segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Ode 4,15 de Horácio e uma moeda

Denário de Prata - c. 19 a.C.
Obverso - Cabeça de Líber - Inscrição: TVRPILIANVS III VIR - Magistrado monetário
Reverso - Um parta de joelhos - Inscrição: [CAESAR A]VGVSTVS SIGN(IS) RECE(PTIS)


Horácio Ode 4,15:
Tua, Caesar, aetas//fruges et agris rettulit uberes//et signa nostro restituit Ioui//derepta Parthorum superbis//postibus

domingo, 30 de dezembro de 2007

Augusto e Horácio

IV,XV
Phoebus uolentem proelia me loqui

uictas et urbes increpuit lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
uela darem. Tua, Caesar, aetas

fruges et agris rettulit uberes
et signa nostro restituit Ioui
derepta Parthorum superbis
postibus et uacuum duellis

Ianum Quirini clausit et ordinem
rectum euaganti frena licentiae
iniecit emouitque culpas
et ueteres reuocauit artes

per quas Latinum nomen et Italae
creuere uires famaque et imperi
porrecta maiestas ad ortus
solis ab Hesperio cubili.

Custode rerum Caesare non furor
ciuilis aut uis exiget otium,
non ira, quae procudit enses
et miseras inimicat urbes.

Non qui profundum Danuuium bibunt
edicta rumpent Iulia, non Getae,
non Seres infidique Persae,
non Tanain prope flumen orti.

Nosque et profestis lucibus et sacris
inter iocosi munera Liberi
cum prole matronisque nostris
rite deos prius adprecati,

uirtute functos more patrum duces
Lydis remixto carmine tibiis
Troiamque et Anchisen et almae
progeniem Veneris canemus.


4,15
Desejando eu cantar as lidas e as vencidas
cidades, Febo tocou-me com a lira
para que parvas velas não desse ao
Mar Tirreno. Tua era, César,

Restituiu frutos fartos aos campos
restabeleceu ao nosso Jove insígnias
tomadas de soberbos portais
dos Partas. E isento de combates,

Jano Querinino fechou e freio lançou
sobre a desordem que estendia-se
acima da proba ordem. Crimes
extirpou; trouxe as antigas artes

Por elas elevaram-se o latino
nome, as forças da Itália, a fama e a grandeza
do Império, estendida da morada
Hespéria até onde é nascente o sol.

César, guardião de tudo, nem furor
de civis, força ou ira que forjou
espada e infelizes cidades
inimigas levarão à paz o termo.

Nem os que bebem do Danúbio profundo
Nem Getas, Seres ou infiéis Persas
Nem os que ao largo nasceram
do Tanáide, infringirão as leis júlias.

E nós, tanto nos dias sacros como nos meros
entre benesses de Líber jocoso,
com prole e esposa, no rito,
teremos orado, antes aos deuses;

Os chefes consumidos com virtude,
misturado poema às Lídias flautas,
como os pais, cantaremos Anquises,
Tróia e a progênie de Vênus nutriz.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Natalis - Uma tradução para Tibulo 2,2

Lawrence Alma-Tadema: Tibullus at Delia's. 1866 Oil on wood Museum of Fine Arts, Boston, USA




Natalis é um gênio que preside ao nascimento de cada homem e o acompanha durante a vida.



Tibulo, elegia 2,2


Dicamus bona verba: venit Natalis ad aras:
Quisquis ades, lingua, vir mulierque, fave.
Urantur pia tura focis, urantur odores,
Quos tener e terra divite mittit Arabs.
Ipse suos Genius adsit visurus honores,
Cui decorent sanctas mollia serta comas.
Illius puro destillent tempora nardo,
Atque satur libo sit madeatque mero,
Adnuat et, Cornute, tibi, quodcumque rogabis.
En age, quid cessas? adnuit ille: roga.
Auguror, uxoris fidos optabis amores:
Iam reor hoc ipsos edidicisse deos.
Nec tibi malueris, totum quaecumque per orbem
Fortis arat valido rusticus arva bove,
Nec tibi, gemmarum quicquid felicibus Indis
Nascitur, Eoi qua maris unda rubet.
Vota cadunt: utinam strepitantibus advolet alis
Flavaque coniugio vincula portet Amor,
Vincula, quae maneant semper, dum tarda senectus
Inducat rugas inficiatque comas.
Huc venias, Natalis, avis prolemque ministres,
Ludat ut ante tuos turba novella pedes.


Digamos boas palavras: o Natal chega aos altares:
Qualquer um, homem e mulher, que aproximes. Silêncio.
Em piras ardem pios incensos, ardem perfumes,
Que a suave Arábia envia da rica terra.
O próprio Gênio, que há de aparecer, assista suas honras,
E delicadas guirlandas ornem seus sagrados cabelos.
Os tempos destilem o seu puro nardo,
E fique saciado com bolo e embriague-se com vinho,
E que ele te atenda, Cornuto, qualquer que seja teu pedido.
Eis! Age! Por que tardas? Ele anuiu: roga.
Pressagio que pedirás amores fiéis da esposa:
Avalio que isso os próprios deuses já escolheram.
Não preferirás para ti tudo o que pelo orbe
O forte lavrador ara no campo com válido boi,
Não, para ti o que de gemas nasce dos felizes
Hindus, no oriente com aquela enrubesce a onda do mar.
Votos acontecem: queira que o Amor voe com asas
Retumbantes e carregue os flavos vínculos da união,
Vínculos que sempre permanecerão, até que a tarda velhice
Tiver trazido as rugas e tiver encanecido os cabelos.
Aqui virás, Natal, ministrarás as aves e a prole
Para que diante dos teus pés a jovem turba brinque.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Joel, White, Krall, Caymmi e Propércio

por Paulo Martins




Hoje pela manhã, Tatiana mostrou-me a regravação feita por Diana Krall (1964) para o CD "Live in Paris" (2002) de uma canção antiga de autoria de Billy Joel (The Piano Man): "Just The Way You Are", lançada no LP "The Stranger" de 1977 e, posteriormente, regravada por Barry White (1944-2003), no LP "The Collection" de 1978, versão com a qual a música ganharia notoriedade no Brasil. Certo é que esses dois grandes compositores e interpretes do R&B das décadas de '70 e '80 pareciam ter dado à composição tudo o que poderia ser dado.




Entretanto, como é de costume, Diana Krall releu com precisão o hit, imprimindo à música novo colorido e sabor sem que as qualidades anteriores fossem obturadas na releitura. A suavidade e beleza natural da interpretação são impecáveis. O piano e o violão são dignos de atenção, afora a voz sensível e plena de calor, sem esquecermos o tênue limite de conversão do R&B no mais puro Jazz.



Contudo o que mais me chamou a atenção, foram os versos "Don't go trying some new fashion//Don't change the color of your hair", cunhados por Joel. Eles, em certa medida, podem ser relacionados a outros dois momentos. Um primeiro mais antigo: Propércio, "elegia 1,2". Um segundo, bem mais recente: a canção de Dorival Caymmi (1914), "Marina" que foi regravada por Gilberto Gil em "Realce" de 1979.

A beleza feminina natural é um lugar-comum bem interessante e recorrente.

*_*_*_*_*_*_*_*


"Just The Way You Are"

Billy Joel

Don't go changing, try and please me
You never let me down before
Don't imagine you're too familiar
And I don't see you anymore

I would not leave you in times of trouble
We never could have come this far
I took the good times, I'll take the bad times
I'll take you just the way you are

Don't go trying some new fashion
Don't change the color of your hair
You always have my unspoken passion
Although I might not seem to care

I don't want clever conversation
I never want to work that hard
I just want someone that I can talk to
I want you just the way you are.

I need to know that you will always be
The same old someone that I knew
What will it take till you believe in me
The way that I believe in you.

I said I love you and that's forever
And this I promise from the heart
I could not love you any better
I love you just the way you are

I don't want clever conversation
I never want to work that hard
I just want someone that I can talk to
I want you just the way you are.

*_*_*_*_*_*_*_*

*_*_*_*_*_*_*_*
*_*_*_*_*_*_*_*

Marina

Dorival Caymmi


Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
De mal com você
De mal com você.

*_*_*_*_*_*_*_*


Propércio

I,II
QUID iuvat ornato procedere, vita, capillo
et tenuis Coa veste movere sinus,
aut quid Orontea crines perfundere murra,
teque peregrinis vendere muneribus,
naturaeque decus mercato perdere cultu,
nec sinere in propriis membra nitere bonis?
crede mihi, non ulla tuaest medicina figae sponte sua melius,
surgat et in solis formosior arbutus antris,
et sciat indocilis currere lympha vias.
litora nativis praefulgent picta lapillis,
et volucres nulla dulcius arte canunt.
non sic Leucippis succendit Castora Phoebe,
Pollucem cultu non Helaira soror;
non, Idae et cupido quondam discordia Phoebo,
Eueni patriis filia litoribus;
nec Phrygium falso traxit candore maritum
avecta externis Hippodamia rotis:
sed facies aderat nullis obnoxia gemmis,
qualis Apelleis est color in tabulis.
non illis studium fuco conquirere amantes:
illis ampla satis forma pudicitia.
non ego nunc vereor ne sis tibi vilior istis:
uni si qua placet, culta puella sat est;
cum tibi praesertim Phoebus sua carmina donet
Aoniamque libens Calliopea lyram,
unica nec desit iucundis gratia verbis,
omnia quaeque Venus, quaeque Minerva probat.
his tu semper eris nostrae gratissima vitae,
taedia dum miserae sint tibi luxuriae.

1,2
EM QUE te adianta, minha vida, andar com cabelos ornados
e ondular os trajes transparentes de Cós
ou espargir com mirra de Orontes os cabelos
e gabar-te com produtos estrangeiros
e perder a natural graça com luxo comprado
e não deixar brilhar o corpo com seus próprios encantos?
Crê em mim, tua beleza não carece de nenhum cosmético:
o Amor desnudo não gosta das belezas artificiais.
Olha as cores que a bela terra produz,
como as heras brotam melhor espontaneamente,
como a árvore surge mais formosa em solitários antros
e como a água sabe correr por vias não ensinadas.
Os litorais brilham mais, bordados, com seus próprias conchas
e aves cantam mais docemente sem nenhum aprendizado.
Não foi assim que, a filha de Leucipo, Febe, inflamou a Castor;
nem a irmã dela, Hilaíra, com luxo, a Pólux.
Nem foi assim que outrora a filha de Eveno nas margens de um rio,
seu pai, foi motivo de discórdia para Idas e para Febo apaixonado.
Não com falso candor, Hipódame,levada para longe
por carro estrangeiro, atraiu um esposo frígio:
mas, sua face, não sujeita à gema alguma, o fizera
como a cor está presente nas telas de Apeles.
Aquelas se esforçam em conquistar amantes com o vulgo,
Para elas lhes é suficiente a beleza de elegante pudor.
Agora eu não temo que eu seja para ti mais pobre que esses.
Se uma menina agrada a um único, ela é suficientemente adornada.
Quando Febo a ti concede especialmente seus poemas
e Calíope, com prazer, a lira Aônia e
a única graça não abandonou às tuas agradáveis palavras,
Nem tudo, Vênus ou Minerva aprova.
Com essas qualidades, tu sempre serás a mais grata de minha vida,
até que os luxos deploráveis te sejam enfadonhos.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Sphragís - Propércio e Horácio

Ontem, ao postar o comentário sobre o texto do Tostão e o poema do Drummond, citei o recurso poético da sphragís, dizendo apenas que era um selo, uma assinatura ao final dos livros de poesia na Antigüidade Clássica. Hoje proponho dois exemplos: o primeiro e mais famoso, Horácio na Ode 3,30; o segundo, Propércio as elegias 1,21 e 1,22.
No caso de Horácio, ao terminar seu terceiro livro de odes, ele não pretendia escrever mais odes, o que foi contrariado por ele mesmo, algum tempo depois quando publicou o quarto livro de odes. Assim, no último poema, há um inventário de sua poesia que é o seu selo, sua sphragís:

Ode 3,30
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non Aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens. dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex,
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.

Ode 3,30
Eregi obra mais perene que bronze,
Mais alta que pirâmides reais para
Que nem chuva edaz nem Áquilo colérico
Destruir possam ou inumeráveis séries
De anos ou fuga dos tempos. De todo não
Morrerei e mor parte de mim à Libitina
Sobreviverá, sempre e em todo lugar, novo
Renascerei por louvor at~e que o Pontífice
Com tácita virgem Capitólio escale.
Conhecido, onde Áufido violento ruge
E onde Dauno pobre reinou, n’águas, sobre
Campesinos, serei. Eu, de origem humilde,
O primeiro que trouxe canções eólicas
Ao metro itálico. Toma a grandeza por
Mérito obtida e cinge-me a cabeça,
Melpómene, desejando, com délfico louro.


Já Propércio propõe dois selos no final do seu Monobiblos (primeiro livro de elegias). O primeiro selo é um "atestado de óbito"; o segundo selo é uma "certidão de nascimento". Cada um deles segue as regras dos seus sub-gêneros específicos, isto é, o epitáfio e o natalício, respectivamente. Ambos inseridos no gênero maior, a elegia. Entretanto distantes também da temática erótico-amorosa que é o motivo principal da poesia properciana.


XXI
Tu, qui consortem properas evadere casum,
miles ab Etruscis saucius aggeribus,
quid nostro gemitu turgentia lumina torques?
pars ego sum vestrae proxima militiae.
sic te servato possint gaudere parentes,
haec soror acta tuis sentiat e lacrimis:
Gallum per medios ereptum Caesaris enses
effugere ignotas non potuisse manus;
et quaecumque super dispersa invenerit ossa
montibus Etruscis, haec sciat esse mea.


21
Tu que te apressas em escapar do nosso mesmo ocaso,
soldado ferido lá nos montes da Etrúria
por que volves ao meu lamento os olhos túmidos?
Eu mesmo sou parte de teu exército.
Assim, conserva-te para que teus pais se alegrem
e minha irmã não sinta, a partir de tuas lágrimas, o ocorrido.
Galo tendo escapado através das espadas de César
não pôde escapar de desconhecidas mãos
e, quando ela tiver encontrado quaisquer ossos dispersos
nos montes da Etrúria, que saiba que estes são os meus.


XXII
Qualis et unde genus, qui sint mihi, Tulle, Penates,
quaeris pro nostra semper amicitia.
si Perusina tibi patriae sunt nota sepulcra,
Italiae duris funera temporibus,
cum Romana suos egit discordia cives—
sic mihi praecipue, pulvis Etrusca, dolor,
tu proiecta mei perpessa's membra propinqui,
tu nullo miseri contegis ossa solo—
proxima suppositos contingens Umbria campos
me genuit terris fertilis uberibus.

22
Quais Penates, quem sou e d'onde é minha família,
ó Tulo, me perguntas em nome da nossa eterna amizade.
Se tu conheces a Perúgia, sepulcro de minha pátria,
é o luto da Itália em tempos difíceis,
quando a discórdia romana levou seus homens.
Assim, esta é especialmente, ó etrusca terra, dor.
Tu permitiste que os membros de meus parentes fossem espalhados,
tu não cobriste os ossos dos infelizes com terra alguma.
A vizinha Úmbria, que é limítrofe a esses campos,
ela, fértil, gerou-me em terras fartas.

Traduções: Paulo Martins

domingo, 23 de dezembro de 2007

O Jornal e um Drummond

Hoje contrariei uma velha posição recente, que a tivera como séria e irredutível:
Li jornal.
Mas minha insanidade mental não foi além do caderno de esportes de Folha de São Paulo. Afinal, esse é o meu limite para a observação da desgraça alheia e própria.
Que bela surpresa!
O texto de Tostão "Saudade, saudosismo, modernismo" talvez seja dos mais belos da crônica esportiva brasileira, o mesmo vem coroado por um grande Drummond, como que uma sphragís* temática da crônica:

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

*_*_*_*_*


*selo ou assinatura. Alguns poetas antigos propunham ao final de suas obras.

Para quem quiser ler a crônica integralmente, eis o link em O Povo, jornal cearense que disponibiliza o conteúdo:

http://www.opovo.com.br/opovo/colunas/tostao/754321.html

sábado, 22 de dezembro de 2007

Safo de Lesbos

Paulo Martins
Tão antiga quanto a própria literatura ocidental, a poesia erótica tem atravessado os séculos tomada ora como subproduto cultural, muitas vezes clandestino, ora como um gênero que desperta aquela reverência um tanto envergonhada diante de textos clássicos – e disso não se escapa quando se trata da Grécia Antiga, pródiga nas manifestações artísticas de uma cultura que valorizava a sensualidade. Fato mais notável (e eventualmente mais constrangedor para alguns) é a constatação de que foi a poesia de uma mulher do século 7º a.C., Safo de Lesbos – cujo nome, sim, deu origem aos termos lesbianismo e safismo –, que tenha inaugurado essa longa e rica tradição.
Não foi muito o que restou de sua obra: a impiedade do tempo nos legou pouquíssimos textos, e nenhum chegou integralmente até nós. O que temos hoje são apenas cacos, ruínas, vestígios de uma poesia inovadora que pode apenas indicar ou sugerir a grandeza dessa poetisa. Fora de catálogo no Brasil durante um certo tempo, ou dispersa em algumas publicações, os fragmentos de sua poesia estão reunidos agora no livro Eros, Tecelão de Mitos, de Joaquim Brasil Fontes. Além dos textos de Safo, a edição se propõe a fazer uma análise extensa e minuciosa, sem precedentes no meio literário nacional –ainda que, no que se refere à tradução, principalmente dos nomes próprios, peque por não seguir a tradição lusófona, o que facilitaria a leitura.
Da vida de Safo, pouco se sabe com certeza. Nascida entre 630 e 612 a.C. na cidade de Mitilene, na ilha de Lesbos, localizada no mar Egeu (na atual costa da Turquia), ela teve, em algum momento, de abandonar a ilha, por razões políticas obscuras, fixando na Sicília, então colônia grega. Ali, diz a tradição, reuniu em torno de si um grupo formado exclusivamente por mulheres, a fim de cultuar, por meio da música e da poesia – indissociáveis na época – em honra de Afrodite, deusa do amor, mãe de Eros, o deus menino que a tradição latina perpetuou com o nome de Cupido.
Foram nesses rituais de celebração do erotismo e da sensualidade que, ao que tudo indica, Safo deu início a esse gênero de poesia que prosperaria, nas mais diversas formas, até os dias de hoje. E não deixa de ser curioso que essa força, própria dos raros momentos históricos que marcam a inauguração de uma arte, tenha sobrevivido por meio de uma “ruína”. A resposta pode ter sido dada por Ezra Pound, que, ao incluí-la em uma antologia, justificou o ato em O ABC da Literatura: “Coloquei o grande nome de Safo na lista por sua antiguidade e porque tão pouco resta de sua obra que tanto se pode lê-la como omiti-la. Se vocês a leram, saberão que não há nada melhor.”
Pound se refere especificamente à ode Poikilothron, uma das mais sensuais de que se tem notícia na história, e é bastante provável que tenha sido a partir dela que tenha nascido a literatura erótica, seja por alusão direta ou, em caso mais incertos, por pura coincidência. Seu erotismo não é evidente, a não ser pelo fato de ter como centro da persona poética a própria Afrodite, mãe do tecelão de mitos, que é colocada num trono de cores e brilhos (o poikilothron) e caracterizada como “urdidora de tramas”. A ela é direcionada a súplica dos amantes, para que o coração do “eu”, que fala na poesia, não seja dobrado diante das mágoas e dores que a deusa urde.
Não tão sutil é a ode Phainetai, na qual Safo representa seu amor como um deus, ao qual atribui dotes sem par – “este teu sorriso que acorda os desejos” – e constrói epifanias do amor como condição física a que está sujeito o apaixonado: “meu coração no peito estremece de pavor no instante em que eu te vejo”; “escorre-me sob a pele uma chama furtiva”; “meus olhos não vêem, meus ouvidos zumbem”, “um frio suor me recobre”; ”estou a um passo da morte”. É digno de lembrança que essa mesma ode irá ser reciclada pelo romano Catulo no século 1o a.C.
No que se refere ao teor homoerótico de sua poesia, um outro fragmento é exemplar: “que morta, sim, eu estivesse:// ela me deixava, entre lágrimas// e lágrimas, dizendo:// “Ah, o nosso amargo destino,// minha Psappha: eu me vou contra a vontade”. Mas atenção: cumpre, aqui, reagir contra a leitura biografista, pois esse tipo de poesia entre os antigos poderia ser ou não reflexo de uma condição vivida pelo poeta, e aquilo que nos informa o texto de Safo pode não ser efetivamente algo de sua própria vida. O que, no entanto, não invalida a amplitude da figuração homossexual.
Mas, se é certo que a poesia de Safo serve longinquamente de modelo da poesia erótica, também é fundamental dizer que ela sobreviveu por meio de outros autores, aqueles mesmos cujas obras reproduziram, reinventando-a, essa mesma tradição – por vezes distante de certo vulgarismo; outras vezes, tão próxima e, mesmo assim, objeto digno da mais elevada literatura. Não é descabido colocar nesse rol pares tão ímpares quanto Safo e Horácio, Propércio e Florbela Espanca, Adélia Prado e John Donne, Paulo Leminsky e Allen Ginsberg, Walt Whitman e Manuel Bandeira, Ovídio e Drummond, autores que primam pela capacidade de traduzir Eros em palavras, apesar de não serem quase nunca autores circunscritos apenas a essa temática nem obrigatoriamente considerados próximos entre si, pois a distinção entre o sensual, o amoroso, o erótico e o fescenino entre eles é clara. Porém vale dizer que, em todos os casos, o deus menino e sua mãe presidem a elaboração poética, e são as suas metamorfoses que alimentam as artes.
Na antiguidade clássica, muita poesia erótica foi escrita, e a tal ponto isto é verdadeiro que se construiu em torno da temática uma preceptiva poética específica para ela, desenvolvendo-se uma gama imensa de subgêneros. Por exemplo, a elegia erótica romana de Ovídio, Propércio e Tibulo é fundamental para o entendimento da produção erótica de poetas clássicos como John Donne (1572-1631) em The Extasie (Aos corpos, finalmente, retornemos, / Descortinando o amor a toda gente;/ Os mistérios do amor, a alma os sente, / porém o corpo é as páginas que lemos.) ou em Elegie: Going to Bed (Deixa que minha mão errante adentre/ Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre./ (...) Minha Mina preciosa, meu Império,/ Feliz de quem penetre teu mistério), magistralmente musicada por Péricles Cavalcante, traduzida por Augusto de Campos e gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental.
Mas sempre é bom lembrar que a leitura de textos antigos pressupõe fundamentalmente a separação entre o poeta, historicamente tomado, e o sujeito da enunciação poética. Muitos equívocos de intelecção derivam disso. Portanto, ao lermos Safo, Propércio, Ovídio, ou mesmo, Donne, não podemos confundir a priori sujeito histórico e persona poética. Fato que pode e deve ser desconsiderado quando estamos diante de poetas contemporâneos, pós-românticos e românticos, em cujas obras podem ser observadas características pessoais e idiossincráticas, que são marcas de sua singularidade.
Quando Manuel Bandeira, por exemplo, constrói o belíssimo Água-forte na Lira dos Cinquent’anos, ele dá a dimensão dessa proximidade: “O preto no branco/ O pente na pele:/ Pássaro espalmado/ no céu quase branco.// Em meio ao pente,/ A concha bivalve/ Num mar de escarlata. Concha, rosa ou tâmara?// No escuro recesso,/ As fontes da vida/ A sangrar inúteis/ Por duas feridas.// Tudo bem oculto/ sob as aparências/ Da água-forte simples:/ De face, de flanco,/ O preto no branco.”. Além de recuperar a elocução do cânone da poesia, construindo aquilo que os antigos chamaram de ekphrasis (descrição de uma imagem visual), Bandeira imprime também toda uma história pessoal que não pode ser desconsiderada: na sua poesia a impossibilidade da concretização do amor e a sublimação do sexo são evidentes. Isso sem contar a simplicidade compositiva que é pedra de toque nessa grande obra, desmitificando a própria linguagem e a associando à sua própria simplicidade, num jogo de xadrez cujos sujeitos são vida e poesia.
Falar de amor e sexo é falar da própria humanidade. Na antiguidade, ela era o reflexo da condição humana que deveria ser observada na poesia como algo possível, necessário e inevitável; nos tempos atuais, como retrato de uma condição individual que alavanca o “eu poético e histórico” para o cerne da representação e, portanto, para o centro da existência. No caso de Eros, Tecelão de Mitos, essas duas vertentes estão presentes. A primeira parte do ponto arquetípico que é a própria obra, hoje fragmentária, da poetisa de Lesbos; e outra que nasce da preocupação do autor em buscar na modernidade a decifração do tema como condição de vida. Assim Eros – e não as Parcas, as senhoras dos destinos do homem – é que tece a vida. A vida como mito, como discurso que representa a condição universal do homem que, hedonicamente, sobrevive, mesmo diante das agruras que vida impõe e diante dos prazeres que o texto e o amor proporcionam.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Duas Elegias - Duas Traduções - Duas Imagens

Duas Elegias do Segundo Livro de Propércio

Paulo Martins

XII
QVICVMQVE ille fuit, puerum qui pinxit Amorem,
nonne putas miras hunc habuisse manus?
is primum vidit sine sensu vivere amantis,
et levibus curis magna perire bona.
idem non frustra ventosas addidit alas,
fecit et humano corde volare deum:
scilicet alterna quoniam iactamur in unda,
nostraque non ullis permanet aura locis.
et merito hamatis manus est armata sagittis,
et pharetra ex umero Cnosia utroque iacet:
ante ferit quoniam, tuti quam cernimus hostem,
nec quisquam ex illo vulnere sanus abit.
in me tela manent, manet et puerilis imago:
sed certe pennas perdidit ille suas;
evolat heu nostro quoniam de pectore nusquam,
assiduusque meo sanguine bella gerit.
quid tibi iucundum est siccis habitare medullis?
si pudor est, alio traice tela una!
intactos isto satius temptare veneno:
non ego, sed tenuis vapulat umbra mea.
quam si perdideris, quis erit qui talia cantet,
(haec mea Musa levis gloria magna tua est),
qui caput et digitos et lumina nigra puellae,
et canat ut soleant molliter ire pedes?

12
Quem quer que seja que pintou o Amor menino
Não julgas que ele tivesse mãos admiráveis?
Primeiro viu os amantes viver sem juízo
e os grandes bens perecer sem cuidados.
O mesmo não ao acaso adicionou asas ligeiras
e fez o deus voar no coração humano:
É evidente, porque somos lançados em ondas alternadas
e nosso ar não se conserva em lugar algum
e com razão suas mãos são armadas com setas aduncas
e de seu ombro pende aljava de Gnossos:
Porque feriu, antes que seguros julguemos o inimigo,
ninguém se livra desta cicatriz.
Em mim as setas permanecem, permanece a imagem pueril:
mas, certamente, ele perdeu suas asas,
porque, ah!, não voa de meu peito para lugar algum
e assíduo em meu sangue gere guerras.
Por que te é agradável habitar em um coração ressequido?
Se existe a honra, lance em outro tuas setas!
É melhor atingir pessoas sãs com este veneno:
Não sou eu, mas minha tênue sombra está sendo açoitada.
Tanto que se me perderes, quem será que irá cantar tais coisas,
Essa, minha Musa suave, é tua maior glória:
Aquele que cante a cabeça, os dedos, os olhos negros
de menina e como seus pés irão seguir suavemente?


XXXI
QVAERIS, cur veniam tibi tardior? aurea Phoebi
porticus a magno Caesare aperta fuit.
tantam erat in speciem Poenis digesta columnis,
inter quas Danai femina turba senis.

hic equidem Phoebo visus mihi pulchrior ipso
marmoreus tacita carmen hiare lyra;
atque aram circum steterant armenta Myronis,
quattuor artificis, vivida signa, boves.
tum medium claro surgebat marmore templum,
et patria Phoebo carius Ortygia:
in quo Solis erat supra fastigia currus;
et valvae, Libyci nobile dentis opus,
altera deiectos Parnasi vertice Gallos,
altera maerebat funera Tantalidos.
deinde inter matrem deus ipse interque sororem
Pythius in longa carmina veste sonat.


31
Tu me perguntas qual motivo me atrasa? Foi aberta
A porta áurea de Febo pelo grande César.
Todo construído em linha reta com colunas púnicas,
Entre as quais surge feminina turba de Dânao.
Lá Febo marmóreo cantando carme com muda lira
pareceu-me mais belo que o próprio Febo;
E em torno do altar: o rebanho de Míron ergue-se:
Quatro bois - signos vivos do artífice.
Então no meio o templo surge em alvo mármore,
Mais caro a Febo que sua pátria Ortígia.
Acima da cumeeira está o carro do sol
Em suas portas, nobre obra em líbio marfim;
De um lado os galos expulsos do alto do Parnaso,
De outro lamentam os funerais de Tantálida.
E logo entre a sua mãe e sua irmã, o próprio deus

Pítio em longa veste canta carmes.