domingo, 22 de julho de 2007

As Catilinárias de Cícero

(Busto de Cícero - Musei Capitolini - Roma)

(Texto publicado na extinta Revista República. v. 52, p. 96, 01 fevereiro de 2001)


por Paulo Martins

Não é raro se ouvir em certos momentos de impaciência, ou mesmo, de intolerância a antiga sentença latina: "Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?" (Até quando, enfim, Catilina, abusarás de nossa paciência?), absolutamente descontextualizada, fora de lugar mesmo, como forma de se mostrar que aqueles poucos anos de latinório do ginásio e clássico (desculpem a velha nomenclatura educacional) serviram para alguma coisa; mesmo que essa coisa, na maior parte das vezes, não passe de puro pedantismo, diletantismo, pernosticismo e outros "ismos" menos cotados.
Mal sabem os pronósticos (aplicados, é certo, nas aulas de rosa, rosae, rosam, rosa..., rosarum) que tal sentença abre um conjunto de quatro discursos pronunciados em Roma entre 8 de novembro e 5 de dezembro de 63 a.C. por Cícero, não o padre do sertão, mas o maior orador e retor romano, representante quase absoluto da oratória forense e senatorial, fato que, por si, o alavancou à magistratura máxima da República, o consulado.
Mas em que contexto a impaciência de Cícero deve ser aplicada? Dado que é um clássico, isso pouco importaria, mesmo assim, vale a pena lembrar que Catilina, a quem se refere o orador e mesmo o próprio Cícero faziam parte da elite, da aristocracia dominante que julgava, apesar do voto censitário, das desigualdades sociais, da impiedade econômica e do absoluto jugo expansionista, ser a República (Res publica) o modelo político mais adequado e até mesmo ideal para as plagas mediterrâneas.
No entanto, distinguiam-se. Um o senador atento às normas vetustas, um conservador; o outro, um homem empobrecido, arruinado, apesar da origem patrícia, e associado, por força de conseqüência, às causas populares (redistribuição de terras e perdão de dívidas junto ao estado), logo um populista empedernido. Mesmo sendo Cícero um homo nouus (homem novo), o que para os romanos muito significava, pois não possuía ascendência patrícia, conseguiu vencer Catilina pela via institucional para o Consulado de 63 e 62 a.C.
O segundo insatisfeito com este resultado optou pela via armada para chegar ao poder, defendendo a mudança de sistema. Foi veementemente rechaçado, ou melhor, morto por decisão do Senado a bem da República. A ação de Catilina tornou-se exemplar: contra o sistema vigente não há perdão, a exemplo de Cipião que anos antes já havia atentado contra Tibério Graco, este, porém, lídimo representante da plebe e defensor inconteste desta.
A série de discursos é tendenciosa, sem dúvida, no entanto traz à tona a questão do jogo do poder, não raramente, inescrupuloso, violento e, até mesmo, hediondo. Neles, Cícero traça o perfil do homem romano que ousou se colocar contra a urbs - bela metonímia de Roma. Ao lado d'As Catilinárias, outra obra deve ser lida: A conjuração de Catilina de Salústio cuja visão mais imparcial delineia monograficamente todo o processo de insurreição do período e mostra que próximo a Catilina somavam-se grandes homens da política da época, entre eles Crasso, aquele do erro. E isto significa que Catilina não agia tão pouco amparado como pode parecer com a leitura de Cícero. A história recente do Brasil oferece inúmeros exemplos de "Catilinas", homens que, ao se colocarem contra o establishment abraçam o populacho, aproximam-se das causas sociais, fingem agir em nome da maioria, porém, continuam sendo merecedores, hors-councurs, do troféu insensibilidade social. Distantes, portanto, das causas populares, homens públicos sistematicamente continuam a criar simulacros éticos em nome de seu próprio bem-estar. Nesse sentido, Cícero é atualíssimo.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

A Eneida de Virgílio e a tradição épica ocidental

Virgil reading the ''Aeneid'' to Augustus and Octavia Kauffman, Angelica. Oil on canvas. 123x159 cm Germany. 1788 Source of Entry: Lazenki Palace, Warsaw. 1902

Paulo Martins


Antes de qualquer coisa, faço aqui um pequeno excurso. É comum, todas as vezes que começamos a ler o maior e melhor poema épico em língua portuguesa, Os Lusíadas, nosso professor de literatura associar a idéia de Renascimento à tradição cultural greco-romana e, nesse caso específico, à tradição literária da poesia épica, mostrando o quanto Homero é importante como modelo que foi seguido nesse momento histórico dos séculos XV e XVI. Realmente, não há como negar que as epopéias homéricas, A Ilíada e A Odisséia, como frutos e flores de uma civilização são marcos incontestes do mundo grego, afinal, até mesmo Platão, séculos depois da composição desses dois poemas, afirmara, tratando de Homero em seu livro A República, que “este poeta ensinou a Grécia”.
Nesse sentido, se o poeta grego é o cerne da civilização helênica, também o seria para os romanos e, por conseqüência, para nós, ocidentais. Contudo, a poesia grega homérica possuía uma característica importante e diferenciada se comparada, por exemplo, ao Camões épico: a oralidade. Isto é, aquela poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C. e transmitida oralmente por cantores (os aedos) antes de ser consignada pela escrita a partir do século VII a.C. Tal propriedade é importantíssima, pois determina características formais no poema, a saber: as repetições sistemáticas, a presença de epítetos (aspectos exemplares das personagens), as formulações lapidares que percorrem os milhares de versos das obras. Assim, se por um lado Homero é semelhante a Camões, por outro ele se distancia gravemente do mesmo, uma vez que o meio, pelo qual seus poemas são transmitidos, era diverso: o primeiro a voz; o segundo, a escrita.
Bem, se proponho Homero, em certa medida, distante de Camões, a pergunta mais óbvia seria: Quem é o êmulo do poeta português na Antigüidade Clássica? E a resposta é imediata e direta: Virgílio. Tal afirmação seria até certo ponto irresponsável se não existisse um argumento de autoridade que a respaldasse. Todos sabem que Dante Alighieri (1265-1321), o autor da Divina Comédia, no século XIV, é um dos responsáveis pela grande síntese da história literária ocidental, ao associar a cultura medieval católico-cristã ao mundo clássico greco-latino, afinal, a idéia de paraíso, purgatório e inferno é, a um só tempo, cristã e pagã. Sem falarmos da presença de uma personagem fundamental no texto de Dante que é seu acompanhante ao mundo dos mortos: Virgílio. Vejam, não é Homero que o acompanha! Ainda hoje, também, nesse nosso mundo pós-moderno, “pós-tudo” ainda ecoa a voz de um poeta e crítico norte-americano radicado na Inglaterra nos anos 20 do século XX, T.S. Eliot (1888-1965). Ele nos informa sobre importância de Virgílio para a cultura ocidental ao propor: “Nenhuma língua moderna pode pretender produzir um clássico no sentido que considero Virgílio um clássico. O nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é Virgílio.”
Outras indagações poderiam surgir a partir desta conclusão de Eliot que assumo como minha: O que fez Virgílio então para receber tamanha dignidade? O que produziu? Como e quando escreveu?
Nascido em Mântua, norte da península itálica, em 70 a.C., Virgílio produziu três grandes obras poéticas: As Bucólicas, As Geórgicas e A Eneida. Sua época é a do início do Império, isto é, momento em que a República romana sucumbe como conseqüência das guerras civis e da ditadura de Júlio César. Otávio Augusto assume a função de Príncipe e, a partir daí, se estabelece uma sucessão, em certa medida, hereditária e que só irá se extinguir com a queda do Império do ocidente, quinhentos anos mais tarde (em 476 da nossa era). Virgílio como escritor está associado à imagem de Augusto cujo lugar-tenente, Mecenas, aplica-se na constituição de um círculo cultural que serve ao poder, produzindo propaganda para feitos e poder do novo líder. Nesse mesmo grupo, surgem poetas como Propércio e Horácio (tão importantes quanto Virgílio na tradição literária ocidental).
A Eneida, a despeito do fato de ser uma poesia encomendada com a finalidade de exaltar o poder de Augusto, inaugura uma nova possibilidade de constituição da épica, tendo como meio a escrita e, ainda, tendo por trás de si uma tradição literária que inclui Homero além dos poetas da época helenística. Constituída por 12 cantos, a épica virgiliana trata, como argumento, da fundação de Roma e tem como personagem principal Enéias, guerreiro troiano que foi incumbido pelos deuses a fundar a nova Tróia, Roma. Em sua saga, Enéias percorre um longo caminho até sua chegada à região do Lácio, percurso que, do ponto de vista da estrutura do poema, dura exatamente os seis primeiros cantos. E, assim, ao chegar ao local que lhe fora determinado, age, seguindo sua sina, empreendendo guerras de conquista, afinal é um herói e como tal está predestinado a combater. E essa ação heróica percorre os seis cantos finais da epopéia.
Se observarmos mais atentamente o enredo, notaremos que ele está plenamente de acordo com a proposição do poema, afinal diz Virgílio logo no primeiro verso “Arma uirumque cano” (“As armas e o homem canto”) e isto significa que o poema tratará, de um lado, das desventuras de Enéias (homem) e, de outro lado, das campanhas bélicas empreendidas por ele (armas). Vale lembrar que, para os poetas romanos, a imitação (a mimese) é fundamental, portanto não seria possível produzir um texto épico que desconsiderasse Homero. E o poeta de Mântua, engenhosamente, estabelece a conexão de seu poema com a tradição, afinal de contas, essas desventuras do herói relacionam-se com o seu vagar pelo Mar Mediterrâneo, exatamente aquilo que ocorre na Odisséia, quando Ulisses é posto a realizar tarefas semelhantes até conseguir chegar aos braços de Penélope, sua fidelíssima esposa. Já na segunda parte do poema (os seis cantos finais) estão coadunados com o outro poema homérico (A Ilíada), uma vez que o fulcro é guerra. Curioso é observarmos que essa mesma estrutura permanece viva na épica moderna de Camões. Não é por acaso que em Os Lusíadas o homem Vasco da Gama e suas desventuras são decantadas.
Na verdade, não há, na literatura dita ocidental, nenhum poema épico que não se apóie na estrutura d’A Eneida e segundo Curtius “Para todo o fim da Antigüidade, para a Idade Média, como para Dante, é Virgílio ‘o altíssimo poeta’”.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Catulo e a poética do cotidiano romano

Paulo Martins

Quando o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound (1885-1972) produziu seu “paideuma” (mini-antologia de poetas de todos os tempos) em sua obra ABC da Literatura, aponta apenas Catulo, Propércio e Ovídio como sendo, entre os poetas latinos, aqueles que deveriam ser lidos. Afora a arrogância de Pound, que menospreza a latinidade em nome de uma “superioridade grega” na literatura, pode-se concordar com ele no sentido de que realmente Catulo é um poeta a um só tempo inovador e habilidoso no manejo do poético seja sob o ponto de vista da métrica, seja sob a ótica da matéria. Nada de semelhante à sua poesia havia sido feito no mundo grego, tampouco no latino.
Nascido em Verona (87 a.C.), Catulo surge no mundo cultural romano no final da república romana, isto é, aquele período conturbado da história que culminou com o fim das guerras civis e com advento de um novo modelo de governo centrado na figura de um “princeps”, um imperador. Este momento cultural, por sua vez, é marcado por uma disputa no âmbito do gosto literário que tem, de um lado, nomes como o de Cícero (106 - 43 a.C.), defendendo o resgate das tradições literárias romanas mais antigas e, de outro lado, Catulo, re-propondo uma nova forma de fazer poético, calcada mormente no reaproveitamento do material poético arcaico grego (Safo de Lesbos é essencial), associado a poetas do período helenístico, ou melhor, a uma poética alexandrina cujo expoente máximo é Calímaco de Cirene (310 – 235 a.C.) – bibliotecário de Alexandria.
A geração de Catulo, por sua ousadia e, por que não dizer, por sua capacidade inventiva e inovadora, recebe de Cícero o apelido de “neoteroi”, os neotéricos, substantivação do adjetivo grego no superlativo “os mais jovens”. Este fato que entre nós, pós-modernos, soaria como elogio; para eles, romanos, entretanto, era tido como algo pejorativo: os “jovenzinhos” - pessoas que, por não atentarem para as tradições civis de Roma e por não se ocuparem de temas menos virtuosos e valorosos, não poderiam ser considerados sérios ou ser levados em consideração. Porém, para nós, hoje, há uma dúvida: que tipo de transgressão poética poderia produzir tamanha reação do status quo romano do período?
Pode-se dizer que Catulo inova e, portanto, transgride tanto na forma como no conteúdo. Quanto ao primeiro caso, o poeta inicia seu trabalho desconsiderando a tradição métrica latina do verso satúrnico e se debruça sobre a adaptação da tradição da métrica helênica arcaica para a língua latina, isto é, importa modelos métricos gregos e os adapta à língua latina, recuperando, pois, um enorme manancial formal da tradição. Por outro lado, mais valiosa do que essa contribuição formal é a introdução na península itálica de novos temas e motivos, não mais centrados na tradição arcaica grega, tampouco na latina do período, antes, entende que a tradição helenística da temática poética é mais livre e moldável à fruição literária.
De maneira geral, essa nova poesia latina passa a considerar todo e qualquer assunto como motivo para poesia, desde um simples convite para o jantar até um lamento pela morte de um amigo, passando por convites amorosos e chegando a mais baixa agressão - poemas de invectiva - ou a mais elevada demonstração de erudição. Assim, Catulo, ao compor seu único livro que contém 116 poemas, além de pragmaticamente alterar o rumo da composição poética, dá-nos a chave de seu trabalho a partir do uso sistemático de uma metapoesia, ou seja, valoriza recepção de seus poemas, alertando o leitor sobre quais aspectos devem ser atentados na leitura, por terem sido esses mesmos, o ponto de partida para sua composição. Logo no primeiro poema do livro, uma dedicatória, ele alerta a um interlocutor, Cornélio, que seu “livrinho” (libellum) é gracioso e novo, pois esse Cornélio valorizava suas ninharias (nugae), além de indicar uma possibilidade de perenidade de seu trabalho ao propor que, talvez, seus poemas durassem mais de um século. O uso de diminutivos “livrinho”, “novinho”, ou ainda, a indicação de pequenez dos textos com o uso do substantivo “ninharias ou nugas”, além de apontar para a ruptura poética do período como vimos, reafirma um projeto poético de matiz helenístico que por ser inclusivo quanto aos assuntos tratados e quanto à forma, dedicado aos fatos mais limitados da vida, aproxima-se de algo extremamente moderno - a poesia fundada nos assuntos cotidianos:

“A quem dedico esta graça de livro
novinho em folhas recém-buriladas?
A ti, Cornélio, pois tu costumavas
Ver uma coisa qualquer nestas nugas (...)” *
(poema 1)

Essa poética do cotidiano vale-se da construção sistemática de personagens, que durante muito tempo foram consideradas verdadeiras, isto é, reflexos de realidades biográficas. Os comentadores se esqueceram de que, em Roma, a poesia era dissimulação e, portanto, todas as “pessoas” citadas nos textos eram lidas, no período, como ficções. Algo muito próximo, portanto, de Fernando Pessoa quando afirmava: “o poeta é um fingidor...”. Mesmo quando Catulo se refere a si mesmo, devemos ter em conta que essa referência é ficcional, invenção poética:

Jantarás bem, Fabulo, em minha casa,
muito em breve se os deuses te ajudarem,
se contigo levares farto e bom
jantar, e não sem fina artista, vinho,
graça e as risadas todas. Isso tudo,
se levares, encanto meu, garanto,
jantarás bem, pois teu Catulo tem
o bolso cheio de teias de aranha.
Em troca aceitarás meros amores
e o que há de mais suave ou elegante,
pois um perfume te darei que à minha garota
Vênus e os Cupidos deram,
que ao sentires aos deuses vais pedir
te façam, Fabulo, todo nariz.
(poema 13)

O tom jocoso deste tipo de composição é sistemático em Catulo. Inúmeros poemas apresentam este tipo de tratamento quase cômico de uma circunstância insólita que neste caso específico é a falta de dinheiro associada à gentileza de ter a companhia de um amigo no jantar e, mais, a contrapartida à dedicada amizade, ao oferecer um presente divino: um perfume dado à sua amada por Vênus e os Cupidos. O mesmo tratamento pode ser observado, por exemplo, no poema 26 em que o “eu lírico” fala acerca de uma hipoteca de uma pequena vila romana de um certo Fúrio. Catulo propõe que a mesma vila, por ser diminuta (como sua poesia e seus respectivos assuntos), não recebe vento algum, nem o do sul, nem o do oeste, nem o do norte e nem, tampouco, o do leste, porém um outro tipo “vento” a atinge em cheio, o da hipoteca, que seria feio e pestilento. Vale lembrar que esse vento em latim é nomeado pela palavra flatus, palavra que em português veio dar flatulência:

Fúrio, teu sitiozinho não recebe
o vento sul nem o que vem do oeste
nem o do norte, frio, nem o do leste:
recebe uma hipoteca de quinhentos.
Ah!, mas que vento feio e pestilento!
(poema 26)

O livro de Catulo, assim delimitado e observado, portanto, poderia sugerir mesmo para nós uma certa insignificância. Afinal de contas, tratar de jantares ou sítios hipotecados poderia sugerir realmente uma falta de traquejo poético elevado, afinal poesia é algo “sublime”. E realmente, ele deve ter sido, amiúde, acusado por ter cometido poemas com certa impropriedade, tendo respondido aos seus detratores com o verso: “A um poeta pio convém ser casto//ele mesmo, aos seus versos não há lei” (poema 16). Mas, há de se observar que estes poemas fazem parte de um todo em que outros assuntos mais nobres também são tratados, como a morte ou o amor:

Por muitos povos e por muitos mares vindo,
Chego, irmão, a teu túmulo infeliz
Para última dar-te dádiva de morte
E só falar à muda cinza em vão
Pois a Fortuna tolheu-me de tudo que foste,
Ah! Triste irmão tão cedo a mim roubado!
Agora o que por longa tradição dos pais
Ao túmulo se traz – dádiva ingrata –
Aceita em muito choro fraterno banhada.
E para sempre, irmão, olá e adeus.
(poema 101)
ou

Odeio e amo. Talvez queiras saber “como?”
Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.
(poema 85)

Na verdade, o falar de amor, ou melhor, a fala do Amor, talvez, tenha sido a principal temática de Catulo. Percorre o livro, como um todo, um “romance” entre o “eu poético” e uma Lésbia, nome que nos sugere referência poética ou simplismente uma relação entre o poeta e a poetisa de Lesbos, Safo, lembrando, contudo, que ambos estão distantes alguns séculos. Curiosamente, a despeito da temática elevadíssima, o tom com que estas poesias são construídas vai se alterando, simultaneamente, à alteração da relação amorosa. Tamanha é a veracidade com que o poeta dá conta desta modificação de sentimento que esta série de textos foram lidos como “a mais sincera e pura expressão de um sentimento verdadeiro”:

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez vamos dar. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós
quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem – então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p’ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.
(poema 5)

Célio: nossa Lésbia, aquela Lésbia,
Lésbia, aquela, única que Catulo
Amou mais que a si e os seus,
Agora nos becos e encruzilhadas
Descasca os filhos de Remo magnânimo.
(poema 58)

Lésbia só fala mal de mim, sempre, e não cala
Nunca; que eu morra se ela não me ama.
Como sei? Também tenho tal sintoma; ataco-a
Muito: que eu morra, sim, se não a amo.
(poema 92)

Os três poemas acima marcam três momentos distintos do “amor” entre Catulo e Lésbia. O primeiro é um convite ao ensejo amoroso, que desnuda o sentimento em relaçãoaos mais velhos (“velhos severos”). O menosprezo às tradições romanas no âmbito literário transfere-se para o universo moral e até mesmo sentimental. O que causa espécie neste poema, é a temática da efemeridade da vida – uma leitura do lugar comum do carpe diem, associado à hipérbole do efeito do amor: o beijo. Assim, se, de um lado, o que os velhos pensam do romance não vale muito (“aos rumores... voz nem vez vamos dar”), de outro, o desejo da troca de beijos projeta-se ao infinito.
Já o poema 58 revela a invectiva mordaz do amante em relação à amada, tendo uma terceira personagem como testemunha (Célio): a mesma amada tão desejada outrora se torna alvo de maledicência. A tradição literária de viés romântico sistematicamente expurgava este poema de forma curiosa, pois que, em suas traduções para as línguas modernas, o verbo que introduz o último verso não era traduzido. E se desejássemos saber qual era seu significado os dicionários mais antigos ao invés de nos dar uma tradução apresentava o verbo em grego. Assim o termo ficava sem tradução. “Descascar” nesse caso significa uma prática sexual violenta, algo como debulhar o milho com os dentes. Vale dizer que a hipérbole do poema anterior era utilizada como recurso valorativo do amor, neste poema se mantém, no entanto de forma pejorativa, afinal Lésbia descasca os filhos de Remo, isto é, simplesmente todos os romanos.
Ao fim e ao cabo, a relação amorosa é, de certa maneira, apaziguada no poema 92, uma vez que “Catulo” assume seu amor e aposta no amor de “Lésbia”. Todas as desavenças estariam sanadas, pois o “ódio” destilado nos poemas seria apenas uma resposta ao desprezo que poderia vir a ser superado, constituindo abertura ao desfecho positivo desse caso de amor.
Catulo, dado aos elementos que observamos, portanto, pode ser considerado, em termos clássicos, uma vanguarda e, isto, se comprova a partir do nome que seu grupo recebeu de Cícero, porém, agora, reciclado positivamente em latim: poetae noui, poetas novos. Ele é de fundamental importância para a Literatura Latina, uma vez que poetas do calibre de Ovídio e Propércio (uma geração mais tarde) explicitamente se colocam numa posição de devedores de sua poesia, não só quanto à forma, mas também, quanto ao conteúdo. Quem sabe pudéssemos propor que Catulo mais do que um dos poetae noui, devesse ser chamado de o poeta sempre novo.

* As Traduções usadas neste texto são de autoria do Prof. Dr. João Angelo Oliva Neto da USP.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Ovídio por Bocage ganha segunda edição

Ovídio por Bocage
por Paulo Martins
(Texto publicado originariamente na Revista Bravo!, v. 40, p. 102 - 102, 02 jan. 2001.)

Ovídio foi o poeta mais eclético e copioso de Roma. Seu repertório sintetiza largo espectro de gêneros, que passam a ser produzidos a partir do I séc. a. C. com a incursão de novas práticas poéticas, antagônicas às produzidas até então. Esta nova poética, cujas principais características eram a predileção pelo diminuto, pelo detalhe, pela rapidez e pela leveza, contrapunha-se à sisudez de versos civis e vetustos que ocupavam a cena poética até então. Entretanto, a novidade romana não era tão nova, antes se filiava ao alexandrinismo - momento artístico-cultural do mundo helenístico.
Assim, Ovídio deve ser visto como síntese, pois ocupa certa seara poética que já havia sido cultivada por Catulo, Horácio, Virgílio, Propércio e Tibulo, poetas significativos para aquilo que o Mundo Moderno chamou de Antigüidade Clássica e possuidores de importância decisiva na formulação de técnicas prescritivas e de motivos nas artes clássicas dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Mais do que outro poeta antigo qualquer, Ovídio serviu de modelo e êmulo para Chaucer, Ben Jonson e Shakespeare, que não satisfeito em tomar motivos ovidianos em seus textos, chega a reproduzir seus versos como é o caso de "At lovers' perjuries/they say Jove laught - Dizem que Jove ri dos perjúrios dos amantes" (Romeu e Julieta, II, 2). A sua influência, contudo, não se restringe às artes verbais. Muito já discutiu sobre sua importância para as artes plásticas do século XVI. Seu texto mais relevante, As Metamorfoses, direta ou indiretamente, foi fonte para Ticiano em Perseu e Andrômeda (Wallace Collection - Londres) e para outras figurações do período.
As Metamorfoses são uma coletânea de relatos mitológicos que, aparentemente, não possuem conexão, a não ser pelo fato de revitalizarem a narrativa mitológica do ponto de vista de um gênero poético-didático. O poema é composto de 15 livros que tratam aproximadamente de 250 lendas etiológicas, mostrando o nascimento de seres e, fundamentalmente, sua transfiguração em outros e daí, justamente, o nome da obra.
Há de ser observado, também, como o mundo moderno se apropriou d'As Metamorfoses, tendo em vista sua circulação, nos meios eruditos e vulgares. Se a alusão já caracteriza certo empenho na divulgação, o que dizer de sua tradução ou de sua adaptação? Pois bem, são incontáveis as alusões e traduções deste texto de Ovídio, que, principalmente, em língua portuguesa permaneceram absolutamente inacessíveis.
Hoje está mais fácil entrar em contato com o Ovídio d'As Metamorfoses, pois uma belíssima edição, ou, pelo menos, parte dela em português, acaba de ser lançada pela jovem editora Hedra, em sua Coleção Tradutores, que procurará divulgar traduções clássicas de textos clássicos. No caso específico, a tradução - excepcional - é assinada por Bocage, que, nesse sentido, justifica sua filiação árcade ao traduzir parte dessa obra. Afinal, muito se fala na recuperação dos motivos clássicos a partir da renascença, mas pouco se mostra empiricamente como isso se efetiva.
O livro, muito bem cuidado, traz o texto original em latim ao final, fato que para os mais preciosistas pode incomodar, pois dificulta a conferência da tradução com o original. Por outro lado, oferece bela introdução acerca da técnica da tradução no século XVIII, feita com esmero e atenção por João Angelo Oliva Neto, professor de Língua e Literatura Latina da USP e conceituado tradutor das letras greco-latinas.