sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

AS TROIANAS DE SÊNECA





Por Paulo Martins


A publicação de textos traduzidos da antigüidade clássica greco-latina hoje no Brasil é ainda uma atividade rara e incipiente. Ao contrário do que ocorre em países como Inglaterra, França e Itália, onde coleções como a Loeb Classical Library, Les Belles Lettres e BUR (Biblioteca Universitaria Rizzoli) são responsáveis pela divulgação de obras fundamentais da literatura ocidental e atualmente já produzem novas gerações de traduções, o Brasil caminha a passos de tartaruga nesse filão do mercado editorial.

Tal fato não ocorre, como se poderia imaginar, pela ausência de profissionais competentes que conheçam com profundidade as letras latinas e gregas, manancial básico no ofício de tradução dos clássicos, mas, sim, pelo desconforto ou incompreensão das casas editoriais em investir nesse “produto” que, segundo alguns mais pessimistas, não possui público. Logo, é incapaz de gerar o lucro desejado.


O estado da questão gera um paradoxo interessante: não se publica porque não há público e não há público porque os textos não são divulgados. Remando contra a maré, há alguns editores que, a despeito de qualquer preconceito, investem nesse mercado, pequeno, porém cativo. Nesse sentido, encontramos algumas editoras como Edusp, Nova Alexandria, Vozes, Martins Fontes e Hucitec.

Esta última sistematicamente vem publicando livros pertencentes a uma série chamada Grécia e Roma, preocupada fundamentalmente em divulgar traduções acadêmicas dos textos do mundo clássico. Assim foi com Catulo - O Cancioneiro de Lésbia, Eurípides - As Bacas e Medéia, Aristóteles - A constituição de Atenas, Luciano - O diálogo dos mortos e , por fim, a recém-publicada obra de Sêneca - As troianas.

Sêneca sempre esteve envolvido com o poder de sua época, marcada por inúmeras turbulências. Viveu em Roma durante os governos dos cinco primeiros imperadores romanos (Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), ou seja, de, aproximadamente, 4 a. C. até 65 a. C.. A supor que a sociedade, na qual determinado escritor vive, imprime em seus textos alguma influência, aqui se explicaria certa força, violência, crueldade e tensão que há em seus textos. Afinal, Sêneca “foi hostilizado por Calígula, banido por Cláudio e condenado à morte por Nero”.


Sua vasta obra compreende gêneros diversos, a saber: cartas, tragédias e tratados filosóficos, toda ela impregnada, seguramente, de um matiz estóico, filosofia que ele pretendia difundir entre seus contemporâneos, fundada na busca da felicidade, na paz de espírito, na fugacidade da vida e no exercício da virtude, logo, objetivo de sua literatura.

A produção trágica latina não foi tão vibrante quanto a grega, no entanto o que nos restou — oito tragédias de Sêneca — demonstra uma grande capacidade técnica, exigida pelo gênero.

A despeito de alguma coincidência temática com as tragédias gregas, as de Sêneca possuem características próprias e são marcadas por um colorido diferencial e por uma retórica acuradíssima — afinal o autor era um grande orador, e sua formação assume uma posição de relevo na produção de sua obra. Estes fatores, provavelmente, influíram para colocá-lo no rol dos prediletos de um Shakespeare, de um Racine, de um Corneille, ou mesmo, de um Pe. Antônio Vieira, por exemplo.

Talvez o fato que cause maior estranheza ao leitor moderno de tragédias senequianas seja a coincidência temática com outras obras, mormente com as trágicas gregas e, nesse caso específico, com As troianas de Eurípides . Isto ocorre por conta do desconhecimento de alguns conceitos “literários” antigos como imitação e emulação.
Na antigüidade clássica greco-latina, não havia o conceito de plágio ou originalidade, que só aparecem no fim do século dezoito com a disseminação da imagem do autor como ser diferenciado, que, platonicamente, possui uma relação especial com o divino e, por força de conseqüência, detém uma habilidade impar, original e sem precedentes.

Para os antigos, a apropriação temática a título de imitação era salutar, e mais, era uma referência para a observação do engenho (ingenium), capacidade de propor soluções textuais melhores e, nesse sentido, de superar o modelo inicial (emulação). Desta forma, a teoria autoriza uma aproximação entre êmulos, no caso Eurípides e Sêneca.

A distância entre Sêneca e Eurípides reside justamente na ausência de teatralidade do primeiro em relação ao segundo. As peças de Sêneca, seguramente, foram escritas para serem lidas e não para serem encenadas, o que aristoleticamente retira da estrutura trágica, com a qual deve preocupar-se o tragediógrafo, aquilo que o filósofo grego chamou ópsis, a “encenatividade”. Isto, contudo, não impede que seu texto explore aspectos fundamentais como a perfeita construção dos caracteres (os éthe). Suas personagens são extremamente vigorosas e ricas, principalmente se forem observados os tipos femininos construídos em As troianas. E mais, sua estrutura externa adequa-se perfeitamente aos princípios aristotélicos.

O enredo, fundado na situação de desespero das mulheres troianas, após o fim da campanha militar de Tróia, com a morte de seus homens, provavelmente deve ter causado à época alguma comoção uma vez que, se observarmos a origem lendária de Roma, encontraremos Enéias, um general troiano, que conseguiu escapar da morte na famigerada guerra e que de maneira mítica está ligado à fundação da Cidade Eterna.


Sêneca, ao tratar do destino reservado às mulheres de Tróia, carrega nas tintas e produz, retoricamente, momentos patéticos notáveis (e leia-se aqui patético no seu sentido de afecção passional absolutamente programático - o páthos), de sorte que o fim de Hécuba, Andrômaca e seu filho Astíanax e Políxena é aguardado com ansiedade pelo leitor atento.

Cabe ressaltar que Sêneca introduz na sua versão d’ As troianas uma passagem que não encontramos em Eurípides: o sacrifício de Políxena, filha de Hécuba e Príamo, rei de Tróia, imolada no túmulo de Aquiles. Esta passagem, contudo, está presente em outra tragédia de Eurípides, Hécuba. Isto indica a presença da contaminação(contaminatio), fenômeno de intertexualidade, muito comum nas comédias latinas.

A presente edição deste texto até então inédito em português, elaborada por Zélia de Almeida Cardoso, professora e latinista da FFLCH da USP, propõe uma boa introdução que situa o leitor na época em questão, além de proporcionar informações preciosas no que se refere à obra de Sêneca e, mais especificamente, à composição de suas tragédias. São também oferecidas ricas notas ao fim do livro para que certa parcela de leitores modernos, desabituada com as referências mitológicas, tenha uma intelecção mais completa do texto. Há um glossário que registra antropônimos, nomes gentílicos e topônimos com seus respectivos esclarecimentos. Além disso, dispõe a edição do texto latino, permitindo que o leitor iniciado nestas letras possa cotejar a tradução com original.

A tradução absolutamente precisa resgata na maior parte das vezes o cunho sentencioso e patético do texto. Contudo, como a própria tradutora afirma, não foi proposta uma solução de tradução versificada, o que, de certa maneira, seria desejável, posto que as tragédias de Sêneca foram escritas em verso.

Bem esclarece, entretanto, que, nas partes dialogadas, o original se vale de metros jâmbicos, produzindo um efeito de linguagem falada, o que autoriza, assim, a tradutora a vertê-los em prosa, imprimindo um tom coloquial a estas partes. Quanto aos cantos corais que originariamente haviam sido escritos em metros líricos, esperava-se uma tradução mais poética, uma vez que estes trechos possuem no original uma beleza e força magníficas e, em certa medida, devem esses valores à habilidade técnica do autor no trato com o verso. Não obstante, Zélia de Almeida Cardoso procura solucionar tal situação com um possível resgate cadencial que, se não é uma rima, é uma solução.

Em todo caso, tais detalhes não desautorizam o trabalho eficiente de tradução, tampouco a importância do livro neste mundo globalizado tupiniquim, chamado Brasil, onde as distâncias com o dito mundo civilizado estão cada vez maiores também no que tange à cultura clássica.


As Troianas - Lúcio Aneu Sêneca
Introdução, Tradução e Notas de
Zélia de Almeida Cardoso
Editora Hucitec - SP/SP
1997 - 156p.



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Estudos Acadêmicos sobre Sêneca



Letras Clássicas é uma publicação anual, mantida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da FFLCH-USP, que se destina à divulgação da produção científica de professores e alunos vinculados ao Programa. Cada volume compõe-se de artigos, traduções de autores gregos e latinos, resenhas de publicações relativas aos Estudos Clássicos e notícias sobre dissertações e teses defendidas ou sobre pesquisas em andamento em nossa área. Demais, os artigos e traduções seguem um eixo temático.

Sumário deste número:
Editorial

Artigos

I. Os textos de Sêneca

1. Consolações:

- A filosofia da dor nas Consolações de Sêneca - por Cleonice Furtado de Mendonça Van Raij

2. Diálogos:

- De tranquillitate animi como exercício espiritual - por Angélica Chiappetta

3. Epístolas:

- Por que Sêneca escreveu epístolas? - por Ingeborg Braren

- Arte dialógica e epistolar segundo as Epístolas morais a Lucílio - por Marcos Martinho dos Santos

- Uma visão senequiana da amizade - por Ariovaldo Augusto Peterlini

4. Sátira:

- Silêncio y furor en la Apokolokynthosis de Séneca - por Giuseppina Grammatico

5. Tragédias:

- O tratamento das paixões nas tragédias de Sêneca - por Zelia de Almeida Cardoso

- Medéia de Sêneca - por Maria da Gloria Novak

- A utilização de recursos formais na tragédia Fedra de Sêneca - por José Eduardo dos Santos Lohner

- O párodo de Fedra e a retórica - por Paulo Martins

- A Andrômaca de Eurípedes como fonte de As troianas de Sêneca - por Ana Maria César Pompeu

- Aspectos da liberdade em As troianas de Sêneca - por Isabella Tardin Cardoso

II - O contexto de Sêneca

1. Contexto Filosófico:

- Estoicismo e epicurismo em Roma - por Maria da Gloria Novak

2. Contexto Político:

- Sêneca entre a colaboração e a oposição - por Maria Luiza Corassin

3. Traduções:

- "A função dos males na vida humana". Sêneca, Sobre a providência, IV, 16; V, 1-11 - tradução de José Eduardo dos Santos Lohner

- "O valor do tempo". Sêneca, Epístolas morais a Lucílio, "Epístola 1" - tradução de Ingeborg Braren

- "Um deus habita nossa alma". Sêneca, Epístolas morais a Lucílio, " Epístola 41" - tradução de Ingeborg Braren

- "À natureza". Sêneca, Fedra, 956-88 - tradução de Zelia de Almeida Cardoso