quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O amor entre os antigos

Imagem de Afrodite do British Museum - Londres
Grega-helenística, I século a.C., encontrada na antiga cidade de Satala, a moderna cidade de Sadak, no nordeste da Turquia. Altura: 38.100 cm. Inv: GR 1873.8-20.1 (Bronze 266)



Paulo Martins

Falar sobre o amor na Antigüidade, seja após as inferências de Freud, seja a partir de uma diletante curiosidade, nascida dos inúmeros livros de mitologia, parece tarefa estéril senão tola. Contudo, um olhar mais atento acerca de sua permanência, ou mesmo, o que a mesma tem a dizer nesse mundo pós-moderno, pode ser uma aventura agradável e até mesmo interessante.

Quando falo da permanência desse amor antigo no mundo de hoje, nada há que nos leve a pensar que o amor em todas suas instâncias seria o mesmo, ou ainda, que para nos conhecermos melhor nessa matéria teríamos de buscar o princípio de tudo no mundo greco-latino - pura bobagem! O amor, sentimento, atração física, emoção, basta-se e qualquer teorização fica muito aquém do objeto observado.

Mas por que, então, nos referimos ao amor como obra de Vênus ou que fomos tocados pelas setas de Cupido, aquele pequenino ser alado que possui força inversamente proporcional ao seu tamanho? Rita Lee poderia muito bem responder dizendo "Lá no reino de Afrodite, o amor passa do limite...". Mas vamos deixar Rita em paz!

O amor em Roma e Grécia é mais palpável e, justamente, por possuir essa concretude, parece também mais digno de comentários e associações, coisas que faltam nas sociedades ditas ocidentais e pós-românticas que, vez por outra, propõem certa distância entre o sentimento e sua concretização, e qualquer tentativa de consolidação artística ou não do mesmo passaria por uma sublimidade que o amor efetivamente não tem. Afinal, não há como duvidar que ele seja concreto.


Imagem de Vênus do British Museum - Londres. Mármore de Vênus do tipo da Vênus Capitolino. Romana, circa: 100-150 d.C., encontrada no Campo Iemini, próximo de Torvaianica, Lácio, Itália. 223.520 cm. Inv: GR 1834.3-1.1 (Sculpture 1578)

Carecemos, hoje, de algo que no teatro do mundo ou no mundo das representações constituam-se como a representação concreta do amor. Por sermos essencialmente românticos procuramos, paradoxalmente, a metafísica do amor, principalmente, quando esse amor não fornece sua própria consubstanciação. E mesmo quando a temos, buscamos representação factível, possível para ele fora do mundo sublime! E assim chegamos aos antigos. Eles nos dão explicações concretas para o que sentimos. Suas representações apesar de serem divinas, são concretas, são reais: realizáveis.

Mas os romanos e os gregos acreditavam em seus mitos? Eles conseguiriam entendê-los fora do âmbito religioso? Isso não seria apenas denominação do sublime “pós-tudo”? E, nesse sentido, não seriam tão românticos quanto nós?

Certo é que os romanos já não se encantavam tanto com os mitos quanto os gregos, porém as representações concretas do sentimento por intermédio dos mitos, senão eram as mesmas, estavam muito próximas daqueles que as inventaram. Tanto isto é verdadeiro que é impensável o amor antigo, em Roma ou na Hélade, apartado de sua condição representativa, o mito.

Dessa forma, careceríamos do veículo da representação. Pois bem, a única possibilidade para o mito é o texto (verbal ou não). A literatura e as artes figurativas são, portanto, os veículos capazes de produzir o resgate das categorias mentais que norteavam aqueles homens diante de seus sentimentos. Ou seja, um dicionário de mitologia não faz o menor sentido para nós se estiver distante da própria veiculação dos mitos que eram os poemas e as imagens. Amiúde, sou questionado sobre os mitos, e minha resposta é imediata: em que texto, em qual imagem?

Hoje o mito sem a literatura e as artes não passa de lucubração, pela simples falta de referente textual e, portanto, concreto. Do que adianta saber que Afrodite nasceu da espuma do mar e do sexo extirpado de Urano? Que Apolo faz parte da segunda geração olímpica? Que doze eram os trabalhos de Hércules? Nada! Assim, prefiro a história de João e Maria ou a do Gato de Botas, sem falar dos contos de Andersen que, por conta de sua proximidade com o meu imaginário, teriam muito mais a dizer.

Entretanto, quando associamos a divindade a um texto literário ou a uma imagem, resgatamos o tal do referente, o mundo concreto. O signo imposto pelo mito brilha, e conseguimos entendê-lo como categoria de pensamento que busca a união daquilo que é transcendente - o amor, por exemplo - com aquilo que é concreto - o mito.

Assim nos deparamos com textos como estes de Safo na tradução de JAA Torrano (poeta grega do século VII a. C.) rogando à Afrodite: "Vem junto a mim ainda agora, desfaz/ o áspero pensar, perfaz quanto meu ânimo/ anseia ver perfeito. E tu mesma - sê /minha aliada". Ou ainda, contabilizando os efeitos do amor, produzidos pela mesma deusa: "Sim isso/ me atordoa o coração no peito:/ tão logo te olho, nenhuma voz/ me vem/ mas calada a língua se quebra,/ leve e sob a pele um fogo me corre,/ com os olhos nada vejo, sobrezum-/ bem os ouvidos//frio suor me envolve, tremo/ toda tremor, mais verde que relva/ estou, pouco me parece faltar-me/ para a morte".

Enquanto, no primeiro texto tem-se um típico procedimento religioso de atenção, no caso no amor; no segundo desnudam-se os efeitos que o agente do sentimento pode efetivar. Portanto, o mito aproxima aquilo que é injustificável daquilo que vivido e concreto, sem que, necessariamente, estejamos próximos do mundo ritualístico da religião.


Imagem de Afrodite no banho do British Museum - Londres. Estátua de Mármore. Uma versão de um original helenístico. Romana do II século d.C. Altura: 1.120 m. Inv: GR 1963.10-29.1


Não só preocupados com esta relação (transcendente-real), os antigos se preocuparam em pintar a divindade com palavras. Assim não só temos o que o amor causa, o que pode propiciar sendo divindade, mas também como é figurado concretamente. Propércio, poeta erótico romano do século I a. C., numa bela elegia assim diz: "Quem quer que seja que pintou o Amor criança,/ não é certo que tinha mãos extraordinárias?/ Ele viu que os amantes vivem sem cuidado e que grandes bens pereceram por loucas paixões./ Ele mesmo adicionou, não em vão asas ligeiras/ e fez o deus voar no coração humano."

Estátua de Bronze de Eros do MET - Nova Iorque

O exemplo, portanto, caracteriza justamente o que falamos no início, pois o amor só tem seus efeitos "existenciais", a partir da caracterização concreta. Os Cupidos (segundo a Mitologia, filhos gêmeos de Vênus) possuem asas rápidas como o vento, e nesse sentido, teríamos a representação da afecção amorosa que rapidamente penetra e agita o coração humano. Além do que a própria figuração é questionada e julgada, afinal quem quer que tenha sido seu pintor, as suas mãos eram extraordinárias, conseguiram efetuar a relação daquilo que sentimos com algo que absolutamente explicado no mundo concreto.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Antologia narra quatro séculos de latinidade

Texto publicado no Jornal da Tarde - "Caderno de Sábado", São Paulo, p. 5, 20 nov. 1999.


NOVAK, MARIA DA GLÓRIA et alii - Historiadores Latinos. Antologia Bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes.

Por Paulo Martins

"Sine ira et studio"
(Sem ira nem parcialidade)
Tácito

Historiadores Latinos, obra recentemente publicada pela Martins Fontes, propicia a, pelo menos, três reflexões pertinentes. A primeira delas concernente ao papel das antologias no estudo de práticas letradas. A segunda que tem como ponto de partida a recuperação genética do gênero historiográfico e the last but not the least, sobre o caráter da diversidade imposto pela tarefa da tradução.

Elaborada por um grupo de professores da área de Língua e Literatura Latina de diversas universidades brasileiras, durante as décadas de 80 e 90, esta antologia tinha como objetivo precípuo auxiliar o trabalho docente em Letras Clássicas que sofre por conta de escassez material de textos traduzidos, absolutamente necessários às aulas de língua e literatura latina.

Tal como a primeira obra da série (Poesia Latina, igualmente publicada pela Martins Fontes no início da década de 80), este livro tem como ponto de partida certo recorte diacrônico de determinado gênero dentro do universo literário de alguns séculos, ou seja, diferentemente daquilo a que estamos habituados, antologias que observam a produção de determinado autor ao longo de alguns anos, esta opera variações genéricas do ponto de vista de diversos autores, propiciando um retrato particular do desenvolvimento do gênero historiográfico na Roma Antiga.

Tal fato, seguramente, revelará viés diferenciado acerca do gênero em questão, uma vez que deixa de lado as questões teóricas e, de chofre, abre possibilidades de discussão a partir da efetiva prática letrada. Assim, o leitor ao fim e ao cabo da leitura poderá, indubitavelmente, teorizar sobre as variações do gênero em questão, podendo até mesmo refletir sobre a teorização que, geralmente, lhe é imposta pelas obras de teoria da literatura, e, mais especificamente, pelas obras de história da literatura latina que oferecem apenas o conceito deixando de lado o modus operandi a que se prendeu para que chegasse às conclusões expostas.

O uso desse expediente didático sempre foi muito utilizado dentro das Letras Clássicas e, portanto, não são poucos os títulos em países não periféricos que observam tal didatismo na formação dos críticos e estudiosos. Na verdade, os profissionais que adotam este tipo de intervenção desenvolvem a máxima retórica do “uerba mouent, exempla trahunt” (as palavras movem, os exemplos arrastam), ou a sentença de Sêneca nas Cartas a Lucílio: "Longum iter est per praecepta, breue et efficax per exempla" (O caminho pelos preceitos é longo, breve e eficaz pelos exemplos). Isto é, tanto no primeiro caso, como no segundo, o exemplo é o melhor caminho para o convencimento, logo, para a reflexão consciente e honesta, adequada.

A esta questão também deve ser somada uma “ideológica” – em seu senso mais amplo – no que tange à organização de antologias. Toda e qualquer reunião de textos faz despontar certa intencionalidade dessa seleção e organização. Portanto, à proposta antológica subjazem juízos que determinam opção, seleção, necessidade. E o que vemos na presente publicação, é absoluta proposta didática, sem, contudo, preterir prazer e convencimento. Nesse sentido, cumpre sua função horaciana, afinal a obra é dulce et utile (doce e útil), isto é, deleita, ensina e convence.

Esta seleção, cronologicamente, recorta quatro séculos de latinidade, oferecendo textos que vão de Júlio César (101 - 44 a.C.) a Salviano de Marselha (V d.C), passando por Santo Agostinho, São Jerônimo, Amiano Marcelino, Eutrópio, Floro, Suetônio, Tácito, Valério Máximo, Tito Lívio, Salústio, Cornélio Nepos, entre outros.


Tito Lívio


Tal fato opera, também, a diversidade de um mesmo gênero, fato dificilmente aferido na historiografia (mesmo na mais moderna); ao contrário daquilo que ocorre, por exemplo, com a poesia, tão diversa em si, contudo, tão propriamente poesia, singular, típica e isto, talvez, corrobore a afirmação aristotélica do capítulo IX da Poética, quando discute universalidade poética e particularidade histórica.

A historiografia latina e, conseqüentemente, a antologia em questão possui especificidades curiosas que determinam diferenças genéricas, ou melhor, subgenéricas, uma vez que tudo ali proposto é historiográfico. Assim, o que difere uma história de um breviário ou analística dos comentários? São questões subjacentes à interessante viagem factual e vivida proposta pela colagem de tempo morto e vivo em palavras.

Reavivada pelas palavras, o leitor brasileiro tem às mãos antologia que propicia o reconhecimento de certas instâncias de quatro séculos de história, vista pelos olhos de quem dela participou. Dessa maneira, o livro propõe textos de: Júlio César, grande nome da história republicana romana e hábil comentarista de campanhas bélicas (Recentemente foi comentada a mais nova tradução de sua obra A guerra Civil feita por Antônio da Silveira Mendonça); Tito Lívio, autor da época de Augusto, responsável pela mais completa narrativa da história romana desde a sua fundação até os primeiros dias do império; Tácito, agudo analista e historiador da segunda metade do século I d.C. e início do século II; Suetônio (69 -141), secretário do Imperador Adriano, cuja maior obra foi retratar biograficamente os primeiros doze césares, que, vale dizer, efetivamente foram onze, uma vez que Júlio César não era assim considerado.


Júlio César - Museus do Vaticano

Sob outro ponto de vista, podemos, também, por intermédio desses autores recuperar parte de um passado que, a princípio, é tido como inatingível. As obras desses autores, sistematicamente, tratam da vida pública, ou seja, estão presas ao fato histórico relevante, o fato público. No entanto, estilisticamente, é possível recuperar a história que não está na história, porquanto o estilo tem o poder de trazer à tona, elementos não presentes no texto, por exemplo, a recepção.

Tácito

Não foi de outra forma que Erich Auerbach (Mimesis, 1976. p. 40) adverte: "(...)Tácito escreve de uma posição superior que examina a multidão de acontecimentos e operações ordena-os e julga-os como um homem da mais alta posição social e educação, se não cai no árido ou ininteligível, isto se deve não somente ao seu gênio, mas também à incomparável cultura do visual e do sensorial durante toda a Antigüidade. Mas o mundo dos seus semelhantes, para o qual escreveu, exigia que o elemento visual e sensorial permanecesse dentro dos limites do gosto fixado por uma longa tradição, sendo que já nele aparecem sinais de uma transformação desse gosto, no sentido de um maior realce do sombriamente horrendo(...)".

Contudo, o fato mais diferenciado desta obra seja justamente observar estas diferenças genéricas, temporais e da recepção sob o ponto de vista diverso de tradutores diversos – são mais de duas dezenas no livro. A tradução como operação de linguagem pode também indicar, nos mesmos moldes da seleção antológica proposta, como vimos, propiciar à verificação de certo universo cultural e propositivo de tradutores, soluções, intenções e idiossincrasias que revestem o texto traduzido de estilo e pessoalidade.Portanto, a diversidade vista diversamente e unificada por intencionalidade “ideológica”, esta seria a definição mais adequada a este livro que ora se publica.


HISTORIADORES LATINOS - ANTOLOGIA BILINGUE
MARTINS FONTES
ISBN: 8533609124

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

AS TROIANAS DE SÊNECA





Por Paulo Martins


A publicação de textos traduzidos da antigüidade clássica greco-latina hoje no Brasil é ainda uma atividade rara e incipiente. Ao contrário do que ocorre em países como Inglaterra, França e Itália, onde coleções como a Loeb Classical Library, Les Belles Lettres e BUR (Biblioteca Universitaria Rizzoli) são responsáveis pela divulgação de obras fundamentais da literatura ocidental e atualmente já produzem novas gerações de traduções, o Brasil caminha a passos de tartaruga nesse filão do mercado editorial.

Tal fato não ocorre, como se poderia imaginar, pela ausência de profissionais competentes que conheçam com profundidade as letras latinas e gregas, manancial básico no ofício de tradução dos clássicos, mas, sim, pelo desconforto ou incompreensão das casas editoriais em investir nesse “produto” que, segundo alguns mais pessimistas, não possui público. Logo, é incapaz de gerar o lucro desejado.


O estado da questão gera um paradoxo interessante: não se publica porque não há público e não há público porque os textos não são divulgados. Remando contra a maré, há alguns editores que, a despeito de qualquer preconceito, investem nesse mercado, pequeno, porém cativo. Nesse sentido, encontramos algumas editoras como Edusp, Nova Alexandria, Vozes, Martins Fontes e Hucitec.

Esta última sistematicamente vem publicando livros pertencentes a uma série chamada Grécia e Roma, preocupada fundamentalmente em divulgar traduções acadêmicas dos textos do mundo clássico. Assim foi com Catulo - O Cancioneiro de Lésbia, Eurípides - As Bacas e Medéia, Aristóteles - A constituição de Atenas, Luciano - O diálogo dos mortos e , por fim, a recém-publicada obra de Sêneca - As troianas.

Sêneca sempre esteve envolvido com o poder de sua época, marcada por inúmeras turbulências. Viveu em Roma durante os governos dos cinco primeiros imperadores romanos (Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), ou seja, de, aproximadamente, 4 a. C. até 65 a. C.. A supor que a sociedade, na qual determinado escritor vive, imprime em seus textos alguma influência, aqui se explicaria certa força, violência, crueldade e tensão que há em seus textos. Afinal, Sêneca “foi hostilizado por Calígula, banido por Cláudio e condenado à morte por Nero”.


Sua vasta obra compreende gêneros diversos, a saber: cartas, tragédias e tratados filosóficos, toda ela impregnada, seguramente, de um matiz estóico, filosofia que ele pretendia difundir entre seus contemporâneos, fundada na busca da felicidade, na paz de espírito, na fugacidade da vida e no exercício da virtude, logo, objetivo de sua literatura.

A produção trágica latina não foi tão vibrante quanto a grega, no entanto o que nos restou — oito tragédias de Sêneca — demonstra uma grande capacidade técnica, exigida pelo gênero.

A despeito de alguma coincidência temática com as tragédias gregas, as de Sêneca possuem características próprias e são marcadas por um colorido diferencial e por uma retórica acuradíssima — afinal o autor era um grande orador, e sua formação assume uma posição de relevo na produção de sua obra. Estes fatores, provavelmente, influíram para colocá-lo no rol dos prediletos de um Shakespeare, de um Racine, de um Corneille, ou mesmo, de um Pe. Antônio Vieira, por exemplo.

Talvez o fato que cause maior estranheza ao leitor moderno de tragédias senequianas seja a coincidência temática com outras obras, mormente com as trágicas gregas e, nesse caso específico, com As troianas de Eurípides . Isto ocorre por conta do desconhecimento de alguns conceitos “literários” antigos como imitação e emulação.
Na antigüidade clássica greco-latina, não havia o conceito de plágio ou originalidade, que só aparecem no fim do século dezoito com a disseminação da imagem do autor como ser diferenciado, que, platonicamente, possui uma relação especial com o divino e, por força de conseqüência, detém uma habilidade impar, original e sem precedentes.

Para os antigos, a apropriação temática a título de imitação era salutar, e mais, era uma referência para a observação do engenho (ingenium), capacidade de propor soluções textuais melhores e, nesse sentido, de superar o modelo inicial (emulação). Desta forma, a teoria autoriza uma aproximação entre êmulos, no caso Eurípides e Sêneca.

A distância entre Sêneca e Eurípides reside justamente na ausência de teatralidade do primeiro em relação ao segundo. As peças de Sêneca, seguramente, foram escritas para serem lidas e não para serem encenadas, o que aristoleticamente retira da estrutura trágica, com a qual deve preocupar-se o tragediógrafo, aquilo que o filósofo grego chamou ópsis, a “encenatividade”. Isto, contudo, não impede que seu texto explore aspectos fundamentais como a perfeita construção dos caracteres (os éthe). Suas personagens são extremamente vigorosas e ricas, principalmente se forem observados os tipos femininos construídos em As troianas. E mais, sua estrutura externa adequa-se perfeitamente aos princípios aristotélicos.

O enredo, fundado na situação de desespero das mulheres troianas, após o fim da campanha militar de Tróia, com a morte de seus homens, provavelmente deve ter causado à época alguma comoção uma vez que, se observarmos a origem lendária de Roma, encontraremos Enéias, um general troiano, que conseguiu escapar da morte na famigerada guerra e que de maneira mítica está ligado à fundação da Cidade Eterna.


Sêneca, ao tratar do destino reservado às mulheres de Tróia, carrega nas tintas e produz, retoricamente, momentos patéticos notáveis (e leia-se aqui patético no seu sentido de afecção passional absolutamente programático - o páthos), de sorte que o fim de Hécuba, Andrômaca e seu filho Astíanax e Políxena é aguardado com ansiedade pelo leitor atento.

Cabe ressaltar que Sêneca introduz na sua versão d’ As troianas uma passagem que não encontramos em Eurípides: o sacrifício de Políxena, filha de Hécuba e Príamo, rei de Tróia, imolada no túmulo de Aquiles. Esta passagem, contudo, está presente em outra tragédia de Eurípides, Hécuba. Isto indica a presença da contaminação(contaminatio), fenômeno de intertexualidade, muito comum nas comédias latinas.

A presente edição deste texto até então inédito em português, elaborada por Zélia de Almeida Cardoso, professora e latinista da FFLCH da USP, propõe uma boa introdução que situa o leitor na época em questão, além de proporcionar informações preciosas no que se refere à obra de Sêneca e, mais especificamente, à composição de suas tragédias. São também oferecidas ricas notas ao fim do livro para que certa parcela de leitores modernos, desabituada com as referências mitológicas, tenha uma intelecção mais completa do texto. Há um glossário que registra antropônimos, nomes gentílicos e topônimos com seus respectivos esclarecimentos. Além disso, dispõe a edição do texto latino, permitindo que o leitor iniciado nestas letras possa cotejar a tradução com original.

A tradução absolutamente precisa resgata na maior parte das vezes o cunho sentencioso e patético do texto. Contudo, como a própria tradutora afirma, não foi proposta uma solução de tradução versificada, o que, de certa maneira, seria desejável, posto que as tragédias de Sêneca foram escritas em verso.

Bem esclarece, entretanto, que, nas partes dialogadas, o original se vale de metros jâmbicos, produzindo um efeito de linguagem falada, o que autoriza, assim, a tradutora a vertê-los em prosa, imprimindo um tom coloquial a estas partes. Quanto aos cantos corais que originariamente haviam sido escritos em metros líricos, esperava-se uma tradução mais poética, uma vez que estes trechos possuem no original uma beleza e força magníficas e, em certa medida, devem esses valores à habilidade técnica do autor no trato com o verso. Não obstante, Zélia de Almeida Cardoso procura solucionar tal situação com um possível resgate cadencial que, se não é uma rima, é uma solução.

Em todo caso, tais detalhes não desautorizam o trabalho eficiente de tradução, tampouco a importância do livro neste mundo globalizado tupiniquim, chamado Brasil, onde as distâncias com o dito mundo civilizado estão cada vez maiores também no que tange à cultura clássica.


As Troianas - Lúcio Aneu Sêneca
Introdução, Tradução e Notas de
Zélia de Almeida Cardoso
Editora Hucitec - SP/SP
1997 - 156p.



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Estudos Acadêmicos sobre Sêneca



Letras Clássicas é uma publicação anual, mantida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da FFLCH-USP, que se destina à divulgação da produção científica de professores e alunos vinculados ao Programa. Cada volume compõe-se de artigos, traduções de autores gregos e latinos, resenhas de publicações relativas aos Estudos Clássicos e notícias sobre dissertações e teses defendidas ou sobre pesquisas em andamento em nossa área. Demais, os artigos e traduções seguem um eixo temático.

Sumário deste número:
Editorial

Artigos

I. Os textos de Sêneca

1. Consolações:

- A filosofia da dor nas Consolações de Sêneca - por Cleonice Furtado de Mendonça Van Raij

2. Diálogos:

- De tranquillitate animi como exercício espiritual - por Angélica Chiappetta

3. Epístolas:

- Por que Sêneca escreveu epístolas? - por Ingeborg Braren

- Arte dialógica e epistolar segundo as Epístolas morais a Lucílio - por Marcos Martinho dos Santos

- Uma visão senequiana da amizade - por Ariovaldo Augusto Peterlini

4. Sátira:

- Silêncio y furor en la Apokolokynthosis de Séneca - por Giuseppina Grammatico

5. Tragédias:

- O tratamento das paixões nas tragédias de Sêneca - por Zelia de Almeida Cardoso

- Medéia de Sêneca - por Maria da Gloria Novak

- A utilização de recursos formais na tragédia Fedra de Sêneca - por José Eduardo dos Santos Lohner

- O párodo de Fedra e a retórica - por Paulo Martins

- A Andrômaca de Eurípedes como fonte de As troianas de Sêneca - por Ana Maria César Pompeu

- Aspectos da liberdade em As troianas de Sêneca - por Isabella Tardin Cardoso

II - O contexto de Sêneca

1. Contexto Filosófico:

- Estoicismo e epicurismo em Roma - por Maria da Gloria Novak

2. Contexto Político:

- Sêneca entre a colaboração e a oposição - por Maria Luiza Corassin

3. Traduções:

- "A função dos males na vida humana". Sêneca, Sobre a providência, IV, 16; V, 1-11 - tradução de José Eduardo dos Santos Lohner

- "O valor do tempo". Sêneca, Epístolas morais a Lucílio, "Epístola 1" - tradução de Ingeborg Braren

- "Um deus habita nossa alma". Sêneca, Epístolas morais a Lucílio, " Epístola 41" - tradução de Ingeborg Braren

- "À natureza". Sêneca, Fedra, 956-88 - tradução de Zelia de Almeida Cardoso

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Palestra - As Línguas da América

Há uma semana, recebi um convite para falar a crianças de 11 e 12 anos sobre a origem e a história das línguas americanas. O pedido veio do professor de História do meu filho, Paulo. Titubeei no ínicio, pois uma coisa é falar sobre esse assunto a pessoas mais velhas e que possuem certo repertório de informações preeliminares e outra é traduzir conceitos complexos aos pré-adolescentes. Mas aceitei o desafio. Ontem foi o dia. Preparei uma aula de 110 minutos e desenvolvi os seguintes tópicos:

1. Linguagens
2. Língua
3. Famílias das Línguas
4. O Indo-europeu
5. O Latim Clássico e o Latim vulgar (o Romance)
6. As Línguas Neolatinas
7. O Português e o Árabe na Penísula Ibérica
8. O Português do Brasil e o Tupi.

A atenção, a receptividade e a participação desses meninos e dessas meninas foram impressionantes. Participaram com perguntas inteligentes, atenderam às minhas indagações com precisão, responderam com educação. Durante duas horas, permaneceram atentos! Mais pareciam alunos de Pós-graduação do que do Ensino Fundamental II. Não sei se no meu tempo de 6a. série nos anos 70, seria igual. Creio que não. A conclusão a que chego é nem tudo está perdido na educação do país.

Obrigado, Pequenos alunos da 6a. Série da Nova Escola.

http://www.novaescola-sp.com.br/site01/index.php

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A tragédia grega e Ésquilo

Busto de Ésquilo



Por Paulo Martins

Muito se diz que uma das maiores contribuições da civilização grega antiga foi a literatura. Nomes, como o de Homero, sempre são citados pelos professores como modelos para a cultura ocidental desde a Roma Antiga até os nossos dias. Entretanto, não há como negar que essa civilização nos proporcionou o gênero literário mais diferenciado, o teatro, em suas duas modalidades: a tragédia e a comédia.












Máscara Trágica e Mácara Cômica


O teatro grego, mais do que um gênero literário, era uma instituição política, isto é, algo típico da cidade-estado. As peças teatrais eram apresentadas em festivais que eram mantidos pelo poder público e eram dedicados a Dionísio, deus do vinho. Ocorriam todos anos e elevavam os vencedores dos concursos à posição de cidadão insigne dentro da estrutura social da polis. Cada autor deveria apresentar três peças e um ditirambo satírico, gênero, do qual pouco se sabe (afinal apenas fragmentos chegaram até nós íntegros). Nessas festas, a população escolhia o melhor entre os concorrentes, e essa participação sistemática nos festivais nos leva a crer que a literatura entre os gregos ocupava uma posição de destaque, uma vez que fazia parte do dia-a-dia, era discutida e pensada como um assunto de estado.



Sátiro


A origem da tragédia são os cantos corais religiosos, uma espécie de jogral, que, em seu desenvolvimento histórico, evoluem para diálogos entremeados de cânticos. Dessa forma, temos outra característica que sobreviveu pelo menos até a Idade Moderna: o teatro como poesia, fato que, hoje em dia, nos soa estranhamente, mas que é facilmente observável na tradição do humanismo e do classicismo: Moliére, Racine, Shakespeare e, mesmo, entre nós, Gil Vicente. Eles representam essa modalidade literária com maestria e engenho. Suas peças, além da sutileza de enredo e da precisão na constituição das personagens, são modelos de uma forma de poesia acurada e cuidadosa.

Vale lembrar que a dupla origem da tragédia (religião e poesia) é atestada pela etimologia da palavra tragédia: “tragos” “oidia”, o canto do bode. O canto se associa à forma poética e o bode, animal ligado ao culto de Dionísio, à religião. Pode-se dizer que a tragédia se ocupa, então, de uma dupla dimensão que se verifica não só na sua própria estrutura, como também no seu conteúdo. De um lado o coro, personagem coletiva e anônima, que entoa cânticos religiosos e comenta os episódios da ação em versos líricos; de outro lado, as personagens que a partir de sua fala em versos que se aproximam do ritmo da fala do cotidiano, fazem o desenrolar da trama. Além disso, o coro, sob o aspecto do conteúdo de seu canto, representa uma dimensão humana da cidade, comenta a ação dos heróis sob a óptica do cidadão; enquanto os personagens, representam ações míticas e, portanto, divinas em certa medida.


Baco

Entre os tragediógrafos gregos, o tempo nos legou apenas três: Ésquilo, Sófocles e Eurípides, cada um dos quais representando um estágio desse gênero. Do primeiro, temos 7 tragédias ; do segundo, igualmente 7 e do terceiro, 18. Ésquilo é seguramente o autor cuja obra mais se distancia da nossa concepção de teatro, podemos dizer que, por conta de estar mais próximo das origens, ─ entre os três, é o mais antigo ─ é o mais lírico dos autores, seus coros são mais extensos e suas ações são mais simples. A produção de Ésquilo foi muito vasta, há notícias de que escreveu mais de cem tragédias, contudo apenas Os persas, Os sete contra Tebas, Prometeu Acorrentado, Agamêmnon, As suplicantes, As coéforas e As Eumênides chegaram até nós e, em todas elas, o duplo alcance das tragédias é verificado.


Nascido em 525 a. C. em Elêusis, antes, portanto, do apogeu ateniense com Péricles, ele participou das guerras médicas (contra os persas), tento lutado na famosa batalha de Maratona em 490 e depois em Salamina em 480. Tal fato influencia sua produção artística, já que Os Persas trata justamente dessa última batalha e se caracteriza por não se fixar em tema mítico, mas histórico. Contudo, isso não impede que dê luz mítica ao evento histórico como forma de amplificar a condição dos soldados gregos em relação aos bárbaros, os persas. Ao invés de glorificar a vitória grega, salienta a derrota persa, a justificando como desígnio divino, castigo que foi mantido por muito tempo em suspenso e que, naquele momento, se coloca como amostra do que podem os deuses contra os mortais.


Sob o viés da guerra, também está centrada a tragédia Os sete contra Tebas, porém, ao contrário d’Os Persas, Ésquilo propõe um enredo mítico: a maldição de Édipo. Seus filhos com Jocasta (mãe e esposa), Polineces e Etéocles devem combater e morrer. E é o que ocorre e mais uma vez o destino se cumpre como forma de demonstração de força dos imortais em relação a nós, mortais. Da mesma maneira que a peça anterior, a ação é muito reduzida e abundam descrições e momentos de extremo lirismo.


A aflição das mulheres é uma temática recorrente em Ésquilo. Entretanto, em As Suplicantes, isto é patente. O enredo é proposto a partir das 50 filhas de Dânao, as danaides, que segundo o mito foram condenadas a encher tonéis sem fundo pela eternidade. Dânao, que reinou no Egito com seu irmão durante muito tempo, com ele se indispôs e partiu de lá com suas filhas. Contudo, seus primos desejavam desposar suas filhas e, isto, não era o seu desejo. Dessa forma, pede asilo em Argos cujo rei as salvará de imediato, mas sua desdita já se prenuncia e seu sofrimento está predeterminado.


Talvez, sua tragédia mais conhecida seja o Prometeu Acorrentado, cujo enredo é de teor inverso ao d’Os Persas, pois é todo centrado no mundo divino. Prometeu descumpre a determinação de Zeus de ter dado aos mortais o conhecimento do fogo. Como pena, é cravado num rochedo e lá é visitado pelo coro que se apiedando, lhe dá conselhos. A questão central do Prometeu parece ser o caráter de Zeus que longe de piedoso, mostra-se tirânico e absolutamente humano nas suas atitudes.


O ponto alto da obra de Ésquilo é a trilogia Orestia ou Orestéia, formada pelas peças Agamêmnon, As Coéforas e As Eumênides. Agamêmnon guarda para si talvez uma das imagens mais belas da literatura ocidental, a morte de Ifigênia, mas seu ponto central é Clitemnestra, esposa adultera do grande general grego da guerra de Tróia. Apesar de seu caráter discutível sob o ponto de vista da moralidade mortal, ela é um instrumento da justiça divina: mata o esposo para vingar a filha. Em As Coéforas, a sina do clã se desenrola, pois os filhos Orestes e Electra matam a mãe para vingar o pai por ordem de Apolo. Em As Eumênides, a ordem divina se impõe sobre a humana, Orestes é julgado em Atenas. Tal julgamento celebra o triunfo da justiça sobre as vinganças cegas.A obra de Ésquilo que começara “com a vitória de Atenas sobre os bárbaros, termina com a esperança de sua vitória sobre todas as desordens internas susceptíveis de ameaçá-la.”


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Ésquilo em Português



Ésquilo - Orestéia. Tradução: Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras. 3 volumes.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Times Higher Education - 2007



Em que se pese o valor restrito de avaliações acadêmicas sob aspectos quantitativos e númericos apenas, vale observar o ranking do jornal britânico "The Times" (Times Higher Education Awards) . Entre as diversas avaliações desse tipo, talvez essa seja a mais conceituada e tradicional. Os mais curiosos dados são relativos às Universidades Brasileiras:


Universidade de São Paulo - 175

Universidade de Campinas - 176


Vale lembrar que, no ano de 2006, a colocação dessas Universidades era 284 e 484 respectivamente.


Para ter acesso às pesquisas 2005, 2006 e 2007, clique no link http://www.timeshighereducation.co.uk/ e abra a aba statitiscs.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

A Mão Portuguesa de Deus - Sobre Vieira

Texto publicado na Revista Bravo!, 41. 01 de Fevereiro de 2001. pp.114-17. Por ocasião do lançamento do primeiro volume de obras escolhidas de Pe. Antonio Vieira, organizado por Alcir Pécora (UNICAMP)


A mão portuguesa de Deus

Por Paulo Martins

Padre Antonio Vieira (1608-1697) é certamente um dos maiores escritores da língua portuguesa. Não é por acaso que, academicamente, seja pleiteado ora pela Literatura Portuguesa, ora pela Brasileira - e que possa ser considerado o primeiro caso de transnacionalidade nas literaturas dessa língua. Veio para o Brasil aos 7 anos e, como jesuíta, dedicou parte de sua vida à colônia (Bahia, Olinda e São Luís), algo comum em pregadores do século 17 que tinham como missão a catequização dos povos. Também chegou a importantes investiduras na corte e no mundo, em diferentes períodos em que esteve fora do país: ocupou missões diplomáticas em Paris, Haia e Roma. Convicto de certas posições, em 1665/67 foi processado pela Inquisição por defender os cristãos-novos, condenado por "opiniões heréticas" e logo depois anistiado.
Longe das estantes das bibliotecas, estava muito difícil ter acesso a ele. Apenas excertos didáticos eram encontráveis. Ou ainda, espalhados pelos sebos e alfarrábios das grandes cidades, edições da década de 50 em quinze volumes, cujo preço está bem longe do razoável. Agora, acaba de chegar às livrarias o primeiro volume de uma coletânea em quatro, a ser lançada até o fim do ano pela editora Hedra e organizada por Alcir Pécora. A coleção é composta de dois volumes dedicados aos Sermões, um às obras proféticas (História do futuro e Defesa perante o Santo Ofício) e o último às Cartas.
Grande parte da crítica descontextualiza Vieira, atribuindo-lhe perfis inverossímeis, costurando-lhe máscaras imprecisas e pregando-lhe etiquetas incompatíveis. Se é certo que não devemos nos esquecer da afirmação de Italo Calvino - de que "os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa" -, é certo, também, que o próprio Calvino diz que "um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe". Assim, a despeito de todo e qualquer juízo crítico ou de valor que se faça acerca da obra de Vieira, é mais conveniente refletir sobre a pertinência de sua leitura hoje.
Pode-se afirmar que há pelo menos três razões que o tornam indispensável. A primeira diz respeito ao retrato da correlação de forças observadas à época de seus textos. Outra parte da delimitação de preceitos técnicos na elaboração de textos no século 17. A última é a aferição de um estilo preciso e difícil que deleita, ensina, convence, intriga e faz pensar sobre sua recepção.
A obra de Vieira é pragmática, longe de qualquer fruição romântica; é determinada pelo binômio poder eclesiástico e poder político. Suas letras são mundanas, práticas, efetivas e encerram a ação da Companhia de Jesus naquilo que lhe é mais característico: a expansão da fé como simulacro do poder político. O papel da Igreja, regulado pelo padroado real, que determinava a subserviência de Roma em relação a Lisboa, consistia na manutenção dos interesses econômicos e políticos da Coroa. A Igreja mantinha o monopólio da fé nas terras "descobertas" enquanto o Estado detinha o direito de recolher o tributo devido pelos fiéis, criar dioceses e nomear bispos.
Vieira devia zelar pelo Estado Colonial Português. Para tanto, construiu e proferiu diversos Sermões, entre os quais se destaca o famoso Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640). Sua intenção era dupla: barrar o avanço dos hereges reformistas holandeses e garantir a viabilidade da máquina mercantil portuguesa, usando uma argumentação de fundo teológico. Ele dizia que Deus não pode serconivente com as mazelas heréticas e deve se posicionar de forma que a justiça divina abençoe os portugueses: "(...)Vossa mão [Senhor] foi que venceu, e sujeitou tantas nações bárbaras, belicosas e indômitas, e as despojou do domínio de suas próprias terras, para nelas os plantar, como plantou com tão bem fundadas raízes; e para nelas os dilatar, como dilatou, e estendeu em todas as partes do mundo, na África, na Ásia, na América.(...)". A mão de Deus, portanto, só poderia ser portuguesa. Não parece que em qualquer momento histórico algum texto tenha tido poder suficientemente abrangente para conseguir atingir objetivo semelhante.
Mas o monopólio jesuíta da fé não era hegemônico; outra ordem, a dos dominicanos, emulava com a primeira. Não só pela possibilidade expansionista, mas também pela capacidade de ser o instrumento verbal de Deus. Enquanto os primeiros diziam-se donos do estilo preciso, direto e eficiente para conservação e conquista de novos fiéis, os segundos praticavam o verbum, aproximando-se de uma organização discursiva sublime e engenhosa cuja complexidade, senão semelhante, estava para eles muito próxima da complexidade divina - uma engenhosidade celeste enigmática e culta. A querela estilística, que extemporaneamente foi proposta como dicotomia cultismo versus conceptismo (forma versus conteúdo), trazia à tona a luta de dois modelos eclesiásticos, o primeiro dado às cameratas da corte e o segundo interessado na conversão dos gentios.
Como adversário contumaz da elocução e da "ideologia" dominicana, Vieira constrói o Sermão da Sexagésima, que nada mais é do que a chave "metalingüística" de seus Sermões, aguda e prudentemente construída com vistas à posição hegemônica dos jesuítas diante da catequese. Ou melhor, diante daquele poder político associado a questões econômicas e eclesiásticas obviamente defendidas pelos "filhos" de Santo Inácio de Loyola ("E esta maravilha fez Deus em Santo Inácio. O livro foi a flor, ele o fruto; um fruto que contém em si todos os sabores; um Santo que sabe a tudo o que cada um deseja e há mister" - Sermão da terceira dominga da quaresma - 1655).
Assim, existe uma função intrínseca para os sermões. Eles não podem se efetivar apartados do reconhecimento de suas máximas, de seus preceitos; devem efetivamente significar, isto é, devem ser concebidos de acordo com a adequação entre linguagem e público. Fato que, do ponto de vista de Vieira, não era observado pelos dominicanos: "Sim, Padre; porém esse estilo de pregar, não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português, e não havemos de entender o que diz?" (Sermão da Sexagésima - 1655).
Ao lermos Vieira hoje, outro aspecto é intrigante. Será que oralmente seus textos eram entendidos? Uma coisa é lê-lo, podendo-se fazer o percurso das linhas com olhos num vai-e-vem constante, para daí termos certeza de sua mensagem; outra é ouvirmos sem a possibilidade de retornar, de rever a trajetória da argumentação, que tanto nos apraz.
Facilmente se chega à conclusão que seria quase impossível a compreensão completa da mensagem dos Sermões, quando ouvidos, dada sua construção complexa e imbricada. Logo, tanto jesuítas como dominicanos estariam longe da missão primeira que, segundo o próprio Vieira, seria a disseminação da palavra de Deus (uerbum semen Dei - a palavra de Deus é a semente). Dentro dessa mesma perspectiva, em 1657 ele elabora o Sermão do Espírito Santo, cujo argumento principal é a importância do aprendizado da língua portuguesa pelos gentios. Esse aprendizado, segura e intencionalmente, deveria ir além do ABC; caso contrário, o efeito dos seus sermões seria o mesmo que o dos dominicanos: nenhum. Ou seja, absortos ou não na palavra de Vieira, ou melhor, na de Deus, nobres ou índios podiam ou não entender os Sermões (não saberemos jamais). Independentemente disso, estes se constituem como registros significativos da história e das letras do século 17.
É freqüente a recuperação de sua elocução. Os jornais, as revistas e até mesmo as universidades são devedores de suas construções, de suas imagens, de suas metáforas agudas e prudentes e, mais, de sua excelência. Apesar de sua ínfima circulação, Vieira ainda encontra epígonos, que por si não valem muito mas, por conta de sua filiação estilística e técnica, devem ser observados com cautela e atenção.Por isso é obrigatório se ler Vieira - o Vieira absolutamente distante da crítica que lhe medeia. Aquele que, por si, é representante do que há de melhor em língua portuguesa. Resta esperar por um maior empenho editorial para termos a totalidade de sua obra: a publicação da famigerada Clavis Prophetarum (A Chave dos Profetas), ainda inédita em português - foi escrita em latim. Mesmo assim já podemos comemorar: temos de novo algum Vieira!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Bologna University Summer School in Latin Language and Classical Culture (16 June - 4 July 2008)

The Department of Classics (http://www.classics.unibo.it) and the Department of International Relations of Bologna University are organizing a Summer School in Latin Language and Classical Culture.The courses will be focused both on language and on literature;further classes will touch on moments of Roman history and the history of art, supplemented by visits to museums and archaeological sites (especially in Rome).The course will be held in Bologna from 16 June to 4 July 2008 (three weeks) for a total of 60 hours (50 hours of classes + 10 hours ofcultural activities). No specific qualification is required for course admission. On the basis of their previous knowledge of the Latin language, the participants will be divided into classes of different levels(beginners and intermediate).

All tuition will be in English.

For further information (e.g. application form, credits, accommodation, etc.):

http://www.unibo.it/summerschool/latin
E-mail: summerschool@unibo.it