sexta-feira, 8 de junho de 2007

30 anos com e sem Bandeira

Paulo Martins

(Texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 17/10/98)

Certos poetas não deveriam ser lembrados no dia de aniversário de sua morte, mas ser festejados a cada ano na data de seu nascimento, porque, simplesmente, são imortais e, dessa forma, seria um desrespeito comemorarmos a ausência de alguém permanentemente presente. Este é o caso de Manuel Bandeira.
Porém, nossa cultura crê nos vivos. Deixa ao relento mortos e os perpetua como se sua obra tivesse chegado ao fim com o dia de sua morte. Sério equívoco. Seguramente, a crítica de poesia não comentou sequer um milésimo da obra de Bandeira, logo, mesmo após 30 anos de sua morte no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, continua vivo, eterno e infinito.
Talvez só os poetas compreendam a imortalidade e saibam, pois, nos traduzir que sempre há vida após a morte de um grande poeta. As palavras escritas permanecem, as faladas voam (uerba uolant, scripta manent). Se forem dignas de atenção – o autor medieval deveria ter completado a máxima.
Mas, por que é dado aos poetas este privilégio? Seriamos nós, simples mortais, incapazes de entender que boa poesia não morre jamais? A resposta certamente é não. Contudo, os poetas desde sempre compreenderam isto. Sabem que seu ofício, sua arte, encontrará acolhida na alma, sob os olhos atentos de bons leitores, independentemente de época. Não é de outra forma que ainda hoje lemos Homero. Porém, poucos sabem ler poesia. Assim, poucos além dos poetas entendem que não há relação direta entre a morte do poeta e o fim de sua poesia.
Se tal premissa é verdadeira, continuaremos a escrever homenagens aos mortos-vivos até o fim dos tempos, tentando alertar o maior número de pessoas de que há vida após a morte de um grande poeta.
Em 1977, mais precisamente no dia 17 de abril (Jornal do Brasil), o magistral Carlos Drummond de Andrade – outro imortal – conseguira sintetizar a obra de Manuel Bandeira, não escrevendo um texto de crítica literária, mortal e limitado (se comparado à arte de escrever poesia), mas elaborando a respeito do amigo Manuel e de sua poesia um belo poema (“Manuel faz novent’anos”) aos moldes daquele a quem se referia, afinal Bandeira foi assíduo nas homenagens poéticas.
Pois bem, é justamente falando acerca da imortalidade que Drummond, bem à maneira de Bandeira, começa seu poema:
“Oi, poeta!
Do lado de lá, na moita, hem? Fazendo seus novent’anos...
E se rindo, eu aposto, dessa bobagem de contar tempo,
De colar números na veste inconsútil do tempo, o inumerável,
O vazio-repleto, o infinito onde seres e coisas
Nascem, renascem, embaralham-se, trocam-se,
Com intervalos de sono maior, a que, sem precisão científica,chamamos
[de morte.(...)”
Assim, a carência de precisão científica da morte é sua completa inexistência para Drummond. Bandeira está apenas do outro lado de uma moita, se rindo de nós. O tempo para ele é uma dessas bobagens ao qual se colam números a seus trajes não costurados. Para Drummond, pois, Bandeira apenas dorme “profundamente”.
Esta idéia desde sempre perseguiu o poeta do Recife. O poema “Profundamente” do livro Libertinagem, por exemplo, alia o referido tema à memória distante do Recife e à memória mais próxima do Rio, transfigurando o tempo em algo inerte e sem valor. “Onde estão todos eles? // – Estão todos dormindo // Estão todos deitados // Dormindo // Profundamente”.
O local do sono eterno, ou, simplesmente, do sono maior, a que se refere Drummond, por sua vez, possui características ideais. Talvez, portanto, para os poetas este espaço, a que nós mortais denominamos morte, seja o local ideal da poesia. Lá, possivelmente, todas as coisas sejam em si verdadeiras, platonicamente tomadas. Ilatentes. Não é de outra forma, pois, que no Érebo (“Pasárgada”), um tuberculoso pratique ginástica, ande de bicicleta, suba em pau-de-sebo, monte em burro brabo, etc. O irrealizável tem espaço no universo da eternidade. Tudo é possível.
Porém, se a poesia refere-se ao eterno com letras e vozes do hic et nunc (aqui e agora), qual será a consistência da prática poética no mundo do sono eterno? Drummond questiona:
“(...) Hoje me sobe o desejo
de saber o que fazes, como,
onde:
em que verbo te exprimes, se há verbo?
em que forma de poesia, se há poesia,
versejas?
em que amor te agasalhas, se há amor?
Em que deus te instalas, se há deus?

Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?(...)”
Drummond quer nos enganar, ao questionar sobre o outro lado da vida, a morte, sobre como os mortos se comunicam, como escrevem poesia e como se amam. Ele sabe que a voz do amigo lá não é diferente de sua voz cá na terra. Bandeira já prenunciara ao propor em “O último poema” que:
“Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como o soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”
A forma ideal de poesia é um universal que serve a qualquer mundo, ao dos vivos e dos mortos. A forma ideal é simples, é ardente, é bela, é chama, é paixão. E, nesse sentido, ecoa em seu versos modernos um platonismo camoniano, plasmado em seus versos livres.
Mais do que isso, Bandeira é capaz de atingir a perfeição da poesia, operando materiais diversos que percorrem o absolutamente mundano, cotidiano e vulgar até o inacessível sublime. Desde a simplicidade de um “Café com pão // Café com pão // Café com pão // Virge Maria que foi isso maquinista?(...)” até a sublime delicadeza complexa de um “Quando a morte cerrar meus olhos duros //- Duros de tantos vãos padecimentos, // Que pensarão teus peitos imaturos // Da minha dor de todos os momentos?(...)”.
Acerca deste ideal que permeia a obra de Bandeira, Gilda e Antônio Cândido de Mello e Souza já haviam pensado na introdução ao volume Estrela da Vida Inteira de 1966: “A mão que traça o caminho dos pequenos carvoeiros na poeira da tarde, ou registra as mudanças do pobre Misael pelos bairros do Rio, é a mesma que descreve as piruetas do cavalo branco de Mozart entrando no céu, ou evapora a carne das mulheres em flores e estrelas de um ambiente mágico, embora saturado das paixões da terra. É entre estes dois modos poéticos, ou dois pólos da criação , corre como unificador um Eu que se revela incessantemente quando mostra vida e o mundo, fundindo os opostos como manifestações da sua integridade fundamental.”
Por outro lado, é certo que o modernista Bandeira prima pela capacidade de se expressar sob a égide de qualquer matiz estético, dessa forma o ideal corporifica-se em qualquer meio de expressão. Vale dizer, contudo, que não foi Bandeira que encontrou o modernismo, mas, ao contrário, foram os modernistas (e Mário tem responsabilidade nisto) que , o encontraram. Seu ecletismo formal e temático os tocou. Aqueles que buscavam ruptura, encontraram nele a síntese renovadora e avassaladora necessária à fratura estética.
Assim, ao observamo-lo filiado a certo simbolismo, cuja musicalidade exacerbada salta aos olhos de leitores mais atentos; a um romantismo, que tão bem soube comentar e traduzir; a um radicalismo poético na conformidade de certo modernismo mais visceral; aos experimentos formais característicos da poesia concreta, tão distante de sua formação poética e a uma sexualidade psicanalítica, que o remete a uma impossibilidade da vida real e sensível, podemos dizer que o mundo ideal preconizado concretizara-se em forma e conteúdo.
A esta diversidade de Bandeira, que certamente induz à universalidade ideal, Drummond, belamente, sintetiza:
“(...)Manuel canção de câmara, Manuel
canção de quarto e beco,
ritmo de cama e boca
de homem e mulher colados no arrepio
do eterno transitório: traduziste
para nós a tristeza de possuir e de lembrar,
a de não possuir e de lembrar,
a de passar,
mescla do que foi, do que seria,
simultaneamente projetados
na mesma tela branca de episódios
- em nós, vaga, soprada a cinza,
em ti, o sopro intenso de poesia.(...)”
A “mescla do que foi, do que seria , // simultaneamente projetados// na mesma tela branca de episódios” que Drummond fala é justamente a fusão dos dois pólos da criação de Candido e aquilo a que nos referimos acerca do ideal universal para o qual convergem concepções estéticas diversas e para o qual a diversidade mundana e supra real, consiliadas, reagem sob forma de poesia, que intensamente lírica, atinge a todos, ora pela simplicidade humilde do discurso (a que propala David Arrigucci Jr.) ora pela complexidade ontológica.
Destarte, o simbolismo de Bandeira, facilmente observável em Cinza das Horas (seu livro inaugural - 1917), nasce de uma poesia sujeita a uma técnica extremamente acurada que não visa ao efeito exterior, não se dirige tanto ao sentimento, ao coração, como a regiões menos exploradas da alma, como já alertara Sérgio Buarque. É assim que afirma em “Versos escritos nágua”:
“Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.”
Indelevelmente ligado a esta tradição, Bandeira afirma em Itinerário de Pasárgada: “compreendi, ainda antes de conhecer Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia.”
Da mesma forma, a poesia romântica alemã é tópica em sua poesia. Sua estadia na Europa antes da Primeira Grande Guerra possibilita contato mais direto com o alemão, e assim, pôde conhecer toda a força de Göethe, Hoelderlin, Schiller e tantos outros.
Contudo, a sua afinidade com a poesia moderna, realmente, é seu ponto mais alto. Constrói para si uma poética que deglute, absorve, alimenta-se da tradição e do cânone, conhecidos e trabalhados, para produzir um efeito reorganizador de sua poesia e conseqüentemente de outros que virão, ou melhor da poética moderna. Seu contato prévio com formas alheias de expressão poética lhe possibilitam uma crítica severa às mesmas. Mário de Andrade assim fala de Libertinagem, no qual sua maturidade moderna nos atinge avassaladoramente: “Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia de Manuel Bandeira, pois que este livro confirma a grandeza dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já publicou. Aliás também nunca ele atingiu com tanta nitidez os seus ideais estáticos, como na confissão de agora”.
Mário refer-se-ia ao poema. “Poética”, talvez um dos maiores instrumentos estéticos compostos pelo modernismo brasileiro, antológico em cada um de seus versos. Este poema reflete os ideais de toda uma geração de poetas. Seu último verso é uma bela hipérbole que restringe e, ao mesmo tempo, universaliza a produção poética moderna: “- Não quero mais saber do lirismo que não seja libertação.” Ao mesmo tempo que determina uma redução, ao negar o lirismo, propõe uma sua universalização ideal que é a libertação.
Tal movimento dialético proposto pode ser observado, por exemplo, no dístico “Poema do Beco” de 1933:
“Que importa a paisagem, a glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.”
Ou em “Última Canção do Beco”:
“Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades(...)
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais, (...)
Adeus para nunca mais!”
O beco tão presente em sua obra corresponde a um universo limitado físico que se contrapõe a universalidade do mundo. Entretanto, esta limitação física é trabalhada de forma a ser transposta e reavaliada universalmente dentro do mundo lírico, eclodindo em libertação. Assim temos que o universo ideal em Bandeira que parece estar restrito por uma simplicidade aparente, por uma pequenez do mundo cogitado, transforma-se no mote aglutinador das expectativas universais.São justamente estas expectativas universais, aparentemente simples de seus poemas que convertem-no, Bandeira, em um poeta da imortalidade e imortal.

Diego de Silva Velázquez: poeta e poesia na pintura

Paulo Martins

(Texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 26/06/99)

"Oh não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada"
Gregório de Matos

Os gregos antigos utilizavam o verbo poeîn para designar quaisquer atividades de manufatura e produção, assim sua primeira acepção aproxima a elaboração de um móvel qualquer, por exemplo, uma cadeira à de um objeto intelectual, texto, pintura. Contudo, essas atividades de elaboração não se restringiam ao universo mundano, físico, limitado por excelência; os próprios deuses eram agentes desse mesmo verbo quando nas palavras de Hesíodo (Cf. Os trabalhos e os dias v.110) criaram as cinco raças de homens (a de ouro, a de prata, a de bronze, a de heróis e a de ferro). Poder-se-ia inferir, portanto, que homens são o resultado da ação de poeîn dos deuses, ou seja, sua poesia. Apropriando-se desse verbo tanto no que diz respeito à ação humana como naquilo que é resultado da ação divina, podemos afirmar seguramente que Diego de Silva Velázquez, pintor sevilhano, nascido em 6 de junho de 1599 e morto em 6 de agosto de 1660, é poeta e poesia.
Velázquez é poeta. Esta assertiva, naturalmente, exclui qualquer possibilidade de atribuir-lhe certo gênio, qualidade capaz de produzir inexplicavelmente obra que, via de regra, seria ícone de inspiração divina, e logo, apartada de um programa sistemático de produção humano, essencialmente, humano. Nesse sentido, o pintor sevilhano iconiza o caráter de uma época cuja característica central é protocolar ações inventivas capazes de produzir certo efeito, muita vez, enigmático, contudo, absolutamente previsíveis para aqueles que observam os objetos de perto, tendo em mãos o sistema normatizador que regula a produção artística.
Talvez, esta característica afaste, hoje em dia, objeto produzido da recepção, isto é, poucos são aptos a observar a obra pictórica de Velázquez, por completa carência de conhecimento das regras que nortearam a sua produção. Seríamos ineptos (non aptum) e néscios (non scio) diante do engenho (ingenium) do pintor. Este fato provoca duas possibilidades de atitude. A primeira minimiza a importância da obra e a segunda proporciona uma atenção redobrada na sua observação.
Obviamente, não seria interessante desconsiderar seu valor, mesmo porque, isto é impensável. Resta-nos, pois, desvelar os enigmas de suas composições para, talvez, nos aproximarmos da recepção apta do século XVII e, assim, aferirmos toda a grandiosidade desse poeta-pintor que mais do que qualquer outro representa o que há de mais belo no dito século barroco.
O enigmatismo barroco é algo formidável, porquanto descortina uma intencionalidade não imediata diante do processo inventivo. O que se vê pode não ser o que se deseja figurar imediatamente. No entanto aquilo que se pode dizer de imediato também serve à proposta inicial de produção. Assim, há no barroco um acúmulo de mensagem e a recepção pode simplesmente observar sua superfície óbvia, limitada e néscia, como também adicionar a esta outra subliminar, enigmática e complexa. Há nesse caso uma adição de possibilidades de leitura e cabe ao receptor acioná-las de forma simultânea. Dois produtos exemplares dessa concepção em Velázquez são Las Hilandreras (1644-48, Museu do Prado, Madri, Inv.: 1173) e Las meninas (1656-57, Museu do Prado, Madri, Inv.: 1174).

Las Hilandreras, que superficialmente pode refletir apenas a intencionalidade barroca de figurar uma preocupação manufatureira e massiva da cultura como bem explicitou Maravall (A cultura do barroco, p. 162) no rastro de Max Weber, indubitavelmente produz uma série de indagações pertinentes que determinam uma segunda visada não tão superficial e mais aguda. Isto sem falar, é claro, da observação formal e técnica das habilidades do pintor no que diz respeito ao movimento, à luz, ao claro-escuro, à profundidade e à sombra.
Imediatamente, o quadro figura uma oficina. Segundo Antonio Maravall esta obra revela-nos a mentalidade de época que aprecia um modo de produção industrial. Estaria o artista barroco preocupado com a representação de estratos da sociedade cujo modo de vida se distingue dos ilustres de vida cortesã, não é, pois, de outra forma que o mesmo Velázquez opera retratos como o de Juan de Pareja (1649-50, Metropolitan Museum of Arts, Nova Iorque, Inv.: 1971.86), seu assistente.
Contudo, parece pouco provável que apenas esta tenha sido a real intenção do poeta-pintor em questão, pois que são evidentes outros elementos figurados no quadro, a começar por seu nome efetivo A lenda de Aracne. O nome remete ao mito greco-latino que nos indica a história de Aracne, excelente tecelã lídia que aprendera com Palas Atena sua arte e que, por conta de sua soberba em querer rivalizar com a deusa, foi punida sendo transformada em aranha (cf. Ovídio, Metamorfoses, vv. VI, 1-145). Pois bem, a tela indica três planos distintos que interagem. Um primeiro no qual está figurada uma oficina de fiação onde cinco mulheres empenham-se em seu trabalho. Duas delas, metáforas do mito: na roca, Palas Atena; a trabalhar com os fios, Aracne. Velázquez adapta o mito à realidade do século 17 (como nas telas Menipo, 1639-40 e Esopo, 1639-41). Num segundo plano, observa-se um vestíbulo, ao fundo da tela, ricamente iluminado, no qual são apresentadas mais três mulheres, duas das quais observando o terceiro plano e uma o primeiro e, consequentemente, a nós, espectadores. Estas mulheres como que estabelecem liame entre nós e o terceiro plano, entre realidade figurada metaforicamente, o mito em si e nós, pois que vale dizer que no terceiro e último plano, encontra-se uma tapeçaria – O rapto de Europa – que oferece contribuição no âmbito do mito, relaciona-se com Aracne – é uma de suas tapeçarias – ; de outro lado, composicionalmente, é alusão, é intertexto, é emulação, afinal, seu autor é Ticiano (considerado por Velázquez um dos maiores pintores).
Pode-se falar muito mais desse quadro, mas, efetivamente, ele nos fornece algo essencial para se ler Velázquez, ou seja, ele mostra que uma mera observação depurada pelo gosto não é suficiente para se acatar a produção desse poeta-pintor. O mesmo fato pode ser aferido em seu principal e mais famoso quadro: Las Meninas.
De chofre, Las Meninas não parece ser algo excepcional. Uma figuração da vida cortesã, da família real, cuja centralidade está na infanta Margarida e suas aias. No entanto, observa-se, também, a representação do avesso de um quadro e seu pintor – um auto retrato de Velázquez – a observar, quem sabe, aquele que está sendo pintado. Certamente, este não é a infanta, pois ela já está representada em Las Meninas, no nível primeiro de observação, este é o seu quadro. Quem seria então? Nós a vê-lo? Talvez. Ou simplesmente, aquele que no ato da representação observa, como nós, a cena. Se assim é, este quadro é singular, pois representa a todos indistintamente , bastando para tal, estar-se a frente dele. Isto é, Las meninas é o quadro de quem não está no quadro, pelo menos, a princípio.
Contudo, o observador mais atento verificará a presença espelho no fundo da câmara e nele perceberá a presença de uma imagem do rei Felipe IV e da rainha Mariana. Seriam eles, portanto, os observadores da cena, aqueles que ocupariam originariamente o lugar a nós reservado na observação. Assim, simultaneamente, são observadores, espectro e figuração em curso, imagem enigmática que está sendo elaborada pelo pintor dentro do quadro. Nesse sentido, Michel Foucault (cf. As Palavras e as coisas) em brilhante ensaio sobre esta tela informa: “Talvez haja, neste quadro de Velázquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo - que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.”
O espelho, aliás, sempre se constituiu como elemento cativante da representação, mesmo que comecemos com a proposição platônica em A República, livro X, onde é proposta imitação de todas as coisas do mundo a partir dele. Seria ele o artefato essencialmente mimético capaz de reproduzir com exatidão tudo que há. Dessa forma, os eikones produzidos, se não satisfazem a Platão – não são verdadeiros –seguramente, são fundamentais aristotelicamente. Por outro lado, a partir do século XV, amiúde, encontra-se a utilização deste artefato nas figurações. Observe-se a famosa tela de Jan van Eyck, O retrato dos esposos Arnolfini de 1434 (National Gallery, Londres).





Velázquez já se utilizara do espelho antes de Las Meninas, pelo menos duas vezes: Crista en Casa de Marta y Maria (The Trustees of the National Gallery, Londres, Inv.: 1375) e A Vênus do espelho (The Trustees of the National Gallery, Londres, Inv.: 2057), muito embora, em nenhuma destas duas obras se verifique a agudeza e engenho como no caso já explicitado.
Mesmo assim, é notável no caso do primeiro exemplo (Crista en Casa de Marta y Maria) o contrafluxo visual imposto pela tela. Os olhares de Maria e Marta nos capturam de forma avassaladora, tem-se a impressão de sermos o alvo da atenção iconizada, porém, na realidade o alvo é Cristo que para nós, simples mortais, não passa de uma imagem, um ícone da perspicácia do pintor-poeta. Mais uma vez, Velázquez nos constrange, porquanto, nos coloca como observadores ideais da cena. Em Las meninas como reis e agora como o próprio filho de Deus.
Segundo Maravall (op.cit. p. 316-7), esta forma enigmática de representar o mundo liga-se, fundamentalmente, à noção de que é necessário provar às pessoas da época que tudo é regido pelo protocolo, logo tudo que se lhes aponta é ilusório, regido pelo saber e pela prudência. "Por isso são tão importantes as técnicas empregadas para sublinhar a condição aparente e ilusória do mundo empírico. Compreende-se o grande desenvolvimento que elas adquirem e seu papel decisivo em todas as formas de comunicação com um público. Na arte, os efeitismos aos quais se recorre para se produzir um certo grau de indeterminação acerca de onde acaba o real e começa o ilusório correspondem ao delineamento que acabamos de fazer. Entre os efeitos desse tipo – para explicitar o que queremos dizer – citaríamos como exemplos alguns quadros fundamentais de Velázquez, tais como Las Meninas ou Crista en Casa de Marta y Maria. Observemos que agora não se trata do ingênuo virtuosismo de copiar algo com realismo tal que nos leve a acreditar que é coisa real e viva o que é apenas imagem pintada. O ensaio velazquiano é muito mais complexo: trata-se de multiplicar uma imagem dentro de outras, tão funcionalmente articuladas que chegam a produzir alguma incerteza sobre o momento no qual, nesse jogo de imagens, se transfere do representado para o real."
Uma outra questão que nos intriga em Velázquez é a aproximação entre dois tipos antagônicos de composição. Uma pública, até certa medida, idealizada e outra privada, apensa à realidade mais sensível. Tal dicotomia torna-se absolutamente visível e óbvia, quando observamos, lado a lado, sua dedicação na representação não só dos membros da casa real de Espanha (são inúmeras as telas), como também de outros insignes nomes do século 17 como no Retrato do Papa Inocêncio X em 1650 (Galleria Doria-Pamphili, Roma) e de personalidades vulgares da vida cotidiana, mormente, os que apresentam certas anomalias anatômicas como o Retrato do bufão Juan Calabazas entre 1637-39 (Museu do Prado, Madri, Inv: 1205) ou o Retrato do anão Francisco Lezcano entre 1643-45 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1204).
Estas antíteses também podem ser provocadas pela presença do idealizado e do vulgar simultaneamente. E ambas são surpreendentes. Nesse sentido, as célebres telas: Baco entre 1628 e 1629 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1170) e A forja de Vulcano em 1630 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1171); sem falarmos, naturalmente, na presença da figura megalocéfala figurada em Las meninas.
No caso das anomalias, segundo José López-Rey (cf. Velázquez - Obra Completa, p. 129-30), um dos maiores especialistas em Velázquez, estas estariam a serviço da figuração da natureza humana e seus desvirtuamentos. Além disso, Vale dizer que estas pessoas tinham uma posição no mundo cortês, serviam à quebra do tédio, do fastio que o mundo das aparências, regido pelos protocolos, proporcionava. Isto é, estas imagens são mirabilia, que, retoricamente, atendem a esta situação de quebra do taedium.
A simultaneidade de imagens vulgares e ideais poderiam atender à preocupação barroca das ruínas que indubitavelmente se associam à fugacidade da vida, ou seja, ao propor Baco ao lado de bêbados, Velázquez proporia análogos distantes, onde o primeiro representaria a perenidade - é um deus - e os demais aquilo que há de mais fugaz, o humano. Não é de outra forma que se nos apresenta a megalocéfala de Las meninas em contraponto à idealidade real da infanta Margarida e seus pais espectrais. Ou mesmo, em A forja de Vulcano, onde percebe-se a mesma atenção. "Nelas pretende encontrar o testemunho de um tempo, respondendo à incipiente consciência histórica que procura abrir caminho. (...) Mas as ruínas, além do mais, são um material muito adequado para estudar a estrutura da obra humana e, portanto, a condição da vida do homem que a criou, sem poder livrá-la de sua própria fugacidade. São um patente testemunho da luta entre a natureza perene, embora cambiante, e o homem perecedouro e dotado da capacidade de fazer mudar as coisas. (...) O tempo, portanto, é o puro processo dinâmico das transformações.(...)As imagens saturnais com que o século XVII o simboliza correspondem a essa consciência do fluxo ininterrupto de uma transformação universal, aniquiladora das coisas, mas também fonte de verdade e de fecundidade", escreve Maravall (op.cit. p. 301-2).
Tais observações acerca de Velázquez indicam apenas algumas características que não devem ser deixadas de lado ao tomarmos contato com a esplendorosa obra desse poeta-pintor sevilhano do século 17 e comprovam que, se uma de suas preocupações era figurar a fugacidade da vida, conseguiu apenas ser a representação real daquilo que há de mais perene, podendo inclusive citar o poeta latino Horácio: "exigi monumentum aere perenius" (Erigi um monumento mais perene que o bronze).

Horácio das Odes

Paulo Martins


Quinto Horácio Flaco nasceu em 65 a.C. em Venúsia, atual Venosa na região da Basilicata, e, escravo liberto, somou fileiras com Bruto, assassino de Júlio César. Mais tarde, tendo sido anistiado durante o segundo triunvirato, passou a fazer parte de um grupo de poetas e escritores financiados pelo lugar-tenente de Augusto, Mecenas. É desse período que nos resta sua produção poética.

Se a literatura clássica antiga deve sua importância a alguém – e seguramente deve – Horácio coloca-se entre os primeiros. Poeta de copiosa obra, singular e diferenciada, operou diversos gêneros poéticos dos quais talvez apenas a poesia épica tenha ficado fora de seu alcance. Dessa maneira, suas odes (4 livros), seus epodos (1 livro), suas sátiras (2 livros) e epistolas (2 livros, afora a Arte Poética) avolumam-se, produzindo um preciso retrato de seu tempo, a época de Augusto, além de representarem fielmente um repertório de formas e modos poéticos que até hoje encontram eco na vida literária. Entretanto, talvez, de todos os gêneros poéticos trabalhados por ele, suas odes sejam as peças literárias mais significativas, uma vez que a rapidez, suavidade, limpeza e, mais precisamente, a concisão dos versos, nesses textos, sem falarmos em seus conteúdos, despertem espanto ao crítico moderno.

Quando falamos “ode”, estamos tratando de um gênero poético, cuja origem remonta à Grécia arcaica e que possuía certa unidade regular métrica e estrófica, invarialvemente acompanhada musicalmente seja pelo aulós - um tipo de instrumento de sopro - seja pela lira – uma espécie de instrumento de corda - e que, ainda, do ponto de vista de seu tom, tratava de assuntos cotidianos de forma elevada e sublime, a despeito de, na maioria das vezes, tratar de matéria humana e, não necessariamente, divina.

No entanto, há que se lembrar que, na época de Horácio, essas características da ode já haviam se moldado a um novo tipo de sociedade em que a escrita era supervalorizada e, portanto, o virtuosismo da performance, da actio (ação) já cedera lugar ao da elocução. A despeito da citação de lugares comuns e da emulação com autores gregos como Arquíloco de Paros (Discutindo Literatura, 11) e Alceu e, ainda, do reconhecimento de ser sua poesia devedora aos modos gregos de composição, afinal ele mesmo diz em uma de suas Sátiras: “Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit agresti Latio” (A Grécia capturada tomou o ferro vencedor e trouxe ao Lácio agreste as artes - Sátira, 2, 1), Horácio é responsável pela consolidação da tradição literária ocidental em suas bases clássicas. Isto é, em que se pese a importância da literatura grega, aquela que se produz em Roma, no Lácio é a que efetivamente dita modelos na literatura européia moderna.

Um exemplo preciso do virtuosismo de Horácio é a quinta ode do primeiro livro, chamada Ode à Pyrra (ad Pyrram) que propomos a seguir numa excelente tradução de Nelson Ascher:

Que jovem grácil entre rosas
urge-te ungido de perfumes,
Pyrra, em teu antro?
Pra quem singelos ornas

louros cabelos? Ele a fé
maldirá logo e instáveis deuses,
sofrendo, inábil,
mar bravo e negro vento,

pois áurea frui-te ingênuo como
se sempre livre, sempre amável
e ignora as auras
falazes. Pobres desses

que, intacta, ofuscas. Sacro muro
por painel votivo atesta
que alcei molhada
a veste ao deus do mar.

As quatro estrofes dessa pequena ode tratam sucinta e rapidamente de um caso amoroso, mais precisamente de um triângulo amoroso: a mulher Pyrra (segunda pessoa) , um jovem homem (terceira pessoa) e o eu lírico (primeira pessoa), que insta Pyrra acerca de seu novo amor, logo na segunda estrofe o desenlace é proposto, pois externa que ele sofrerá a impossibilidade do desejo amoroso, maldizendo a fé, os deuses e as potências naturais, mar e vento. Afinal é característica de Pyrra não se entregar facilmente e, ainda, são incautos os homens que se interessam por ela por desconhecerem suas falácias, imaginando ela estar sempre livre e amável. A última estrofe finalmente indica que o próprio eu lírico é testemunha dos descasos de Pyrra uma vez que já entregou ao deus do mar em sinal de prece sua veste molhada, seja de suas lágrimas pelo o amor não correspondido, seja como resultado do ato amoroso que nunca mais se repetiu. Esta ode talvez seja o melhor exemplo daquilo a que se convencionou chamar de poética Alexandrina, pois que está assentada em pelo menos duas características fundamentais desta: o “leptós” – aquilo que é fino, diminuto – e o “malakós” – o que é suave.
A despeito de sistematicamente trabalhar em suas odes estas duas vertentes estilísticas, a saber, a suavidade e a fineza, o que proporcionaria uma suposta fragilidade do ponto de vista da composição literária se comparadas à grandiosidade e gravidade da épica virgiliana (Discutindo Literatura, 7), por exemplo, as odes, como um todo, são tratadas pelo próprio poeta como um monumento, algo grandioso sem precedentes na história literária de Roma. Tanto isto é verdade que Horácio na última ode do livro terceiro, que deveria ser a última nesse sub-gênero lírico, pois não pretendia mais à época produzir odes, sugere seu próprio inventário poético:

“Eregi obra mais perene que bronze,
Mais alta que pirâmides reais para
Que nem chuva edaz nem Áquilo colérico
Destruir possam ou inumeráveis séries
De anos ou fuga dos tempos. De todo não
Morrerei e mor parte de mim à Libitina
Sobreviverá, sempre e em todo lugar, novo
Renascerei por louvor até que o Pontífice
Com tácita virgem Capitólio escale.
Conhecido, onde Áufido violento ruge
E onde Dauno pobre reinou, n’águas, sobre
Campesinos, serei. Eu, de origem humilde,
O primeiro que trouxe canções eólicas
Ao metro itálico. Toma a grandeza por
Mérito obtida e cinge-me a cabeça,
Melpómene, desejando, com délfico louro.”
(tradução de Paulo Martins).

Vale ressaltar nesta ode a consciência da perenidade da obra de arte e sua grandeza, apesar de não estar produzindo um texto elevado aristotelicamente falando, pois não escreve uma épica nem tampouco uma tragédia e, antes, opera a lírica. Assim, mesmo sendo este gênero dedicado à leveza e à suavidade, ele é capaz de ser reconhecido como algo representativo de uma dimensão humana extremamente valorizada pela sociedade romana.

Em contrapartida à perenidade da poesia, a fugacidade da vida é outro elemento constante nas odes de Horácio. Assim, se de um lado aquilo que escreve é mais duradouro do que o bronze por sua altiva importância comparável à pirâmide de Qeops, e daí, ser lembrado o poeta até a eternidade, sempre novo sendo reconhecido, ultrapassando em existência os ritos ancestrais e, hiperbolicamente, superando a própria natureza do tempo, do vento e das águas; de outro lado, reconhece as limitações do homem natural, limitado por excelência, cujo fim é sempre o pó e a ruína. Isto é exatamente o que propõe a sétima ode do livro quarto:

Dissolveram-se neves, já vergéis retornam
Aos campos e às árvores, comas;
Mudam vezes a terra e às margens tornam
Descendentes os regatos.
A Graça com Ninfas e com gêmeas irmãs
Ousa nua conduzir coros.
Vida eterna não esperes, ano e hora que rapta
Dia propício advertem.
Frios abrandam com Zéfiros, verão suplanta
Vera até que morto esteja;
Logo outono pomífero trará frutos e
Reviverá inverno sem pomos.
Luas céleres recuperam celestes danos
Quando, então, nós descemos
Onde estão Enéias pai, rico Tulo, Anco
E somos pó e sombra apenas.
Quem sabe se súperos somam ao todo,
De amanhãs um intervalo?
O que terás dado com ânimo amigo,
De ávido herdeiro fugirá.
Quando tiveres morrido e Minos tiver
Feito de ti juízo notável,
Nem estirpe, Torquato, nem fluência, nem
Piedade te darão vida;
Pois nem Diana livra de atroz inferno
Seu casto Hipólito,
Nem Teseu é forte para romper oblívios
Vínculos do caro Pirítoo.
(tradução de Paulo Martins)

Confundem-se nesta ode dois tipos de rapidez. A primeira no âmbito da elocução, os versos extremamente ligeiros e, em certa medida, simples e doces são propostos em estrofes de dois versos, dísticos, que imprimem agilidade ao poema. A segunda, por sua vez, no âmbito do pensamento, do conteúdo, por assim dizer, reflete a passagem do tempo, a fugacidade desta convenção humana, lá medida pela passagem das estações. Ainda neste âmbito observa-se a transposição do tempo natural e humano para o tempo mítico, isto é, quando as estações se nos passam, estamos entregues ao mundo do mito, do em si. E lá conviveremos com personagens da primeva história de Roma: Anco, Tulo e Enéias e teremos, sim, condição de avaliar o que somos “pó e sombra”. É mister observar que, neste rápido poema, o tempo humano e o tempo da eternidade e/ou mítico se misturam e, nesse sentido, somos regidos pela piedade dos deuses que poderão nos dar algo mais: “Quem sabe se os súperos somam ao todo / de amanhãs um intervalo?”, contudo isto é uma incógnita não só para os mortais como também Hipólito ou Pirítoo.

A incerteza com a existência, a fugacidade da vida - pedra de toque destas odes - produziu como efeito um lugar comum da literatura ocidental, uma vez que nem os homens, tampouco os mitos são capazes de saber exatamente a sua extensão. A este “tópos” da literatura deu-se o nome de carpe diem, isto é, colha o dia. Assim, se não sabemos quanto tempo temos, gozemos a vida ao máximo. A origem desse lugar comum está na ode onze do primeiro livro:

Não procures – ímpio é saber – que fim
deuses te darão e a mim também, Leucônoe,
nem consultes babilônios números,
tanto melhor será tudo sofrer! ou
porque Jove deu vários invernos
ou último que já fere o Tirreno em
opostas rochas. Sê sábia, vinhos
filtra e suprime em breve espaço longa
espera. Ao falar, vida foge ínvida:
Colhe o dia e pouco crê no futuro.
(tradução de Paulo Martins)

A interlocutora do eu lírico, Leucônoe, é advertida para que não procure saber o tamanho de sua própria existência, antes deve ela tudo suportar tendo sido dado por Júpiter um dia apenas ou vários e, dessa forma, deve também buscar a verdadeira felicidade independentemente de qualquer coisa. Termina dizendo que a incredulidade nas coisas futuras é um sinônimo de sabedoria.

Na literatura de língua portuguesa, o autor que mais se aproximou de Horácio seguramente foi o heterônimo de Pessoa, Ricardo Reis. Todas as características elencadas para definir as odes do poeta romano podem ser facilmente encontradas nos poemas do modernista. Mais do que isto, pode-se dizer que Ricardo Reis alude sistematicamente Horácio, produzindo aquilo a que se convencionou chamar de intertextualidade como é o caso da ode 1, 38:

Da Pérsia, menino, adornos odeio;
Coroas com a tília atadas me cansam;
Não vás rebuscar a rosa em que partes
Tardia perdure.

Ao mirto simples não lavres lavores
Com zelo, peço: nem a ti que serves
Desdoura o mirto, nem a mim sob densa
Videira bebendo.
(tradução de João Angelo Oliva Neto)

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão Cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves,
E basta.
(Ricardo Reis)