segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Uma diferença obsessiva

Paulo Martins

Certo dia, uma colega, Tatiana Fadel, numa dessas salas de professores da vida, admoestou-me a refletir sobre a distinção entre o verbo obcecar e o substantivo obsessão que, para ela e, logo em seguida, para mim, tornou-se dúvida compulsiva. Enrubesci, gaguejei, não conseguindo, pois, lhe dar explicação etimológica para o problema. Pensei comigo que o fenômeno que ocorria entre essas duas palavras poderia ser similar, grosso modo, ao caso de estender e extensão que, apesar de possuírem a mesma raiz, isto é, o verbo extendo latino, em nossa língua, como bem aponta o Dicionário Houaiss, “a grafia oficial (...) exige o s, em confronto com o étimo latino que é com x, o qual, no entanto, foi mantido em extensão, extensivo, extenso etc.”. Ledo engano.

O verbo obcecar é do latim obcaeco ou occaeco, e assim sua origem é: o prefixo ob- (prep. ou prev.), cujo significado percorre largo espectro semântico que vai da idéia de posição, como em diante de, em frente de; passando por causa e conseqüência, como em por causa de ou em conseqüência de; chegando à idéia de oposição como, por exemplo, em contra. E, a base da palavra, seu radical, caecus, cujo significado inicial é cego, e também pode ter um significado objetivo como invisível, obscuro, tenebroso, oculto, obscurecido de espírito e, portanto, incerto e duvidoso. Assim o verbo em latim tem uma significação precisa em seu sentido literal: cegar, tornar cego, impedir de ver (física e moralmente). Em seu sentido figurado, por seu turno, quer dizer: tornar obscuro, ininteligível, escurecer e, por fim, curiosamente, cobrir e encobrir, paralisar ou privar de movimentos.

Esse mesmo verbo em nossa língua é menos usado em seu sentido físico, apesar de os dicionários o atestarem em primeira acepção, isto é, cegar ou tornar cego. Não é de outra forma que a professora Maria Helena Moura Neves o descreve em seu Guia de Uso do Português (2003). Assim, seu uso mais comum parece-me de matiz menos fisiológico e mais anímico: privar do discernimento, deslumbrar, ofuscar, perturbar e, daí, fazer perder a razão, desvairar, alucinar e, conseqüentemente, fazer incorrer em erro por absoluta falta de “lucidez do espírito”, com o perdão do trocadilho.

Curiosamente, o substantivo cognato desse verbo em Português, obcecação – pouco usado – possui, sim, significado menos fisiológico, não sendo atestado o senso físico, a não ser em sua última acepção que é marcadamente técnica, e, dessa forma, significa ação ou efeito de obcecar(-se), obscurecimento da razão, insistência numa determinada idéia, pertinácia excessiva. Entretanto, no jargão, médico, o significado “original” se mantém minimizado: cegueira parcial.

Lendo Florbela Espanca (1895-1930), poeta portuguesa, atentei que o obcecar e a obcecação, a despeito de não aparecerem explicitamente, surgem traduzidos em um de seus poemas, o soneto “Fanatismo” de 1923: “Minh’alma de sonhar-te, anda perdida/ Meus olhos andam cegos de te ver!/Não és sequer a razão do meu viver,/ Pois que tu és já toda minha vida!// Não vejo nada assim enlouquecida.../ Passo no mundo, meu amor, a ler/ No misterioso livro do teu ser/ A mesma história tantas vezes lida!// ‘Tudo no mundo é frágil, tudo passa...’/ Quando me dizem isto, toda a graça/ Duma boca divina fala em mim!// E, olhos postos em ti, digo de rastros: / ‘Ah! Podem voar mundos, morrer astros,/ Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...’. Parece-me que o fanatismo descrito no poema, não é outra coisa senão algo como uma obcecação, nascida do ato de obcecar, afinal “meus olhos andam cegos de te ver” e “Não vejo nada assim enlouquecida”.

Por outro lado, o substantivo obsessão, cuja raiz latina é obsessio, possui o prefixo ob- exatamente igual ao de obcecar, contudo sua base é outra: sessio é do verbo sido ou sideo e obsido ou obsideo significam atacar, invadir, sitiar, ocupar, já obsessio, ação de sitiar, cerco, bloqueio. Vale salientar que a dupla etimologia, em obsido ou em obsideo, produz uma pequena diferença, já que o segundo termo significa primeiramente estar sentado ou estar instalado e, em sua última acepção, apresenta a possibilidade figurada de apoderar-se de e dominar. Fato esse que não ocorre com obsido. Daí, me parece ser a segunda possibilidade mais provável e não a primeira. Vale dizer que os maiores etimologistas da Língua Latina, A. Ernout e A. Meillet, em seu Dictionnaire Étymologique de La Langue Latine, não abonam esta discussão.

A questão em Português é interessante, pois que não há registro do termo obsessão na acepção latina física, ou seja, a ação de sitiar. Antes, apenas o senso figurado de obsideo nos chegou por viés diferenciado, por assim dizer, esdrúxulo. Nesse sentido, a obsessão significa: 1) suposta apresentação repetida do demônio ao espírito, 2) apego exagerado a um sentimento ou a uma idéia desarrazoada, 3) motivação irresistível para realizar um ato irracional; 4) compulsão, ação de molestar com pedidos insistentes; impertinência, perseguição, vexação. Seu adjetivo, por sua vez, ganha contornos patológicos e, assim, aquilo que é relativo à ou próprio da obsessão, se aplicado ao humano, esse granjeia uma neurose e passa a ser um obsessivo-compulsivo.

Destarte, temos a explicação absolutamente razoável da confusão entre o obcecar e a obsessão, já que o campo semântico dos termos pode interagir numa intersecção entre eles. Isto é, se tomarmos, o sentido de obcecar como privação da visão racional sobre as coisas, ou, simplesmente, sermos tomados por uma obcecação, é possível que estejamos a um passo de uma obsessão, tornando-nos obsessivo-compulsivos.

Por outro lado, a obsessão pode, ao invés de caracterizar certa patologia anímica, pode ser fruto de certo sentimento a que os mais sensíveis, creio, chamam amor ou paixão. Como aquele que privava Bentinho de bom senso diante dos olhos de ressaca de Capitu. De forma inovadora na história do Romance Moderno, os olhos de Capitu deixam de ser reflexos da alma, e, portanto, passivos, para provocar, e daí, ativos, a cegueira anímica e a privação da razão do narrador, Bentinho. Nesse sentido é melhor deixar que esses, os sensíveis, nos falem:

Assim como fui para casa naquela primeira noite sem nenhuma satisfação, apenas com uma sensação de tristeza e resignação, muitas e muitas vezes voltei para casa em outros dias com a certeza de que era apenas um dentre muitos homens – o amante favorito do momento. Esta mulher, que eu amava tão obsessivamente, se acordasse à noite, imediatamente encontrava sua imagem em meu cérebro e desistia de dormir, parecia dedicar todo o seu tempo a mim. E, no entanto, não conseguia confiar: no ato do amor eu podia ser arrogante, mas, sozinho, bastava que me olhasse no espelho para ver a dúvida, na forma de um rosto marcado e de uma perna aleijada – por que eu?” (Greene, Graham – Fim de Caso, p.58)