segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O Amor entre os antigos II

Mosaico Romano de Nápoles - 70-10 a.C. - The British Museum - GR1856

Paulo Martins

Falar sobre o amor na Antigüidade grega e romana, seja após as inferências de Freud, seja a partir de uma diletante curiosidade, nascida dos inúmeros livros de mitologia, parece tarefa estéril senão tola. Contudo, um olhar mais atento acerca de sua permanência, ou mesmo, o que ela tem a dizer nesse mundo pós-moderno, pode ser uma aventura agradável e até mesmo interessante.

Quando falo da permanência desse amor antigo no mundo de hoje, nada há que nos leve a pensar que o amor em todas suas instâncias seria o mesmo, ou ainda, que para nos conhecermos melhor nessa matéria teríamos de buscar o princípio de tudo no mundo greco-latino - pura bobagem! O amor, sentimento, atração física, emoção, basta-se e qualquer teorização fica muito aquém do objeto observado.



Taça romana de vinho em prata - 50-25 a.C. - The Getty Museum, Malibu - 75-AM-55


Detalhe

Mas por que, então, nos referimos ao amor como obra de Vênus ou que fomos tocados pelas setas de Cupido, aquele pequenino ser alado que possui força inversamente proporcional ao seu tamanho? Rita Lee poderia muito bem responder dizendo "Lá no reino de Afrodite, o amor passa do limite...". Mas vamos deixar Rita em paz!

O amor em Roma e Grécia é mais palpável e, justamente, por possuir essa concretude, parece também mais digno de comentários e associações, coisas que faltam nas sociedades ditas ocidentais e pós-românticas que, vez por outra, propõem certa distância entre o sentimento e sua concretização, e qualquer tentativa de consolidação artística ou não do mesmo passaria por uma sublimidade que o amor efetivamente não tem. Afinal, não há como duvidar que ele seja concreto.


Carecemos, hoje, de algo, que no teatro do mundo ou no mundo das representações, constitua-se como representação concreta do amor. Por sermos essencialmente românticos, procuramos, paradoxalmente, a metafísica do amor, principalmente, quando esse amor não fornece sua própria consubstanciação. E mesmo quando a temos, buscamos representação factível, possível para ele fora do mundo sublime! E assim chegamos aos antigos. Eles nos dão explicações concretas para o que sentimos. Suas representações apesar de serem divinas, são concretas, são reais, realizáveis.


Mas os romanos e os gregos acreditavam em seus mitos? Eles conseguiriam entendê-los fora do âmbito religioso? Isso não seria apenas denominação do sublime “pós-tudo”? E, nesse sentido, não seriam tão românticos quanto nós?


Certo é que os romanos já não se encantavam tanto com os mitos quanto os gregos, porém as representações concretas do sentimento por intermédio dos mitos, senão eram as mesmas, estavam muito próximas daqueles que as inventaram. Tanto isto é verdadeiro que é impensável o amor antigo, em Roma ou na Hélade, apartado de sua condição representativa, o mito.


Dessa forma, careceríamos do veículo da representação. Pois bem, a única possibilidade para o mito é o texto (verbal ou não). A literatura e as artes figurativas são, portanto, os veículos capazes de produzir o resgate das categorias mentais que norteavam aqueles homens diante de seus sentimentos. Ou seja, um dicionário de mitologia não faz o menor sentido para nós se estiver distante da própria veiculação dos mitos que eram os poemas e as imagens. Amiúde, sou questionado sobre os mitos, e minha resposta é imediata: em que texto, em qual imagem?

The Mazarin Venus - Roma, 100-200 d.C. - The Getty Museum, Malibu - 54.AA.11

Hoje o mito sem a literatura e as artes não passa de lucubração, pela simples falta de referente textual e, portanto, concreto. Do que adianta saber que Afrodite nasceu da espuma do mar e do sexo extirpado de Urano? Que Apolo faz parte da segunda geração olímpica? Que doze eram os trabalhos de Hércules? Nada! Assim, prefiro a história de João e Maria (de Jacob e Wilhelm Grimm, os irmãos) ou a do Gato de Botas (de Charles Perrault), sem falar dos contos de Andersen que, por conta de sua proximidade com o meu imaginário, teriam muito mais a dizer.

Entretanto, quando associamos a divindade a um texto literário ou a uma imagem, resgatamos o tal do referente, o mundo concreto. O signo imposto pelo mito brilha, e conseguimos entendê-lo como categoria de pensamento que busca a união daquilo que é transcendente - o amor, por exemplo - com aquilo que é concreto: o mito.

Assim nos deparamos com textos como esses de Safo (poeta grega do século VII a. C.), rogando à Afrodite: Vem junto a mim ainda agora, desfaz/ o áspero pensar, perfaz quanto meu ânimo/ anseia ver perfeito. E tu mesma - sê /minha aliada. Ou ainda, contabilizando os efeitos do amor, produzidos pela mesma deusa: "Sim isso/ me atordoa o coração no peito:/ tão logo te olho, nenhuma voz/ me vem/ mas calada a língua se quebra,/ leve e sob a pele um fogo me corre,/ com os olhos nada vejo, sobrezum-/ bem os ouvidos//frio suor me envolve, tremo/ toda tremor, mais verde que relva/ estou, pouco me parece faltar-me/ para a morte. (Tradução de JAA Torrano)

Enquanto, no primeiro texto, tem-se um típico procedimento religioso de atenção, no caso no amor; no segundo, desnudam-se os efeitos que o agente do sentimento pode efetivar. Portanto, o mito aproxima aquilo que é injustificável daquilo que vivido e concreto, sem que, necessariamente, estejamos próximos do mundo ritualístico da religião.




Deux Amours présentant le buste de Gê (la Terre) dans une couronneVe - VIe siècle après J.-C.Gê et les Amours Epoque byzantine, 395-643 apr. J.-C. - Musée du Louvre, Paris

Não só preocupados com esta relação (transcendente-real), os antigos se preocuparam em pintar a divindade com palavras. Assim não só temos o que o amor causa, o que pode propiciar sendo divindade, mas também como é figurado concretamente. Propércio, poeta erótico romano do século I a. C., numa bela elegia assim diz: "Quem quer que seja que pintou o Amor criança,/ não é certo que tinha mãos extraordinárias?/ Ele viu que os amantes vivem sem cuidado e que grandes bens pereceram por loucas paixões./ Ele mesmo adicionou, não em vão asas ligeiras/ e fez o deus voar no coração humano." (tradução Paulo Martins)


O exemplo, portanto, caracteriza justamente o que falamos no início, pois o amor só tem seus efeitos "existenciais", a partir da caracterização concreta. Os Cupidos (segundo a Mitologia, filhos gêmeos de Vênus) possuem asas rápidas como o vento, e nesse sentido, teríamos a representação da afecção amorosa que rapidamente penetra e agita o coração humano. Além do que a própria figuração é questionada e julgada, afinal quem quer que tenha sido seu pintor, as suas mãos eram extraordinárias, conseguiram efetuar a relação daquilo que sentimos com algo que absolutamente explicado no mundo concreto.