natalis - Uma tradução para Tibulo 2,2

Lawrence Alma-Tadema: Tibullus at Delia's. 1866 Oil on wood Museum of Fine Arts, Boston, USA




Natalis é um gênio que preside ao nascimento de cada homem e o acompanha durante a vida.



Tibulo, elegia 2,2


Dicamus bona verba: venit Natalis ad aras:
Quisquis ades, lingua, vir mulierque, fave.
Urantur pia tura focis, urantur odores,
Quos tener e terra divite mittit Arabs.
Ipse suos Genius adsit visurus honores,
Cui decorent sanctas mollia serta comas.
Illius puro destillent tempora nardo,
Atque satur libo sit madeatque mero,
Adnuat et, Cornute, tibi, quodcumque rogabis.
En age, quid cessas? adnuit ille: roga.
Auguror, uxoris fidos optabis amores:
Iam reor hoc ipsos edidicisse deos.
Nec tibi malueris, totum quaecumque per orbem
Fortis arat valido rusticus arva bove,
Nec tibi, gemmarum quicquid felicibus Indis
Nascitur, Eoi qua maris unda rubet.
Vota cadunt: utinam strepitantibus advolet alis
Flavaque coniugio vincula portet Amor,
Vincula, quae maneant semper, dum tarda senectus
Inducat rugas inficiatque comas.
Huc venias, Natalis, avis prolemque ministres,
Ludat ut ante tuos turba novella pedes.


Digamos boas palavras: o Natal chega aos altares:
Qualquer um, homem e mulher, que aproximes. Silêncio.
Em piras ardem pios incensos, ardem perfumes,
Que a suave Arábia envia da rica terra.
O próprio Gênio, que há de aparecer, assista suas honras,
E delicadas guirlandas ornem seus sagrados cabelos.
Os tempos destilem o seu puro nardo,
E fique saciado com bolo e embriague-se com vinho,
E que ele te atenda, Cornuto, qualquer que seja teu pedido.
Eis! Age! Por que tardas? Ele anuiu: roga.
Pressagio que pedirás amores fiéis da esposa:
Avalio que isso os próprios deuses já escolheram.
Não preferirás para ti tudo o que pelo orbe
O forte lavrador ara no campo com válido boi,
Não, para ti o que de gemas nasce dos felizes
Hindus, no oriente com aquela enrubesce a onda do mar.
Votos acontecem: queira que o Amor voe com asas
Retumbantes e carregue os flavos vínculos da união,
Vínculos que sempre permanecerão, até que a tarda velhice
Tiver trazido as rugas e tiver encanecido os cabelos.
Aqui virás, Natal, ministrarás as aves e a prole
Para que diante dos teus pés a jovem turba brinque.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Joel, White, Krall, Caymmi e Propércio

por Paulo Martins




Hoje pela manhã, Tatiana mostrou-me a regravação feita por Diana Krall (1964) para o CD "Live in Paris" (2002) de uma canção antiga de autoria de Billy Joel (The Piano Man): "Just The Way You Are", lançada no LP "The Stranger" de 1977 e, posteriormente, regravada por Barry White (1944-2003), no LP "The Collection" de 1978, versão com a qual a música ganharia notoriedade no Brasil. Certo é que esses dois grandes compositores e interpretes do R&B das décadas de '70 e '80 pareciam ter dado à composição tudo o que poderia ser dado.




Entretanto, como é de costume, Diana Krall releu com precisão o hit, imprimindo à música novo colorido e sabor sem que as qualidades anteriores fossem obturadas na releitura. A suavidade e beleza natural da interpretação são impecáveis. O piano e o violão são dignos de atenção, afora a voz sensível e plena de calor, sem esquecermos o tênue limite de conversão do R&B no mais puro Jazz.



Contudo o que mais me chamou a atenção, foram os versos "Don't go trying some new fashion//Don't change the color of your hair", cunhados por Joel. Eles, em certa medida, podem ser relacionados a outros dois momentos. Um primeiro mais antigo: Propércio, "elegia 1,2". Um segundo, bem mais recente: a canção de Dorival Caymmi (1914), "Marina" que foi regravada por Gilberto Gil em "Realce" de 1979.

A beleza feminina natural é um lugar-comum bem interessante e recorrente.

*_*_*_*_*_*_*_*


"Just The Way You Are"

Billy Joel

Don't go changing, try and please me
You never let me down before
Don't imagine you're too familiar
And I don't see you anymore

I would not leave you in times of trouble
We never could have come this far
I took the good times, I'll take the bad times
I'll take you just the way you are

Don't go trying some new fashion
Don't change the color of your hair
You always have my unspoken passion
Although I might not seem to care

I don't want clever conversation
I never want to work that hard
I just want someone that I can talk to
I want you just the way you are.

I need to know that you will always be
The same old someone that I knew
What will it take till you believe in me
The way that I believe in you.

I said I love you and that's forever
And this I promise from the heart
I could not love you any better
I love you just the way you are

I don't want clever conversation
I never want to work that hard
I just want someone that I can talk to
I want you just the way you are.

*_*_*_*_*_*_*_*

*_*_*_*_*_*_*_*
*_*_*_*_*_*_*_*

Marina

Dorival Caymmi


Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
De mal com você
De mal com você.

*_*_*_*_*_*_*_*


Propércio

I,II
QUID iuvat ornato procedere, vita, capillo
et tenuis Coa veste movere sinus,
aut quid Orontea crines perfundere murra,
teque peregrinis vendere muneribus,
naturaeque decus mercato perdere cultu,
nec sinere in propriis membra nitere bonis?
crede mihi, non ulla tuaest medicina figae sponte sua melius,
surgat et in solis formosior arbutus antris,
et sciat indocilis currere lympha vias.
litora nativis praefulgent picta lapillis,
et volucres nulla dulcius arte canunt.
non sic Leucippis succendit Castora Phoebe,
Pollucem cultu non Helaira soror;
non, Idae et cupido quondam discordia Phoebo,
Eueni patriis filia litoribus;
nec Phrygium falso traxit candore maritum
avecta externis Hippodamia rotis:
sed facies aderat nullis obnoxia gemmis,
qualis Apelleis est color in tabulis.
non illis studium fuco conquirere amantes:
illis ampla satis forma pudicitia.
non ego nunc vereor ne sis tibi vilior istis:
uni si qua placet, culta puella sat est;
cum tibi praesertim Phoebus sua carmina donet
Aoniamque libens Calliopea lyram,
unica nec desit iucundis gratia verbis,
omnia quaeque Venus, quaeque Minerva probat.
his tu semper eris nostrae gratissima vitae,
taedia dum miserae sint tibi luxuriae.

1,2
EM QUE te adianta, minha vida, andar com cabelos ornados
e ondular os trajes transparentes de Cós
ou espargir com mirra de Orontes os cabelos
e gabar-te com produtos estrangeiros
e perder a natural graça com luxo comprado
e não deixar brilhar o corpo com seus próprios encantos?
Crê em mim, tua beleza não carece de nenhum cosmético:
o Amor desnudo não gosta das belezas artificiais.
Olha as cores que a bela terra produz,
como as heras brotam melhor espontaneamente,
como a árvore surge mais formosa em solitários antros
e como a água sabe correr por vias não ensinadas.
Os litorais brilham mais, bordados, com seus próprias conchas
e aves cantam mais docemente sem nenhum aprendizado.
Não foi assim que, a filha de Leucipo, Febe, inflamou a Castor;
nem a irmã dela, Hilaíra, com luxo, a Pólux.
Nem foi assim que outrora a filha de Eveno nas margens de um rio,
seu pai, foi motivo de discórdia para Idas e para Febo apaixonado.
Não com falso candor, Hipódame,levada para longe
por carro estrangeiro, atraiu um esposo frígio:
mas, sua face, não sujeita à gema alguma, o fizera
como a cor está presente nas telas de Apeles.
Aquelas se esforçam em conquistar amantes com o vulgo,
Para elas lhes é suficiente a beleza de elegante pudor.
Agora eu não temo que eu seja para ti mais pobre que esses.
Se uma menina agrada a um único, ela é suficientemente adornada.
Quando Febo a ti concede especialmente seus poemas
e Calíope, com prazer, a lira Aônia e
a única graça não abandonou às tuas agradáveis palavras,
Nem tudo, Vênus ou Minerva aprova.
Com essas qualidades, tu sempre serás a mais grata de minha vida,
até que os luxos deploráveis te sejam enfadonhos.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Sphragís - Propércio e Horácio

Ontem, ao postar o comentário sobre o texto do Tostão e o poema do Drummond, citei o recurso poético da sphragís, dizendo apenas que era um selo, uma assinatura ao final dos livros de poesia na Antigüidade Clássica. Hoje proponho dois exemplos: o primeiro e mais famoso, Horácio na Ode 3,30; o segundo, Propércio as elegias 1,21 e 1,22.
No caso de Horácio, ao terminar seu terceiro livro de odes, ele não pretendia escrever mais odes, o que foi contrariado por ele mesmo, algum tempo depois quando publicou o quarto livro de odes. Assim, no último poema, há um inventário de sua poesia que é o seu selo, sua sphragís:

Ode 3,30
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non Aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens. dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex,
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.

Ode 3,30
Eregi obra mais perene que bronze,
Mais alta que pirâmides reais para
Que nem chuva edaz nem Áquilo colérico
Destruir possam ou inumeráveis séries
De anos ou fuga dos tempos. De todo não
Morrerei e mor parte de mim à Libitina
Sobreviverá, sempre e em todo lugar, novo
Renascerei por louvor at~e que o Pontífice
Com tácita virgem Capitólio escale.
Conhecido, onde Áufido violento ruge
E onde Dauno pobre reinou, n’águas, sobre
Campesinos, serei. Eu, de origem humilde,
O primeiro que trouxe canções eólicas
Ao metro itálico. Toma a grandeza por
Mérito obtida e cinge-me a cabeça,
Melpómene, desejando, com délfico louro.


Já Propércio propõe dois selos no final do seu Monobiblos (primeiro livro de elegias). O primeiro selo é um "atestado de óbito"; o segundo selo é uma "certidão de nascimento". Cada um deles segue as regras dos seus sub-gêneros específicos, isto é, o epitáfio e o natalício, respectivamente. Ambos inseridos no gênero maior, a elegia. Entretanto distantes também da temática erótico-amorosa que é o motivo principal da poesia properciana.


XXI
Tu, qui consortem properas evadere casum,
miles ab Etruscis saucius aggeribus,
quid nostro gemitu turgentia lumina torques?
pars ego sum vestrae proxima militiae.
sic te servato possint gaudere parentes,
haec soror acta tuis sentiat e lacrimis:
Gallum per medios ereptum Caesaris enses
effugere ignotas non potuisse manus;
et quaecumque super dispersa invenerit ossa
montibus Etruscis, haec sciat esse mea.


21
Tu que te apressas em escapar do nosso mesmo ocaso,
soldado ferido lá nos montes da Etrúria
por que volves ao meu lamento os olhos túmidos?
Eu mesmo sou parte de teu exército.
Assim, conserva-te para que teus pais se alegrem
e minha irmã não sinta, a partir de tuas lágrimas, o ocorrido.
Galo tendo escapado através das espadas de César
não pôde escapar de desconhecidas mãos
e, quando ela tiver encontrado quaisquer ossos dispersos
nos montes da Etrúria, que saiba que estes são os meus.


XXII
Qualis et unde genus, qui sint mihi, Tulle, Penates,
quaeris pro nostra semper amicitia.
si Perusina tibi patriae sunt nota sepulcra,
Italiae duris funera temporibus,
cum Romana suos egit discordia cives—
sic mihi praecipue, pulvis Etrusca, dolor,
tu proiecta mei perpessa's membra propinqui,
tu nullo miseri contegis ossa solo—
proxima suppositos contingens Umbria campos
me genuit terris fertilis uberibus.

22
Quais Penates, quem sou e d'onde é minha família,
ó Tulo, me perguntas em nome da nossa eterna amizade.
Se tu conheces a Perúgia, sepulcro de minha pátria,
é o luto da Itália em tempos difíceis,
quando a discórdia romana levou seus homens.
Assim, esta é especialmente, ó etrusca terra, dor.
Tu permitiste que os membros de meus parentes fossem espalhados,
tu não cobriste os ossos dos infelizes com terra alguma.
A vizinha Úmbria, que é limítrofe a esses campos,
ela, fértil, gerou-me em terras fartas.

Traduções: Paulo Martins

domingo, 23 de dezembro de 2007

O Jornal e um Drummond

Hoje contrariei uma velha posição recente, que a tivera como séria e irredutível:
Li jornal.
Mas minha insanidade mental não foi além do caderno de esportes de Folha de São Paulo. Afinal, esse é o meu limite para a observação da desgraça alheia e própria.
Que bela surpresa!
O texto de Tostão "Saudade, saudosismo, modernismo" talvez seja dos mais belos da crônica esportiva brasileira, o mesmo vem coroado por um grande Drummond, como que uma sphragís* temática da crônica:

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

*_*_*_*_*


*selo ou assinatura. Alguns poetas antigos propunham ao final de suas obras.

Para quem quiser ler a crônica integralmente, eis o link em O Povo, jornal cearense que disponibiliza o conteúdo:

http://www.opovo.com.br/opovo/colunas/tostao/754321.html

sábado, 22 de dezembro de 2007

Safo de Lesbos

Paulo Martins
Tão antiga quanto a própria literatura ocidental, a poesia erótica tem atravessado os séculos tomada ora como subproduto cultural, muitas vezes clandestino, ora como um gênero que desperta aquela reverência um tanto envergonhada diante de textos clássicos – e disso não se escapa quando se trata da Grécia Antiga, pródiga nas manifestações artísticas de uma cultura que valorizava a sensualidade. Fato mais notável (e eventualmente mais constrangedor para alguns) é a constatação de que foi a poesia de uma mulher do século 7º a.C., Safo de Lesbos – cujo nome, sim, deu origem aos termos lesbianismo e safismo –, que tenha inaugurado essa longa e rica tradição.
Não foi muito o que restou de sua obra: a impiedade do tempo nos legou pouquíssimos textos, e nenhum chegou integralmente até nós. O que temos hoje são apenas cacos, ruínas, vestígios de uma poesia inovadora que pode apenas indicar ou sugerir a grandeza dessa poetisa. Fora de catálogo no Brasil durante um certo tempo, ou dispersa em algumas publicações, os fragmentos de sua poesia estão reunidos agora no livro Eros, Tecelão de Mitos, de Joaquim Brasil Fontes. Além dos textos de Safo, a edição se propõe a fazer uma análise extensa e minuciosa, sem precedentes no meio literário nacional –ainda que, no que se refere à tradução, principalmente dos nomes próprios, peque por não seguir a tradição lusófona, o que facilitaria a leitura.
Da vida de Safo, pouco se sabe com certeza. Nascida entre 630 e 612 a.C. na cidade de Mitilene, na ilha de Lesbos, localizada no mar Egeu (na atual costa da Turquia), ela teve, em algum momento, de abandonar a ilha, por razões políticas obscuras, fixando na Sicília, então colônia grega. Ali, diz a tradição, reuniu em torno de si um grupo formado exclusivamente por mulheres, a fim de cultuar, por meio da música e da poesia – indissociáveis na época – em honra de Afrodite, deusa do amor, mãe de Eros, o deus menino que a tradição latina perpetuou com o nome de Cupido.
Foram nesses rituais de celebração do erotismo e da sensualidade que, ao que tudo indica, Safo deu início a esse gênero de poesia que prosperaria, nas mais diversas formas, até os dias de hoje. E não deixa de ser curioso que essa força, própria dos raros momentos históricos que marcam a inauguração de uma arte, tenha sobrevivido por meio de uma “ruína”. A resposta pode ter sido dada por Ezra Pound, que, ao incluí-la em uma antologia, justificou o ato em O ABC da Literatura: “Coloquei o grande nome de Safo na lista por sua antiguidade e porque tão pouco resta de sua obra que tanto se pode lê-la como omiti-la. Se vocês a leram, saberão que não há nada melhor.”
Pound se refere especificamente à ode Poikilothron, uma das mais sensuais de que se tem notícia na história, e é bastante provável que tenha sido a partir dela que tenha nascido a literatura erótica, seja por alusão direta ou, em caso mais incertos, por pura coincidência. Seu erotismo não é evidente, a não ser pelo fato de ter como centro da persona poética a própria Afrodite, mãe do tecelão de mitos, que é colocada num trono de cores e brilhos (o poikilothron) e caracterizada como “urdidora de tramas”. A ela é direcionada a súplica dos amantes, para que o coração do “eu”, que fala na poesia, não seja dobrado diante das mágoas e dores que a deusa urde.
Não tão sutil é a ode Phainetai, na qual Safo representa seu amor como um deus, ao qual atribui dotes sem par – “este teu sorriso que acorda os desejos” – e constrói epifanias do amor como condição física a que está sujeito o apaixonado: “meu coração no peito estremece de pavor no instante em que eu te vejo”; “escorre-me sob a pele uma chama furtiva”; “meus olhos não vêem, meus ouvidos zumbem”, “um frio suor me recobre”; ”estou a um passo da morte”. É digno de lembrança que essa mesma ode irá ser reciclada pelo romano Catulo no século 1o a.C.
No que se refere ao teor homoerótico de sua poesia, um outro fragmento é exemplar: “que morta, sim, eu estivesse:// ela me deixava, entre lágrimas// e lágrimas, dizendo:// “Ah, o nosso amargo destino,// minha Psappha: eu me vou contra a vontade”. Mas atenção: cumpre, aqui, reagir contra a leitura biografista, pois esse tipo de poesia entre os antigos poderia ser ou não reflexo de uma condição vivida pelo poeta, e aquilo que nos informa o texto de Safo pode não ser efetivamente algo de sua própria vida. O que, no entanto, não invalida a amplitude da figuração homossexual.
Mas, se é certo que a poesia de Safo serve longinquamente de modelo da poesia erótica, também é fundamental dizer que ela sobreviveu por meio de outros autores, aqueles mesmos cujas obras reproduziram, reinventando-a, essa mesma tradição – por vezes distante de certo vulgarismo; outras vezes, tão próxima e, mesmo assim, objeto digno da mais elevada literatura. Não é descabido colocar nesse rol pares tão ímpares quanto Safo e Horácio, Propércio e Florbela Espanca, Adélia Prado e John Donne, Paulo Leminsky e Allen Ginsberg, Walt Whitman e Manuel Bandeira, Ovídio e Drummond, autores que primam pela capacidade de traduzir Eros em palavras, apesar de não serem quase nunca autores circunscritos apenas a essa temática nem obrigatoriamente considerados próximos entre si, pois a distinção entre o sensual, o amoroso, o erótico e o fescenino entre eles é clara. Porém vale dizer que, em todos os casos, o deus menino e sua mãe presidem a elaboração poética, e são as suas metamorfoses que alimentam as artes.
Na antiguidade clássica, muita poesia erótica foi escrita, e a tal ponto isto é verdadeiro que se construiu em torno da temática uma preceptiva poética específica para ela, desenvolvendo-se uma gama imensa de subgêneros. Por exemplo, a elegia erótica romana de Ovídio, Propércio e Tibulo é fundamental para o entendimento da produção erótica de poetas clássicos como John Donne (1572-1631) em The Extasie (Aos corpos, finalmente, retornemos, / Descortinando o amor a toda gente;/ Os mistérios do amor, a alma os sente, / porém o corpo é as páginas que lemos.) ou em Elegie: Going to Bed (Deixa que minha mão errante adentre/ Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre./ (...) Minha Mina preciosa, meu Império,/ Feliz de quem penetre teu mistério), magistralmente musicada por Péricles Cavalcante, traduzida por Augusto de Campos e gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental.
Mas sempre é bom lembrar que a leitura de textos antigos pressupõe fundamentalmente a separação entre o poeta, historicamente tomado, e o sujeito da enunciação poética. Muitos equívocos de intelecção derivam disso. Portanto, ao lermos Safo, Propércio, Ovídio, ou mesmo, Donne, não podemos confundir a priori sujeito histórico e persona poética. Fato que pode e deve ser desconsiderado quando estamos diante de poetas contemporâneos, pós-românticos e românticos, em cujas obras podem ser observadas características pessoais e idiossincráticas, que são marcas de sua singularidade.
Quando Manuel Bandeira, por exemplo, constrói o belíssimo Água-forte na Lira dos Cinquent’anos, ele dá a dimensão dessa proximidade: “O preto no branco/ O pente na pele:/ Pássaro espalmado/ no céu quase branco.// Em meio ao pente,/ A concha bivalve/ Num mar de escarlata. Concha, rosa ou tâmara?// No escuro recesso,/ As fontes da vida/ A sangrar inúteis/ Por duas feridas.// Tudo bem oculto/ sob as aparências/ Da água-forte simples:/ De face, de flanco,/ O preto no branco.”. Além de recuperar a elocução do cânone da poesia, construindo aquilo que os antigos chamaram de ekphrasis (descrição de uma imagem visual), Bandeira imprime também toda uma história pessoal que não pode ser desconsiderada: na sua poesia a impossibilidade da concretização do amor e a sublimação do sexo são evidentes. Isso sem contar a simplicidade compositiva que é pedra de toque nessa grande obra, desmitificando a própria linguagem e a associando à sua própria simplicidade, num jogo de xadrez cujos sujeitos são vida e poesia.
Falar de amor e sexo é falar da própria humanidade. Na antiguidade, ela era o reflexo da condição humana que deveria ser observada na poesia como algo possível, necessário e inevitável; nos tempos atuais, como retrato de uma condição individual que alavanca o “eu poético e histórico” para o cerne da representação e, portanto, para o centro da existência. No caso de Eros, Tecelão de Mitos, essas duas vertentes estão presentes. A primeira parte do ponto arquetípico que é a própria obra, hoje fragmentária, da poetisa de Lesbos; e outra que nasce da preocupação do autor em buscar na modernidade a decifração do tema como condição de vida. Assim Eros – e não as Parcas, as senhoras dos destinos do homem – é que tece a vida. A vida como mito, como discurso que representa a condição universal do homem que, hedonicamente, sobrevive, mesmo diante das agruras que vida impõe e diante dos prazeres que o texto e o amor proporcionam.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Duas Elegias - Duas Traduções - Duas Imagens

Duas Elegias do Segundo Livro de Propércio

Paulo Martins

XII
QVICVMQVE ille fuit, puerum qui pinxit Amorem,
nonne putas miras hunc habuisse manus?
is primum vidit sine sensu vivere amantis,
et levibus curis magna perire bona.
idem non frustra ventosas addidit alas,
fecit et humano corde volare deum:
scilicet alterna quoniam iactamur in unda,
nostraque non ullis permanet aura locis.
et merito hamatis manus est armata sagittis,
et pharetra ex umero Cnosia utroque iacet:
ante ferit quoniam, tuti quam cernimus hostem,
nec quisquam ex illo vulnere sanus abit.
in me tela manent, manet et puerilis imago:
sed certe pennas perdidit ille suas;
evolat heu nostro quoniam de pectore nusquam,
assiduusque meo sanguine bella gerit.
quid tibi iucundum est siccis habitare medullis?
si pudor est, alio traice tela una!
intactos isto satius temptare veneno:
non ego, sed tenuis vapulat umbra mea.
quam si perdideris, quis erit qui talia cantet,
(haec mea Musa levis gloria magna tua est),
qui caput et digitos et lumina nigra puellae,
et canat ut soleant molliter ire pedes?

12
Quem quer que seja que pintou o Amor menino
Não julgas que ele tivesse mãos admiráveis?
Primeiro viu os amantes viver sem juízo
e os grandes bens perecer sem cuidados.
O mesmo não ao acaso adicionou asas ligeiras
e fez o deus voar no coração humano:
É evidente, porque somos lançados em ondas alternadas
e nosso ar não se conserva em lugar algum
e com razão suas mãos são armadas com setas aduncas
e de seu ombro pende aljava de Gnossos:
Porque feriu, antes que seguros julguemos o inimigo,
ninguém se livra desta cicatriz.
Em mim as setas permanecem, permanece a imagem pueril:
mas, certamente, ele perdeu suas asas,
porque, ah!, não voa de meu peito para lugar algum
e assíduo em meu sangue gere guerras.
Por que te é agradável habitar em um coração ressequido?
Se existe a honra, lance em outro tuas setas!
É melhor atingir pessoas sãs com este veneno:
Não sou eu, mas minha tênue sombra está sendo açoitada.
Tanto que se me perderes, quem será que irá cantar tais coisas,
Essa, minha Musa suave, é tua maior glória:
Aquele que cante a cabeça, os dedos, os olhos negros
de menina e como seus pés irão seguir suavemente?


XXXI
QVAERIS, cur veniam tibi tardior? aurea Phoebi
porticus a magno Caesare aperta fuit.
tantam erat in speciem Poenis digesta columnis,
inter quas Danai femina turba senis.

hic equidem Phoebo visus mihi pulchrior ipso
marmoreus tacita carmen hiare lyra;
atque aram circum steterant armenta Myronis,
quattuor artificis, vivida signa, boves.
tum medium claro surgebat marmore templum,
et patria Phoebo carius Ortygia:
in quo Solis erat supra fastigia currus;
et valvae, Libyci nobile dentis opus,
altera deiectos Parnasi vertice Gallos,
altera maerebat funera Tantalidos.
deinde inter matrem deus ipse interque sororem
Pythius in longa carmina veste sonat.


31
Tu me perguntas qual motivo me atrasa? Foi aberta
A porta áurea de Febo pelo grande César.
Todo construído em linha reta com colunas púnicas,
Entre as quais surge feminina turba de Dânao.
Lá Febo marmóreo cantando carme com muda lira
pareceu-me mais belo que o próprio Febo;
E em torno do altar: o rebanho de Míron ergue-se:
Quatro bois - signos vivos do artífice.
Então no meio o templo surge em alvo mármore,
Mais caro a Febo que sua pátria Ortígia.
Acima da cumeeira está o carro do sol
Em suas portas, nobre obra em líbio marfim;
De um lado os galos expulsos do alto do Parnaso,
De outro lamentam os funerais de Tantálida.
E logo entre a sua mãe e sua irmã, o próprio deus

Pítio em longa veste canta carmes.

sábado, 17 de novembro de 2007

A Arte Poética de Aristóteles



Retrato de Aristóteles. Mármore pentélico, cópia do período Imperial (1o. ou 2o século da nossa era), a partir de uma escultura em bronze de autoria de Lisipo.
Museu do Louvre - Paris
Paulo Martins

Ao invés de falar a respeito de um autor essencialmente literário, como venho fazendo nesta coluna, abro espaço a um filósofo, talvez dos mais significativos e copiosos que os gregos antigos nos legaram: Aristóteles. Isto não sem motivos. Afinal, pode-se dizer, de um lado, que, no âmbito das práticas letradas da Antigüidade Clássica greco-romana, a filosofia, sob a perspectiva da constituição do texto, assim como a história, representa um gênero que, por si, pode ser observado literariamente; de outro lado, não apenas na obra ora observada, a Arte Poética, o filósofo de Estagira centra sua reflexão sobre uma questão literária, mas também em outra cujo fulcro é o texto em prosa e, nesse sentido, encontramos a Arte Retórica, texto, sem o qual pouco ou quase nada poderíamos aferir das técnicas de construção literária até pelo menos o século XVIII. Dessa forma, falar de Aristóteles é também falar dos primeiros textos de teoria literária no ocidente.

Nascido em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C., aos 17 anos, muda-se para Atenas onde passa a fazer parte da Academia platônica, isto é, passa a ser discípulo de Platão até a morte deste em 347. Em 343, assume a função de preceptor de Alexandre, o grande na Macedônia onde fica até 336. Retorna a Atenas e funda o Liceu. Apesar de sua filiação platônica, Aristóteles é conhecido, pelo menos, sob o ponto de vista de uma teoria literária antiga, como antípoda daquele filósofo. Enquanto Platão, seja n’A República, seja no Íon, assim como no Fedro, critica a idéia de valorização da poesia como imitação, julgando-a distante da Verdade e observando que o único tipo de poesia que deve ser valorizada é a inspirada - aquela que sobrevém como inspiração divina ou como “mania” (possessão) - Aristóteles, por seu turno, defende a concepção de poesia como técnica (técne/ars) e mimese (imitação), não construindo, em momento algum, juízo de valor sobre o fato de ela ser Verdadeira, ou ainda, perniciosa ou infesta como um todo à formação do homem político (homem da pólis).

Ao exalçar a atividade humana da técne (ars-técnica) como forma de conhecimento, o filósofo dedicou-se a descrever a atividade literária grega em duas grandes obras: A Poética e a Retórica. A primeira dividida em dois livros dos quais nos restou apenas o primeiro, trata da fundamentalmente de dois gêneros literários muito caros aos gregos: A epopéia e a tragédia. Há a informação de que o segundo livro da Poética trataria de outros dois gêneros: a comédia e a poesia jâmbica (típica da invectiva). Já a segunda obra, dividida em três livros, ocupa-se fundamentalmente da oratória e seus subgêneros: o judiciário, o deliberativo e o demonstrativo. Em que se pese a distinção entre prosa e poesia, vale dizer que os conceitos tratados na Poética podem ser aplicados à prosa, assim como os tratados na Retórica podem ser observados na produção poética. Dessa forma, há quem julgue que estas duas obras podem, de certa maneira, abarcar a totalidade do conhecimento literário antigo como doutrina, como sistema.

A poética parte, portanto, do pressuposto de que a poesia é imitação. Seja da realidade na qual estamos inseridos, seja da tradição poética a que pertence o poeta e, este axioma decorre do fato de ser inato ao ser humano imitar. A poesia como mimese pode ser observada sob três aspectos distintos: por imitar por meios diferentes, por imitar objetos distintos ou por imitar diferentemente ou de modo diferente. Estas três possibilidades de avaliação delimitam genericamente a composição poética, isto é, ao propor tal taxonomia, Aristóteles acabou por estabelecer as primeiras distinções de gêneros poéticos que, por vezes, algo distam da nossa concepção moderna de gêneros.

A imitação “por meios diferentes” decorre da possibilidade da utilização do ritmo e da harmonia: poesias há em que a música é indissociável – um exemplo seria a poesia lírica dos gregos antigos – já, outras existem em que a música seria utilizada em parte dela como ocorre nas tragédias onde a harmonia é trabalhada pelo coro e não nas partes dialogadas. Porém, também, existem poesias dissociadas da música como é o caso da epopéia. Por sua vez, “o imitar objetos diferentes” significa dizer que a atividade poética pode ser observada de acordo com aquilo que imitamos e ,nesse sentido, encontramos aquelas que se ocupam de ações superiores (a tragédia e a epopéia); aquelas que tratam de ações inferiores como ocorre na sátira e na comédia; ou ainda, aquelas que devem observar as ações de homens como nós, isto é, a lírica em geral. Já o “modo diferente da imitação” pode ser detectado quando verificamos que uma mesma ação pode ser apresentada de forma narrativa ou com a presença de agentes e, daí, derivaria a distinção entre poesia épica e trágica.

Certas categorizações aristotélicas são de suma importância. Um bom exemplo disto é a determinação das partes da tragédia e da epopéia. No processo de elaboração poética, o autor de tragédias não pode descuidar das suas partes constitutivas, a saber: o espetáculo cênico (a ópsis), a música (a melopoía), os personagens (os éthe/caracteres), o enredo (o mythos), a elocução (a léxis) e o pensamento (a diánoia). Mais uma vez, o filósofo propõe uma distinção entre tragédia e épica: a segunda, quanto às suas partes constitutivas está inserida na primeira, excetuando-se, assim, o espetáculo cênico e a música que não aparecem na epopéia.

Ao observar a tragédia mais atentamente, Aristóteles também indica que nela podem-se verificar enredos construídos de forma diferente. Um a que ele dá o nome de “simples”; outro a que ele chama de “complexo”. Seria o último o que não possuísse nem “peripécia”, tampouco “reconhecimento”, mecanismos que interferem na sucessão dos acontecimentos no enredo. A “peripécia” constitui na inversão do encaminhamento dos fatos em seu oposto, ou seja, uma “reviravolta”. Já, o “reconhecimento”, a que os gregos davam o nome de “anagnórisis”, ocorre quando certa personagem toma conhecimento de algo e tal fato muda o sucesso dos acontecimentos. Tais diferenciações quanto ao tipo de enredo (“mythos”), lá apreciados pelo filósofo, podem ocorrer na poesia épica.

Talvez, entre seus comentários acerca da poesia, levados a termo na Arte Poética, aquele que seja mais controverso e polêmico é o que aparece no capítulo IX quando compara poesia e história. Diz Aristóteles: “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.”

Propondo a poesia como “mais filosófica e mais séria que a história”, Aristóteles acabou por, de certa forma, “agredindo” o caráter científico das investigações? Ao que parece, por muito tempo historiadores importantes viram-se vilipendiados por ele, uma vez que o fato de a história ser menos séria ou menos filosófica, pode parecer um menosprezo pela “atividade científica” em nome de uma certa “criatividade poética”. Valeria mais o exercício de uma técne/ars do que a observação e análise dos eventos ocorridos. Tal leitura do texto parece-me equivocada. Aristóteles não menospreza a atividade das “históriai” (investigações em grego), antes a propõe como atividade específica, aquela que trata de questões pontuais e inequívocas.

Já a poesia, para ele, por ser uma atividade imitativa, abre a possibilidade de ser uma fictio/ficção e, assim observada, não trata de um evento específico, mas de um fato generalizante e genérico, no mais das vezes, exemplar que pode atingir por similaridade a todos aqueles que o observam, inserindo-os no eixo ativo da fruição poética. Dessa forma, a poesia trabalha o universal em contrapartida à história que se fixa no particular. Daí o caráter educativo da poesia e da pintura que tão bem é verificado em outra obra do filósofo de Estagira, a Política.

Outro aspecto curioso da obra aristotélica é a sistemática aproximação entre a poesia e a pintura. Essa relação que, dentro da tradição ocidental, muitos atribuem a Horácio (Discutindo Literatura, 12) quando observa o “ut pictura poesis” (“como a pintura é a poesia”) na sua Arte Poética (Epístola aos Pisões), é muito anterior a ele. Na verdade, Simônides, poeta lírico grego arcaico já no século 6 a.C., tinha proposto: “a pintura é a poesia muda e a poesia é a pintura que fala”. Ou mesmo, Platão n’A República no século 5 a.C., quando critica a poesia mimética também se opõe a outras formas de mimese como a pintura. Entretanto, parece ponto recorrente na Arte Poética de Aristóteles esta aproximação. Compara, por exemplo, que pode haver pintura sem e com éthos (caráter), assim como poesia. Diz ainda que quanto ao objeto da imitação há pintores que se ocupam de imitar seres superiores; outros, de seres inferiores. Assim da mesma forma, que há uma poesia de caráter elevado ou baixo, também há pinturas desses matizes.

A Arte Poética, portanto, muito além de nos informar sobre o processo de composição de poesia na Antigüidade Clássica, nos indicando todos os passos que devem ser observados pelos poetas em sua atividade técnica, também registra certos aspectos culturais mormente aqueles que se filiam à educação e à formação do homem ocidental. Registre-se aqui, no entanto, um inconformismo que, talvez, tenha sido o mesmo que levou Umberto Eco a escrever o livro “O nome da rosa”: o desaparecimento do segundo livro da Poética.

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Para ler em português:



Aristóteles - Poética. Tradução: Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda. 1992.


terça-feira, 23 de outubro de 2007

Pulp Fiction


Pelo que se vê pelo nome do autor do texto, só posso dizer que é meu filho, nascido em 1996. Parabéns, filho.


Por Paulo Martins Filho

Lançado num ano (94) de ótimos filmes como Forrest Gump - O Contador De Histórias e Quatro Casamentos e Um Funeral, Pulp Fiction certamente se destaca. Dirigido magistralmente por Quentin Tarantino, diretor dos também maravilhosos Cães De Aluguel, Kill Bill e Kill Bill: Volume Dois, o filme possui quatro histórias: a primeira, de Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e de Vincent Vega (John - renascido das cinzas - Travolta). A segunda, centrada em Vincent Vega e Mila Wallace (Uma Thurman). A terceira, em que conhecemos Butch (Bruce Willis). E a última, baseada em Jules Winnfield. Todas contadas de forma não cronológica ao público e ligadas como se fossem elos de uma corrente.



Jules Winnfield e Vincent Vega


A história começa com Jules e Vincent , dois mafiosos que devem fazer uma cobrança a mando de Marsellus Wallace (Ving Rhames), tendo uma brilhante conversa sobre fast-food's, massagem e a quanto o chefe de ambos pode chegar para quase matar um homem, que fez um simples gesto de carinho a esposa dele. Nesta parte há um momento muito lembrado pelos cinéfilos em geral: quando Jules cita uma passagem da Bíblia antes de matar um homem. O grande mistério do filme é o que há dentro da maleta que Jules e Vincent foram cobrar dos jovens? Ninguém sabe e provavelmente nunca irá saber. A conversa deles sobre um certo "milagre" que ocorreu com os dois é bastante divertida. Esta é a história do filme que para mim os diálogos são mais bem trabalhados.


Vincent Vega e Mia Wallace



Vincent e Mia (Uma Thurman), mulher de Marcellus (chefe de Jules e Vince) têm uma “certa química”, mas não isto chega a ser um romance. Ele, Vince, fora mandado pelo chefão a divertir sua esposa, uma viciada em cocaína, por uma noite. Esta história tem cenas fortes, como a overdose de Mia e várias cenas de consumo de drogas. Mas há também cenas divertidas, como a famosa cena da dança do milk shake de 5 dólares, quando Mia leva Vincent para uma lanchonete “retrô” com Elvis e Marilyn Monroe por toda a parte. Uma Thurman está magnífica no papel e John Travolta não menos. A parte que Mia acorda da overdose é surpreendente.


Butch e seu relógio


Na minha opinião, esta é a melhor história do filme e, também, a mais violenta. Butch é um pugilista prestes a se aposentar e que em sua última luta, é comprado para perdê-la, mas a ganha e foge com o prêmio e sai em busca do relógio de seu pai.
Tudo começa com o Capitão Koons (Cristopher Walken) chegando à casa de Butch, ainda pequeno. Ele conta a história de um relógio. O avô de Butch foi preso na Segunda Guerra Mundial e guarda consigo mesmo o relógio que seu pai lhe havia dado. Assim, o avô de Butch dá o relógio para seu pai que o leva com ele à guerra do Vietnã. O pai de Butch é preso também e teve que guardar o relógio no ânus. Capitão Koons ficou preso com ele. E assim Koons acaba dando o relógio para Butch. Temos um corte no tempo com Butch deitado dormindo no vestiário do estágio em que faria sua última batalha, comprada para ele perder. Butch não perde, ganha e ainda mata o seu adversário. Fica com o dinheiro e foge num táxi em que temos uma conversa muito bem trabalhada entre ele e a taxista. Está tudo acertado, mas tem um pequeno problema: sua amada Fabienne (Maria de Medeiros) esqueceu o relógio que seu pai guardou dolorosamente durante longos dias. Então Butch parte em busca de seu relógio. Vai até o seu apartamento pega o relógio e ainda mata Vincent Vega (!) que estava o aguardando. Tudo está normal até que na volta pra encontrar Fabienne, ele encontra por ironia do destino Marsellus Wallace no meio da rua. Marsellus super irritado com Butch começa uma longa briga que se sucede até uma loja de guitarras. Lá os dois são presos por outros dois caras, que guardam um homem em roupa de latex como se fosse um animal – puro fetiche neonazista.
Marsellus é violentado e Butch o salva com uma "katanna" mata um dos estupradores. O outro Zed (Peter Greene) não sabemos o que acontece com ele. O que sabemos é que Marsellus atira em suas partes baixas e vai chamar dois 3x4 para fazer técnicas medievais no traseiro de Zed. Marsellus e Butch fazem as pazes, Butch pega a Harley-Davidson de Zed para buscar Fabienne. E solta a famosa frase: "Zed is dead, baby; Zed is dead".



A decisão de Jules Winnfield


Uma continuação da primeira história é quando Jules e Vincent estão levando o único jovem que sobrou para conversar com Marsellus. Até que acidentalmente Vincent atira na cabeça do jovem e assim fazendo a maior bagunça no carro. Jules e Vincent estão totalmente desorientados, até que Jules leva o carro para a casa de Jimmie (Quentin Tarantino) seu amigo que fica muito bravo porque se sua mulher chegar do trabalho e achar um cara morto no carro, ela vai acabar tudo com ele. Eles têm uma hora até a mulher de Jimmie chegue em casa. Jules e Vincent ligam para Marsellus que liga para Winston "The Wolfe" (Harvey Keitel), um cara que é o melhor em limpar sujeiras de assassinatos. Assim, tudo ocorre bem Wolfe limpa o carro antes da mulher de Jimmie chegar. Jules e Vincent tem que trocar de roupas, pois a que estavam usando estava suja de sangue. Vestindo roupas ridiculas Vincent e Jules vão tomar café da manhã. Lá temos a entrada do filme com Pumpkim (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) ao som de Misirslou. Jules Winnfield assim que acaba o assalto, toma uma decisão: se tornar uma andarilho, para onde seu coração o levar. E com esta história fecha-se o último elo da corrente.


Conclusão


Pulp Fiction não é um filme fácil, mais com trilha sonora magnífica e diálogos inteligentes, com certeza é um filme que marcou uma década.

A Elegia de Propércio

Paulo Martins
Aqui no Brasil em 1985, o mercado editorial nos surpreendeu pela tradução e conseqüente publicação de um livro do famoso historiador francês Paul Veyne. Não que ele, historiador de renome internacional, não devesse ser publicado, mas esta obra específica não constava dos currículos dos cursos de História como sendo algo substantivo e necessário. Tal obra intitulava-se A elegia erótica romana. O amor, a poesia e o ocidente. Este pequeno livro, hoje esgotado, trata de um gênero poético curioso: a elegia, que, se observados os manuais de teoria literária, ou mesmo, o título de alguns poemas da Literatura Brasileira e portuguesa, pode ser superficialmente associada a uma composição poética de cunho lamentoso, ou seja, é a elegia, na modernidade ocidental, um gênero poético cuja característica está centrada na temática do lamento, da tristeza, das desilusões existenciais.
É assim que a encontramos na lírica de Vinícius, de Rainer Maria Rilke (1875-1926) n’As elegias de Duíno ou de Drummond “ganhei (perdi) meu dia // E baixa a coisa fria chamada noite...”, lembram? Contudo, se associarmos esta idéia ao título do livro de Veyne, poderia haver aqui um paradoxo! Como o erótico, o sensual pode ser alvo do lamento? Por favor, não respondam! Eu sei que a impossibilidade da efetivação erótica pode suscitar graves depressões. Mas saibam: não é da impossibilidade física sexual que os comentários do autor tratam no livro, tampouco as elegias escritas na Roma antiga.
O livro de Veyne, mais do que um retrato da vida cotidiana romana na Antigüidade, analisa fidedignamente, mapeia a obra de três grandes poetas romanos: Ovídio, Tibulo e Propércio. Esses três autores, que viveram entre o I século a.C. e o I século d.C., são alvo de uma acurada leitura por parte do historiador que propõe uma ligação íntima entre suas composições e o modo de vida dos romanos. Nesses poetas, encontraremos a história do amor em sua origem. Aprendemos a entender nossos próprios sentimentos amorosos ao observarmos os alheios e como essa forma de amar pode ser tópica e típica para nós ocidentais. E esta era a intenção desses autores: ensinar a amar. Ao lermos sobre amantes, nos tornamos aptos a amar. Dos antigos elegíacos, talvez, Ovídio tenha sido o mais explícito nesse sentido, afinal os títulos de suas obras deixam clara esta preocupação: Arte de Amar, Amores, etc.
Talvez não precisássemos ir tão longe, até a Roma da Antigüidade, para entender melhor este tipo de poesia, ou melhor, este gênero, bastaria escutarmos uma música gravada por Caetano Veloso em seu belo LP (Valha-me Deus! Que coisa velha!), Cinema Transcendental, chamada “Elegia”. Ela é na verdade uma tradução feita por Augusto de Campos de um poema Elegy going to bed do poeta metafísico inglês John Donne (1572-1631): “(...)Desata esse corpete constelado, // Feito para deter o olhar ousado. // Entrega-te ao torpor que se derrama // De ti a mim, dizendo: hora da cama. // Tira o espartilho, quero descoberto // O que ele guarda, quieto, tão de perto.//O corpo que de tuas saias sai // É um campo em flor quando a sombra se esvai. // Arranca essa grinalda armada e deixa // Que cresça o diadema da madeixa. // Tira os sapatos e entra sem receio // Nesse templo de amor que é o nosso leito. // (...)Deixa que a minha mão errante adentre // Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre. // Minha América! Minha terra à vista, // Reino de paz, se um homem só a conquista, // Minha Mina preciosa, meu Império, // Feliz de quem penetre o teu mistério! // Liberto-me ficando teu escravo; // Onde cai minha mão, meu selo gravo. // Nudez total! Todo o prazer provém // De um corpo (como a alma sem corpo) sem // Vestes.(...) // Como encadernação vistosa, feita // Para iletrados, a mulher se enfeita; // Mas ela é um livro místico e somente // A alguns (a que tal graça se consente) // É dado lê-la. Eu sou um que sabe; //Como se diante da parteira, abre // Te: atira, sim, o linho branco fora, // Nem penitência nem decência agora. // Para ensinar-te eu me desnudo antes: // A coberta de um homem te é bastante."
Este texto nos dá chave de compreensão da elegia erótica romana, apesar de ser um texto inglês do século 17. O ambiente do poema é o leito em que os amantes se encontram em pleno prelúdio amoroso. A partir desta circunstância o poeta tece considerações acerca do corpo da amada e subseqüente ilação “metafísica”, afinal o corpo “é um campo em flor quando a sombra se esvai”. Depois desta apresentação, o ato amoroso se consome “deixa que minha mão errante adentre atrás, na frente, em cima, em baixo, entre”. Notem que o poema não apresenta nenhuma referência à impossibilidade do ato amoroso, nem tampouco alude a uma crise existencial que seja geradora do lamento. Ao contrário ele se coloca como ode (nos termos modernos) ao amor, isto é, um canto alegre e entusiástico ao ato sexual e à mulher amada.
Goethe (1749-1832), o famoso poeta alemão, autor do Fausto e do Werther, por sua vez, também compôs elegias e, mais curiosamente, um grupo delas chama-se “Elegias Romanas”. Contudo, uma outra elegia, não pertencente à recolha citada, é muito interessante, pois resgata a influência de um dos três poetas romanos citados sobre a sua obra. Diz Goethe: “É crime que Propércio me haja divertido// e um dia Marcial me acompanhado?” (tradução de Antônio Medina Rodrigues). Mas, dentro ainda das “Elegias Romanas”, podemos encontrar traços de semelhança não só em relação a Donne, como também, à concepção moderna de elegia: “Não te arrependas, Amada, porque a mim tão depressa te deste! // Podes crer, nem por isso de ti penso coisas insolentes e vis! // Vária é a ação das setas do Amor: algumas arranham, // E do rastejante veneno languesce pra anos o peito. // Mas, com penas potentes e gume afiado de fresco, // Outras penetram até ao tutano e rápido inflamam o sangue.” (tradução de Nelson Ascher). Neste pequeno trecho, além da citação explícita da temática amorosa, vemos também traços de certa melancolia, bem própria sem dúvida do século 19. A despeito da indicação da influência de Propércio sobre sua obra, algo novo e inusitado surge aí em suas elegias e, talvez, seja esse o legado romântico às elegias modernistas.
Propércio, por seu turno, assim como Tibulo e Ovídio, descarta o tom melancólico, ao contrário, muita vez, parece ironizar o “eu-elegíaco” que, como em grande parte das obras antigas, confunde-se com o “eu histórico e vivido” e neste caso, Propércio. Traço interessante nessa obra é a insistência na utilização de lugares comuns já experimentados por Catulo (veja Discutindo Literatura, 9), por exemplo. Em seus quatro livros de elegia, o poeta mostra um “eu” que se consome por um único amor: Cíntia. Ela é o centro de sua atenção, amor e desventuras. Propércio também além da construção literária de sua amada, não poupa esforços na caracterização do próprio amor, freqüentemente, antropomorfizado. O que não poderia deixar de ser, uma vez que o amor para os antigos era Amor, Eros, Cupido. Na verdade não era um e sim dois gêmeos, filhos de Vênus. Vejam como o poeta os caracteriza na 12ª elegia do segundo livro: “Quem quer que seja que pintou o Amor menino // Não julgas que ele tivesse mãos admiráveis? // Primeiro viu os amantes viver sem juízo // e os grandes bens perecer sem cuidados. // O mesmo não ao acaso adicionou asas ligeiras // e fez o deus voar no coração humano: // É evidente, porque somos lançados em ondas alternadas // e nosso ar não se conserva em lugar algum // e com razão suas mãos são armadas com setas aduncas // e de seu ombro pende aljava de Gnossos: // Porque feriu, antes que seguros conheçamos inimigo, // ninguém se livra desta cicatriz. // Em mim as setas permanecem, permanece a imagem pueril: // mas, certamente, ele perdeu suas asas, // porque, ah!, não voa de meu peito para lugar algum // e assíduo em meu sangue gere guerras. // Por que te é agradável habitar em um coração ressequido? // Se existe a honra, lance em outro tuas setas! // É melhor atingir pessoas sãs com este veneno: // Não sou eu, mas minha tênue sombra está sendo açoitada. // Tanto que se me perderes, quem será que irá cantar tais coisas, // Essa, minha Musa suave, é tua maior glória: // Aquele que cante a cabeça, os dedos, os olhos negros // de menina e como seus pés irão seguir suavemente?” (Elegia 2,12)
O leitmotiv de sua obra parte desta concepção do Amor. Cíntia é o cerne, mas por trás dela está a divindade que o abala. Note-se, entretanto, que existe a consciência subjacente dos efeitos do amor. A curiosidade maior é a idéia de puerilidade: o amor como a criança é capaz de ser encantador e cruel, cativante e insensível. Por sua vez Cíntia, também é caracterizada, vejamos: “Cíntia foi a primeira que me capturou, mísero , com seus olhos;// eu nunca antes atingido por nenhum desejo. // Então, o Amor arrebatou-me meu olhar de arrogância inabalável// e debaixo de seus pés pressionou minha cabeça // até que me ensinou a odiar castas meninas // e, ímprobo, a viver sem prudência.” (Elegia 1,1)
Cíntia assim como a Lésbia de Catulo é caracterizada em diversas instâncias que percorrem desde a simples observação de que sua beleza natural, que é mais do que suficiente para arrebatar o amado, até sua associação às características mais amargas e contundentes das mulheres de vida fácil em Roma. Ao mesmo tempo em que é figurada no âmbito mais sublime, é também observada sob a perspectiva de traços vis e baixos. Ela, Cíntia, assim, sintetiza o adágio de Catulo “Odeio e amo. Me perguntas por que? // Não sei. Só sei que sinto e me crucifico”. Amor e ódio. Beleza e feiúra. Alegria e tristeza. Arrebatamento e desprezo. Verso e reverso de uma só moeda. Motivo e efeito do amor. Assim Propércio constrói a “sua amada”, pontuando ora traços naturais que lhe são inerentes, ora marcando seu desprezo que nasce da impossibilidade da existência do “affair amoroso”. Diz Propércio: “Em que te adianta, minha vida, andar com cabelos ornados // e ondular os trajes transparentes de Cós // ou espargir com mirra de Orontes os cabelos // e gabar-te com produtos estrangeiros // e perder a natural graça com luxo comprado // e não deixar brilhar o corpo com seus próprios encantos? // Crê em mim, tua beleza não carece de nenhum cosmético: // o Amor desnudo não gosta das belezas artificiais. // Olha as cores que a bela terra produz, // como as heras brotam melhor espontaneamente, // como a árvore surge mais formosa em solitários antros // e como a água sabe correr por vias não ensinadas.” (Elegia 1, 2) Esta elegia - que poderia ser a versão avant a lettre de “Marina morena Marina você se pintou // Marina faça tudo //Mas faça o favor // Não pinte este rosto que eu gosto // Que eu gosto e que é só meu //Marina você já é bonita// Com o que Deus lhe deu (...)” de Dorival Caymmi - é marca da sublimidade com a qual Propércio pinta invariavelmente Cíntia para torná-la inatingível, a despeito do fato de sua beleza não carecer de artifícios humanos, por ser bela em si mesma é também inatingível, platonicamente falando.
Como grande parte dos poetas antigos, Propércio também nos dá chave da sua composição poética, isto é, abunda entre seus poemas a metalinguagem que pode indicar elementos constitutivos da forma, como também do conteúdo: “Perguntais donde são escritos tantos amores por mim, // de onde meus suaves livros vem à boca. // Estes não me canta Calíope, nem Apolo. // A própria menina me produz engenho. // Se a vi caminhar fulgente em veste de Cós, // todo volume será sobre a veste de Cós. // Se vi seus cabelos escorrerem pela sua fronte, // Ela se alegra de seguir soberba dos cabelos louvados. // Se com seus dedos de marfim tocou carme na lira, // admiro que facilmente a sua mão toque com arte // ou quando fecha os olhos que reclamam de sono, // poeta encontro mil novas causas. // Se, tendo tirado a roupa, nua luta comigo, // então certamente torno agradável longas Ilíadas.” (Elegia 2, 1).
Apresentando uma visão típica romana, Propércio repudia a tradição oral e inspirada da poesia grega homérica, ao dizer que não é uma musa Calíope (uma das nove filhas de Zeus e de Mnemosyne – a Memória), tampouco Apolo, o deus do arco e da lira que o inspirou. Ao contrário afirma que é a própria mulher o motivo de suas composições e, mais, de sua habilidade no trato com o verso. Vai além, explicita que mesmo elementos coadjuvantes próximos a ela – e apenas por esta proximidade – são capazes de fazê-lo poeta. Outro dado interessante é a tópica da recusa do gênero épico que aqui aparece subliminarmente. Calíope é musa da poesia épica e Apolo não só é o deus que tão bem maneja o arco (coincidentemente também Cupido o manipula), mas também a lira. Assim ele é bom na melodia e na guerra, elementos sempre ternos à épica. Além disso, uma metáfora que, para os antigos me parece mais uma catacrese, desponta ao fim desse trecho “Se, tendo tirado a roupa, nua luta comigo”: O embate que ele sugere aqui não é o embate entre varões, ao estilo Heitor e Aquiles, antes é o combate dos corpos no leito. Assim sua poesia é marcada ao mesmo tempo pela distância da épica, porém mantém uma proximidade temática arrevesada – de um outro tipo de guerra, a do Amor.
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Para ler em Português:
Aires A. Nascimento (ed.), Propércio - Elegias, Traduzido do latim por Aires A. Nascimento, Maria Cristina Pimentel, Paulo F. Alberto, J.A. Segurado e Campos, Lisboa: Centro de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras de Lisboa; Assis: Accademia Properziana del Subasio, 2002, 473 pp. ISBN: 972-9376-05-0.
Propércio - Elegias
(texto latino e tradução portuguesa, com comentário)
Edição de Centro de Estudos Clássicos (Lisboa) com o patrocínio da Accademia Properziana del Subasio (Assis)
Realizada por quatro investigadores do Centro de Estudos Clássicos (Aires A. Nascimento, Cristina Pimentel, Paulo F. Alberto, J. A. Segurado Campos) acaba de ser publicada a primeira tradução completa das Elegias de Propércio. Foi patrocinada pela Accademia Properziana, prestigiada instituição que remonta ao séc. XVI e tem a sede em Assis, terra onde nasceu o poeta Propércio. Vem essa tradução acompanhada do texto latino, na edição realizada por Paolo Fedeli para as edições Teubner. O mesmo Paolo Fedeli escreveu a introdução (Propércio, poeta de amor). A edição poderá ser adquirida no Centro de Estudos Clássicos ao preço de 15 � (12 � para estudantes). A apresentação oficial da tradução foi feita no termo do Congresso Properciano que teve lugar em Assis (Accademia Properziana), no dia 26 de Maio de 2002.

domingo, 2 de setembro de 2007

Tarantino's Mind - Uma preciosidade

Apesar de a discussão sobre cinema não ser meu objetivo neste blog, não posso deixar de dividir com vocês esta preciosidade de curta-metragem. O filme chama-se Tarantino's mind, dirigido pela dupla carioca 300ml, da Hungry Man e produzido pela Republika Filmes.

Ele foi exibido pela primeira vez no Festival Rio 2006. E está sendo exibido no programa Panorama Brasil, da 18ª edição do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Na época de sua apresentação no Rio, há quem diga que foi o que ocorreu de melhor e, agora, tendo eu assistido, concordo plenamente, apesar de não ter visto os outros concorrentes.

O curta ambienta-se no antigo bar paulistano Pandoro (Av. Europa) e põe em cena dois personagens protagonizados por Selton Mello e Seu Jorge numa conversa de botequim, regada a chopp e batatas fritas.

O enredo, extremamente simples, gira em torno da possibilidade de decifração da "cabeça" do cineasta norte-americano Quentin Tarantino (do qual sou fã). Na verdade, o que o personagem de Selton Mello propõe é uma unidade possível dos filmes do afamado diretor, isto é, a partir de cenas, personagens e elementos cenográficos, ele verefica que o diretor recicla, repropõe, retoma os mesmos elementos, cenas e personagens constantemente, gerando, por assim dizer, um moto-continuo de intertextualidade ou dialogismo.

Assim, teria o criador de Pulp Fiction, Kill Bill, Grindhouse e Reservoir Dogs, segundo o diálogo impagável e mirabolante, feito um único filme, exibido em etapas. Por sua vez, a montagem curiosa e acurada faz com que a teoria proposta do “código Tarantino” torne-se visível a olhos nus para nós, meros espectadores leigos.

O filme será exibido e estará concorrendo a prêmios nos seguintes Festivais:

Festival de Curtas de Los Angeles - 05 a 16 de setembro.
Festival de Curtas de Veneza - 01 a 07 de setembro.

Clique e confira, são apenas 12 minutos. Vale mesmo!!!

http://video.google.com/videoplay?docid=1511515986562993804

sábado, 1 de setembro de 2007

VERNANT, J.-P. ET VIDAL-NAQUET, P. - Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo, Perspectiva. 1999.


Paulo Martins

O livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga, que a editora Perspectiva acaba de relançar em sua impecável série "Estudos", possui uma história peculiar no mercado editorial brasileiro. Além de se constituir num exemplo preciso de referência obrigatória para aqueles que se debruçam sobre a questão da tragédia grega, é preciosa sua repercussão nos estudos estruturalistas que se desenvolvem a partir da segunda metade deste século. Dessa maneira, ora pode ser avaliado do ponto de vista dos estudos helênicos, ora do ponto epistemológico e metodológico das Ciências Humanas.


A obra em questão, na verdade, são duas uma vez que compreende a soma de duas publicações que originariamente, tanto na língua em que foi escrita como na sua tradução para o português, compreendiam dois livros separados cronologicamente por alguns anos. No Brasil, Mito e Tragédia I foi inicialmente publicada pela editora Duas Cidades em meados da década de 70, muito bem traduzida pelas professoras: Anna Lia de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata e Maria da Conceição Cavalcante. Aproximadamente, dez anos mais tarde a editora Brasiliense a reedita, com pequenas alterações, apresentando ao público brasileiro, também, o segundo volume. O que hoje é apresentado ao publico, portanto, é a soma destes duas, com pequeno estudo introdutório do professor Trajano Vieira da UNICAMP.


O que faria certo livro possuir tal história editorial em país onde dificuldades de publicação são inúmeras e, conseqüentemente, acesso à leitura é restrito? A resposta a para este questionamento está associada à classificação que pode ser atribuída à obra: indispensável, tanto no que se refere à contribuição para os estudos do fenômeno literário, psicológico e social, a tragédia grega, como no que se revela intrinsecamente à escritura analítica, ou seja, seus aspectos metodológicos e epistemológicos.


Tendo como ponto de partida os estudos de Meyerson e Gernet, Naquet e Vernant conseguem sistematizar e orientar a leitura da tragédia grega, alvo sistemático de leituras equivocadas e, até certo ponto, perniosas que propunham anacronicamente visadas sobre o assunto, aplicando seus conceitos próprios ao objeto que deveria ser observado dentro de critérios científicos e metodológicos, coetâneos à própria tragédia grega.


Nesse sentido, o que se tem é série de leituras e análises das mais diversas obras do gênero trágico grego que chegaram até nós dentro da perspectiva que opta recuperar estruturas sociais e de pensamento à época da produção do objeto, procurando, nos textos as chaves para sua própria decifração, sem deixar que as mesmas se estabeleçam impregnadas de desvios que acabam por torná-las equivocadas.


Essa postura, entretanto, cumpre uma série de procedimentos que, via de regra, servem para manter a análise dentro de balizas sustentáveis. A isto Vernant chama de contexto, ou melhor, subtexto que deve ser observado dentro das obras trágicas gregas, contudo sem jamais se afastar por demasiado. Diz: “Mais que um contexto, constitui um subtexto que uma leitura erudita deve decifrar na própria espessura da obra por um duplo movimento, uma caminhada alternada de idas e vindas. É preciso, em primeiro lugar, situar a obra, alargando o campo da pesquisa ao conjunto das condições sociais e espirituais que provocara a aparição da consciência trágica. Mas é preciso, em seguida, concentrá-lo exclusivamente na tragédia, nisto que constitui sua vocação própria: suas formas, seu objeto, seus problemas específicos”.


Do ponto de vista destas especificidades, encontramos ensaios excepcionais sobre as obras de Sófocles (sete), Ésquilo (três) e Eurípides (um), além de um conjunto de mais seis ensaios/capítulos de âmbito mais geral que versam sobre aspectos diversos da obra trágica na Grécia antiga. Muito embora possa parecer uma obra escolar a princípio, o livro não pode ser lido sem atenta observação do objeto em questão, ou seja, não há como penetrar nos conceitos trabalhados por Vernant e Naquet, sem antes se fazer o percurso saboroso e instigante dos tragediógrafos gregos. Quem pensa encontrar no decorrer do livro simplificações didáticas, deve afastar-se do mesmo, porquanto apenas mais dúvidas terá ao fim da leitura.


Talvez uma das formulações mais interessantes do texto (e são muitas), seja a constatação do equívoco psicanalítico na interpretação da tragédia, imposta por Freud e seus epígonos: “Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda (Édipo) muito mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que freqüentavam seu consultório?” Ou “Mas onde se situa este ‘sentido’ que se revelaria, assim, diretamente a Freud e, depois dele, a todos psicanalistas como se, novos Tirésias, um dom de dupla visão lhes tivesse sido outorgado para atingir, além das formas de expressão míticas e literárias, uma verdade invisível ou profana?”.


Por outro lado, não só Freud é colocado no centro das argumentações de Vernant e Naquet. No texto nos deparamos com um longo preâmbulo que conduz à discussão sobre um tópico extraído da Introdução geral à crítica da economia política de Karl Marx. Mas, o que Marx poderia nos oferecer acerca do mito e da tragédia da Grécia antiga? A tese funda-se numa questão de método, porque “se os produtos da arte (...) estão ligados a um contexto, como explicar que permanecem vivos (...) quando as formas de vida social se transformaram e as condições necessárias à sua produção se dissiparam?”.


A resposta estaria, inicialmente, na pseudo-ingenuidade dos textos gregos que recuperariam a infância “normal” da humanidade; seu frescor e ingenuidade, próprios da criança sadia, seduzem e deleitam o adulto, que encontra nelas “as primícias do que ele se tornou na maturidade, uma fase dele próprio, tão mais preciosa por ter se dissipado para sempre”. Esta tese marxista é refutada. Contudo, por outra do mesmo autor em o Esboço de uma crítica da economia política, obra na qual Marx observa o desenvolvimento dos sentidos humanos como resultado de fenômeno sócio-cultural. Daí, o prazer que o texto grego antigo atualmente produz, segundo Vernant, relaciona-se com este desenvolvimento. Portanto, “o objeto artístico – como qualquer outro produto – cria um público sensível à arte, um público que sabe usufruir a beleza”. “Em arte, a produção não produz apenas um objeto para o sujeito, mas um sujeito para o objeto”. Logo, a partir desse ponto de vista, a tragédia ainda hoje repercutiria porquanto construiu a partir dos gregos sensibilidade trágica que propõe ao espectador dúvida de caráter geral sobre a própria condição humana.


Contudo, mais interessante do que estas leituras críticas que são feitas ora do ponto de vista do vitupério, ora do louvor, o livro(s) de Vernant e Naquet nos oferece lições precisas e científicas acerca da tragédia grega. Hoje, vinte e sete anos após sua primeira publicação estas lições continuam sendo de essencial valor para os apreciadores e estudiosos do gênero. Não é de outra maneira que podemos ler, sem a menor ressalva, capítulos/ensaios como "Tensões e Ambigüidades na Tragédia Grega" no qual se discute o papel do coro e suas repercussões dentro da estrutura trágica ou "Ambigüidade e Reviravolta. Sobre a Estrutura Enigmática de Édipo-Rei" onde são estudados a ambigüidade das palavras e seu efeito dentro de um contexto dividido e dilacerado do Édipo de Sófocles, ou ainda, "Ésquilo, o passado e o presente", cuja centralidade está na discussão da obra de Ésquilo, diante das mudanças sócio-políticas ocorridas na Grécia em meados do V século a.C.


Por fim, quaisquer propostas de leitura sobre a obra de Jean-Pierre Vernant e de Pierre Vidal-Naquet não serão capazes de traduzir honestamente a importância e a vitalidade desse jovem texto de 27 anos, porquanto esbarrarão sempre na superficialidade e na limitação de seus comentadores, como é o caso que hoje se propõe. Entretanto, sempre será de suma importância alertar aos menos informados de que Mito e Tragédia na Grécia Antiga constitui-se numa obra de valor inestimável que vale ser lida e relida inúmeras vezes.

A tragédia das tragédias – Édipo Rei de Sófocles

Édipo e a Esfinge - Museu do Louvre - Paris

Paulo Martins



Talvez entre as poucas tragédias gregas que nos chegaram, uma seja realmente muito especial: Édipo Rei. Não que as demais de Sófocles (496-405 a.C.): Antígona, Ájax, Édipo em Colono, Electra, Filoctetes ou As Traquinas, ou mesmo as de Ésquilo (525-456 a.C.) e as de Eurípides (480-406 a.C.) sejam obras menores, longe disto! Contudo, a dimensão humana e divina, a trama e a constituição das personagens desenhadas nesta obra ultrapassam, de longe, ao que se via nos festivais de teatro da Grécia dos séculos V e IV a.C., ou mesmo, ouso dizer, ao que se vê nos dias de hoje em relação ao gênero dramático. Outro fator que pode ter colaborado para sua popularização, a despeito de sua qualidade literária, foi ter sido ponto de referência de Freud e Jung – este último deu nome ao conceito descrito pelo primeiro – para uma peculiar constelação de desejos amorosos e hostis que a criança vivencia em relação aos seus pais no pico da fase fálica. Porém, creio que para nós, que gostamos de literatura antiga, Freud hoje possa ser deixado de lado, afinal, Sófocles jamais foi a Londres ou a Viena, tampouco, fez terapia.


Quando, no século IV a.C., Aristóteles (384-322 a.C.) propôs uma teoria da tragédia em seu texto a Arte Poética, sistematicamente, usou como exemplo de tragédia bem construída o Édipo Rei. Apontou elementos que deveriam ser seguidos pelos futuros autores de teatro a fim de lograrem sucesso com suas composições. E, de fato, a tradição clássica nos mostra que seus conselhos eram profícuos. Entre muitos, três são fundamentais: o terror e a piedade, o reconhecimento e a peripécia e, por fim, a função do coro dentro do enredo. Tais elementos observados no interior da obra podem, em certa medida, justificar a fama e a glória desta peça.


Édipo é uma personagem que já nasceu com seu destino predeterminado, seus pais verdadeiros, Laio e Jocasta, antes do nascimento, souberam que o destino dele era matar o próprio pai. Nesse sentido, houve por bem eliminá-lo ao nascimento e, para tanto, deram-no a um escravo para que o matasse, pendurando-no pelos pés no alto do monte Citéron na Beócia – vale dizer que Édipo significa “de pés inchados”. Lá colocado, foi salvo por um pastor, que o entregou aos reis de Corinto, Políbio e Mérope, os quais o criaram como se fosse seu filho. Já na maturidade, Édipo vai ao oráculo de Delfos para saber de Apolo qual seria seu destino e, esse lhe informa que mataria seu pai e se “casaria” com a mãe. Horrorizado com tal vaticínio, foge para tentar evitar o destino prenunciado. É quando volta, sem saber, ao seio dos pais verdadeiros. Entretanto, nessa viagem encontra-se com Laio e o mata. Ao chegar a Tebas, sua cidade natal, a mesma era assolada por uma esfinge, que devorava a todos que não conseguissem decifrar seus enigmas. Édipo para o suposto “bem da cidade” decifra o enigma e devolve a paz à cidade. Com isso e com a morte do rei de Tebas (Édipo já matara Laio, seu pai), Édipo assume o poder da cidade, além de os cidadãos darem-lhe Jocasta como esposa. Tal situação trágica corresponde ao início da peça de Sófocles, pois que é a partir desse ponto que o teatro se desenrola. A cidade, por conta da confirmação do oráculo inicial de Apolo, passa a ser dizimada por uma peste sem que o rei, Édipo, e toda população entendam o porquê.


Toda tragédia deve, pois, suscitar dois sentimentos: terror e piedade e, estes podem advir do espetáculo cênico, isto é, de uma montagem bem elaborada e do bom desempenho dos atores; como, também, da excelência da trama, do enredo. Neste segundo caso, o texto se desprenderia da encenação e autonomamente sobreviveria, despertando aquelas sensações que caracterizam a tragédia, ou seja, a íntima conexão entre os atos seria capaz de despertar em nós a purgação dos males (catarse) que afligem as personagens e, segundo o filósofo, isso acontece no Édipo Rei. Assim, não precisaríamos assistir ao Édipo, bastaria lê-lo.


Outra característica importante da tragédia é a presença do reconhecimento e a peripécia. No primeiro caso, um mecanismo de composição que determina que uma personagem passa do desconhecer ao conhecer, impondo uma alteração no rumo dos acontecimentos. Diz Aristóteles: “O ‘reconhecimento’, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.” Já o segundo seria a alteração no rumo da história em seu contrário, isto é, “a mutação dos sucessos no contrário”. Esses dois elementos constitutivos da tragédia quando ocorrem simultaneamente produzem um efeito belíssimo e é o que acontece na peça de Sófocles: Édipo deverá chegar à conclusão, sozinho, de que ele é o flagelo de Tebas, a não confirmação de sua morte inicial instaurou um confronto entre o plano humano e o plano divino do qual só pode haver um vencedor, os representantes de forças superiores. A descoberta por parte do protagonista de que ele mesmo é o causador dos danos, ao mesmo tempo em que se caracteriza como um reconhecimento, também produz uma peripécia na tragédia, alterando o desenrolar dos fatos em seu contrário, culminando com o desenlace da trama que se reduz a uma autopunição que é a cegueira física de Édipo, reflexo de uma cegueira existencial.


Ainda segundo Aristóteles, uma tragédia bem escrita não pode deixar de lado a função do coro que deve ser considerado uma personagem como outra qualquer, contudo com suas características próprias, ou seja, uma personagem coletiva que se atém ao representar o pensamento da cidade, da polis e se ocupa da dimensão humana da tragédia, desempenhando um papel coerente ao enredo. Édipo Rei de Sófocles, muito além de nos colocar diante de forças divinas superiores e irreprocháveis, também nos coloca diante a clareza, vitalidade e racionalidade do mundo humano grego, que não é outro senão o nosso próprio.

sábado, 4 de agosto de 2007

Arquíloco e Mimnermo: Duas medidas do homem

Groupe de l'Homme Courant (attribué au) Amphore à col et anses trifides.
Epoque archaïque, vers 550-540 av. J.-C.
© Musée du Louvre


Paulo Martins



O período, compreendido entre os séculos VII e V a.C., na Grécia – lembrem que a geopolítica da época inclui como Grécia não só a península Balcânica, como também as ilhas do Mediterrâneo e a chamada Ásia Menor –, marca significativas mudanças naquela que viria a ser talvez a mais importante civilização ocidental. A relevância desse agrupamento humano, unificado pela língua e pelos costumes, pode ser aferida em todos os ramos de atividade humana: desde a poesia até a medicina, da filosofia às artes visuais, da economia até a astronomia.
Mas que mudanças são estas tão importantes para uma sociedade que já se tornara conhecida no mundo conhecido à época? Uma sociedade que já havia nos legado Homero e Hesíodo? Bem, para que compreendamos isso, alguns pressupostos são fundamentais. O primeiro deles diz respeito à organização sóciopolítica dessa civilização que durante séculos - e isto pode ser verificado a partir dos textos épicos e trágicos, que nos restaram, e a partir da cultura material, que a Arqueologia nos trouxe à luz, – cuja forma era marcadamente centralizada na figura de um rei, ou como eles chamavam um “basiléos”, que, responsável hereditário por um “génos”, grupo expandido de um núcleo familiar, geria a justiça, a política, a economia, a guerra e a religião. Esses reinos mantinham entre si, dependendo principalmente de sua origem, não rara vez, certa rivalidade o que os levava com freqüência à guerra, ao conflito bélico. Exemplo maior: a campanha de Tróia.
Marca expressiva dessa sociedade era também sua agrafia, isto é, os helenos – como eram chamados -, a despeito de em épocas imemoriais terem tido acesso a uma forma de escrita (o linear B do período minóico é uma constatação), no período pré-homérico e homérico não possuíam escrita e, portanto podiam ser caracterizados como cultuadores da memória e da oralidade. A partir, no entanto, do colapso desses reinos, surge um fator geopolítico importantíssimo, a “pólis”, a cidade estado e com ela a escrita e a moeda. Tais criações em certa medida eliminavam o poder centralizador do “basiléos” em nome de um poder coletivo que em sua forma ateniense veio a receber o nome de democracia.
Essas novidades imbricadas - e não poderia ser de outra forma – a cidade, a moeda e a escrita – dialeticamente configuram ou determinam um novo homem, um ser que doravante passa a ser o centro dos questionamentos e das preocupações comuns aos comuns homens: De onde vim? Como vivo? Para onde vou? Quem sou eu? A dimensão divina, ainda que longe de ser descartada, passa a dividir certo espaço dentro das mentes gregas com a dimensão humana. O “mythos” cede, pois, lugar ao “lógos”. O discurso racional valoriza-se diante do discurso religioso, e escrita, por seu turno, é o meio para disseminação desse pensamento, dessas preocupações e desses questionamentos. É nesse ambiente, agora, que novas formas de expressão são valorizadas. Surgem os primeiros discursos filosóficos a que a doutrina vai dar o nome de fisiólogos, uma vez que se atêm à observação e explicação da physis, a natureza. Anaximandro (609-547) e Anaxímenes de Mileto (585-528), Pitágoras de Samos (571-532), Tales de Mileto (625-558), Heráclito de Éfeso (540-470), Parmênides de Eléia (530-460) e outros são exemplos de filósofos ou fisiólogos, hoje conhecidos como pré-socráticos.
Não só a filosofia floresce no bojo dessa nova sociedade, mas também a poesia em outras modalidades que não épicas ou sapienciais – Homero e Hesíodo são prototípicos. Tal poesia, a que hoje em sentido mais amplo dá-se o nome de lírica, passa ocupar lugar de destaque na produção literária grega. Vale lembrar, entretanto, que, ao contrário do que possa parecer, ela não é um fenômeno novo, antes tem suas origens em tempos tão remotos quanto à épica. Teria ela assento dentro da oralidade que caracterizara o mundo helênico pré-homérico junto aos ritos religiosos, às festas de semeadura e colheita, aos funerais, aos banquetes e a outros eventos típicos daquela antiga sociedade. Agora no século VII e VI a.C., no entanto, não se fixa especificamente a estes ritos ou momentos de performance, mas, sim, como meio expressivo do novo homem grego afeito a um tipo de sociedade em que as angústias e anseios do “ânthropos” (o ser humano) devem ser observados e discutidos. O herói isoladamente não é mais uma preocupação a não ser quando colocado lado a lado ao mortal, ao ser como nós, como bem alertou Aristóteles na Arte Poética, trezentos anos mais tarde.
Marcada por uma multifacetada gama de motivos, a lírica arcaica grega, sob essa perspectiva que acabamos de apontar foi explorada amiúde em várias cidades gregas, e, entre os nomes mais significativos encontramos: Safo de Lesbos, Alceu, Estesícoro, Calino, Tirteu, Arquíloco e Mimnermo entre outros. Não se apegando a uma temática específica, tampouco a uma unidade métrica, a poesia lírica arcaica pode ser entendida na Antigüidade Clássica a partir de uma afirmação do poeta latino Tertuliano (150-222 d.C.): “multicolor, de várias cores, versicolor, nunca a mesma, mas sempre outra, embora sempre a mesma quando outra, tantas vezes enfim mudando-se quantas movendo-se.” Outro dado importante acerca dessa era sua subdivisão de gêneros. Poderia a lírica ser monódica ou coral, isto é, além do fato de ser cantada – toda ela o era – poderia ser cantada por um cantor apenas, ou por um grupo deles. Poderia também ser observada de acordo com o tipo de acompanhamento musical: a aulética e a citarística são exemplos de poesia lírica cujo acompanhamento era o aulós, espécie de flauta e a cítara, um de instrumento de cordas respectivamente.
Nascido na ilha de Paros, Arquíloco talvez seja o poeta que mais amplamente trabalhou com a diversidade temática possível para o gênero lírico uma vez que não só se ateve à invectiva (maledicência), mas também se ocupou de tratar de assuntos relativos à guerra e vida comum. Mais do que o simples tratamento de temas diversos, este poeta observou a vida do homem em sociedade: “Coração, coração de imediatos nojos agitado,// levanta, às aflições resiste lançado um contrário // peito, a embustes de inimigos de perto contraposto // com firmeza; e nem vencendo abertamente exultes // nem derrotado em casa abatido te lamentes, // mas com alegrias te alegra e com reveses te aflige // sem excesso; e conhece qual ritmo regra os homens.” (trad.: José Cavalcante de Souza) A temperança e a justa medida das coisas que coíbem o excesso é marca clara nesse poema que se constitui numa clara “crítica” ao pensamento épico ou trágico grego.
Aliás, curioso é o tratamento ao tema bélico que o poeta de Paros oferece a essa nova sociedade se compararmos àquele dado por Homero na Ilíada e na Odisséia: “o escudo um Saio dele se orgulha, numa moita // arma impecável deixei-o sem querer, // mas eu mesmo o fim da morte evitei; aquele escudo // que se vá; de novo um comprarei não pior.” (trad.: José Cavalcante de Souza) Havia uma máxima grega que dizia que uma mãe espartana falara um dia a seu filho que ia à guerra “volte com seu escudo ou sobre ele”. Este pequeno fragmento comprova séria alteração no modo de pensar a guerra, ao contrário, pois, do que ditava a tradição bélica dos helenos, Arquíloco sugere que em nome da própria sobrevivência seria conveniente abandonar as armas, pois esta é facilmente substituível, enquanto a vida não. Outro poema que segue esta mesma chave é: “Vamos, de Canecão pelo convés de veloz nau // anda e a bebida tira dos cavos tonéis // e caça o vinho até a borra; pois também nós // sem beber nesta vigília não poderemos.”(trad.: Antônio Medina Rodrigues). Afora a circunstancialidade do texto, o último verso deste poema é fundamental, pois aponta para os limites de tolerância do homem comum na guerra. Aquela sobriedade épica do guerreiro, agora é trocada pela embriaguez lírica: a guerra é suportável desde que acompanhada de um bom vinho.
Já Mimnermo, nascido na cidade Cólofon (630-600 a.C.), restringe sua poesia lírica não só a uma unidade métrica específica – o dístico elegíaco, como, também, a uma só temática: o passar dos anos e a dicotomia existente entre a velhice e a juventude. Conhecido no século XIX, como o poeta do hedonismo helênico, caracterização absolutamente discutível, além anacrônica uma vez que a idéia de hedonismo solidifica-se a partir de uma visão psicologizante, o poeta pode ser considerado como pai de certos lugares comuns da poesia clássica, como, por exemplo, o da efemeridade da vida: “Nós, como a tantas flores faz a primavera// Abrir as folhas, nós, quais flores tenras, // Ébrios vamos vivendo efêmero fulgor, // Sem sabermos o mal ou bem que os deuses tramam // As negras Parcas espionam, entretanto, // Uma em torturas arremata o tempo nosso, // Outra costura a morte, e dura a juventude // O tanto quanto o sol passeia ao solo. // Morrer prefiro, antes que suma a primavera. // Dentro da alma, depois dela, caem os males, // E, arrematada a queda, sobra a feita mágoa: // Um vai dentro do Inferno uivar os filhos // Que não teve, outro adoece e morre, qual! // Aos males que nos manda Zeus ninguém escapa!” (trad: Antônio Medina Rodrigues). A despeito do fato de a comparação do homem com as plantas já ter ecos na poesia épica, a sua solidificação dá-se a partir do século VII a.C.. Nós, assim, estaríamos sujeitos às mesmas limitações de vida daquelas, além de absolutamente subordinados às benesses dos deuses imortais. Enquanto na épica e na tragédia, em certa medida, os homens se colocam lado a lado aos imortais; aqui eles estão resignados a sua condição de inferioridade. Contudo, sem abrir mão da racionalidade, do “lógos”, pois que, como bem assevera o fragmento de Mimnermo, a velhice e seus males podem estar sujeitos também a uma opção de sobrevivência: “Morrer prefiro”.
Se de um lado, o homem pode optar pela morte – reflexo da imperativa razão –, não é de se estranhar que vitupere contra a velhice e seus limites: “Qual vida tem valor, sem de Afrodite// As da dádivas douradas? Antes quero a morte,// Se os beijos não tiver, e a cama e os apetites,// Que são da rubra mocidade a sorte, // Varões a porem nus e senhoritas.// A idade, ao descambar num ser humano, // Imprime nele os males todos: tudo o irrita. // Nem o aviva mais o sol, o céu de Urano, // Nem nas crianças vê coisa bonita. // E as fêmeas o desprezam, tanto o Soberano // Ao homem no final da vida prejudica.” (trad.: Antonio Medina Rodrigues) É interessante verificar que Mimnermo associa a vida à consumação do amor. Isto é, se já não temos mais condições físicas que façam Afrodite nos “propiciar”, a vida não tem mais motivo de ser.
É tônica desta poesia, portanto, além desse tipo de reflexão humana acerca dos limites da vida, o lamento. Tal fato, de certa forma, corrobora a tese de origem do subgênero lírico: a elegia: “Um sopro, um sonho leve dura a preciosa // Juventude, antes de que em nós se enlace // A insídia gris dessa velhice odiosa, // Que a pele nossa enruga e o corpo infama, // E faz de nós quem nunca fomos, cinza e frio // Da alma com seu simples espraiar-se.” (trad.: Antonio Medina Rodrigues)
Talvez, mais do que a poesia épica de Homero ou a trágica de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a lírica grega arcaica seja a poesia com a qual nós mais nos identifiquemos hoje em dia. Tal identificação só pode encontrar guarida em seu caráter universal, ou seja, a efetiva imbricação entre razão e sentimento, medidas absolutas e definitivas do homem. Arquíloco, de um lado, ao observar limites que devemos transpor ou superar uma vez que não somos deuses ou heróis e Mimnermo, de outro, ao ditar que podemos nos contrapor a imperativos categóricos da própria existência, perfazem, ambos, a figuração do homem que se nos é imposta hoje: limitados, porém com todas as condições de transgressão às razões da natureza e dos deuses.