GOMES Jr., Guilherme Simões – Palavra Peregrina. O barroco e o pensamento sobre as artes e as letras no Brasil. São Paulo: Edusp, Educ e Fapesp. 1998.
Paulo Martins
Desde muito tempo, pessoas ligadas às letras e à história debruçam-se sobre a questão do barroco. Estilo? Concepção artística? Prática letrada? Corrupção, deformidade, contrapartida, degeneração do clássico? Excesso? Tendência estética? Volúpia? Tormento? Sensualidade? Atitude, modo de governar, de agir? Referências ao termo multiplicam-se com o passar do tempo, e a etiqueta pregada ao conceito, que interessantemente é posterior ao tempo de sua prática, avoluma as possibilidades de conceituação daquela prática artística, temporalmente circunscrita aos séculos XVII e XVIII, que, em certos aspectos, se distancia do tipo de produção do renascimento e, noutros, se filia.
O percurso do termo associado à elaboração do conceito e ao resultado pretendido como efeito de produção artística, no Brasil é o fulcro central de Palavra Peregrina de Guilherme Simões Gomes Jr. que acaba de ser lançado pela EDUSP, em co-edição com a EDUC e com apoio editorial da Fapesp.
O ponto de partida do livro é o epicentro de polêmicas geradas a partir da conceituação do termo barroco e sua conseqüente apropriação pela crítica. Um caso mais próximo: aquilo que se chamou de “o seqüestro do barroco” , ocorrido com o lançamento do livro homônimo de Haroldo de Campos na década de 80, no qual é discutida a não-inclusão do barroco em A Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido.
Para explicar a questão, Simões Gomes Jr. propõe a arqueologia do termo barroco e tudo que deriva de sua utilização. É dessa forma que reitera a não-aplicação do termo como referência a certo tipo de produção artística coetânea, isto é, os barrocos não denominavam barroca sua arte. Dessa acertiva fundamental, tudo o que se convencionou chamar barroco carece de mediação e reflexão cuidadosas que devem revestir a observação de critérios que nortearam a aplicação desse conceito na arte produzida em dois séculos, o XVII e parte do XVIII.
O percurso delimitado pelo autor, neste texto de grande importância para o estudo crítico das letras e das artes no Brasil, observa a produção crítica do início do século dezenove, com o advento da revista Minerva, cujo colaborador mais conhecido entre nós, talvez seja Gonçalves de Magalhães (Suspiros poéticos e Saudades foi recentemente republicado), até a década de 50 deste século, com o trabalho dirigido por Afrânio Coutinho com a colaboração de inúmeros intelectuais em a Literatura no Brasil , obra em seis volumes, da qual vale salientar o ensaio acerca do barroco, assinado pelo próprio Coutinho. Dentro deste recorte ilustrado, Simões insere também – como não poderia deixar de ser – a discussão em círculos internacionais gerados a partir dos escritos de Wölfflin no século XIX (Renascença e Barroco – 1888) que alimentam as querelas estéticas em torno da questão na Europa. Vale dizer que observa, por outro lado, textos coetâneos ao objeto como os de Gracián e Tesauro, preceptistas, até hoje, muito importantes para a avaliação do barroco.
Assim, Palavra Peregrina divide-se em duas partes, subdivididas, ambas, em outras duas. A primeira diz respeito à especificidade da controvérsia do barroco no Brasil e uma segunda em que discorre acerca da cultura do barroco em sem sentido mais amplo.
Na primeira ecoam as observações de Araújo Porto Alegre, brasileiro, pioneiro ao analisar as questões concernentes a esse assunto; as de Mário de Andrade e aqueles que o autor chama de “modernistas áticos”; as de especialistas da década de 30 e, por fim, as de Lorival Gomes Machado.
Na segunda metade da primeira parte, Simões Jr. atenta para o desenvolvimento da crítica brasileira contemporânea, resgatando Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Sérgio Buarque de Holanda e, como sói acontece, Antonio Candido.
Os apontamentos acerca da cultura do barroco, parte mais geral da obra – destaque-se, assim, seu caráter indutivo – detém-se, no rastro de Maravall (A cultura do barroco – SP, 1998, já comentado neste caderno) das relações político-culturais que cercam a produção artística do período e as características mais gerais do estilo e da língua utilizados, por exemplo, por Gôngora e Garsilaso.
No que concerne aos primórdios da conceituação no Brasil, Araújo Porto Alegre (colaborador de Minerva) comprova a tese da não-preexistência do termo e conseqüente juízo de valor sobre o mesmo, ao discorrer sobre as práticas artísticas dos séculos XVII e XVIII, inserindo adjetivações sui generis às pinturas de Manuel da Costa: “espécie de Gôngora acromático, apóstolo dos delírios borronímicos” na qual acumula-se o pejorativo porquanto tanto Gôngora como o arquiteto Borromini são sinônimos de bizarria e ridículo para a escola neoclássica francesa à qual Araújo filia-se.
A partir do início do século XX, inicia-se certa recuperação do conceito com as proposições de Ricardo Severo sobre a arquitetura colonial do XVII. “Suas idéias certamente não caíram no vazio”. Mário de Andrade propõe a si a tarefa de analisar com perspicaz atenção a cultura material do período, redescobrindo-a e valorizando-a, dentro do projeto modernista que opta por olhar para dentro do Brasil. Nesse momento decisivo, contudo, a conceituação barroco possuía ainda um caráter crivado de negatividade que limitava suas qualidades ao ornato, à elocução portanto, e o desqualificava no que diz respeito à táxis, à disposição, retoricamente falando.
Segundo Simões Gomes Jr., no final da década de 30, com a fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), definitivamente, se sistematiza o conceito, apesar de não haver consenso na formulação. “Novo patamar na reflexão sobre a história da arte no Brasil foi estabelecido”. “Uma rápida evolução do debate” é percebida tanto no que se refere à palavra em si – barroco, como ao próprio conceito.
Assim, os escritos de Hannah Levy e de Roger Bastide (ambos de 1941) consolidam as tendências da década anterior, propondo a primeira uma reciclagem das principais teorias sobre o assunto (Wölfflin é fundamental) e o segundo, introduzindo categorias sociológicas, quando vaticina que “não é a atividade econômica, a produção, o comércio, que estimula as artes, mas o ócio que as favorece”.
A questão do barroco encontra finalmente a grande síntese em Lorival Gomes Machado da Universidade de São Paulo, pois é ele que procura integrar as diversas vertentes de explicação do barroco e superar seu caráter pretensamente antinômico. Contudo, esta síntese dirigia-se especificamente às artes figurativas. Nesse sentido, para o autor, o crítico austríaco, Otto Maria Carpeaux, é crucial, porque instaura sistematicamente a tentativa de desfazer o equívoco romântico e neoclássico de entender o conceito (maneirismo, gongorismo, preciosismo, etc.) como expressão do mau gosto e da decadência da tradição renascentista nas letras. Vai além, tendo como ponto de partida Wölfflin, explicita a concepção de barroco como mentalidade da vida social e cultural da Europa do XVII. Destarte, para Carpeaux: “Seu pessimismo [do barroco], seu caráter dilacerado, suas antíteses radicais entre o divino e o mundano, entre o hermético e a teologia católica, no plano do fazer político, não são mais do que o resultado da crise que atravessa a época barroca”.
Mostrando-se um excepcional leitor, Simões Gomes Jr. adverte sobre as incongruências de A. Coutinho em Aspectos da Literatura Barroca, obra que, seguramente, ainda hoje está no centro de muitas intervenções acadêmicas e, principalmente, didáticas. Ele nota que, ao mesmo tempo que AC associa ruptura renascentista e verticalidade medieval contrareformista, no viés de uma teoria wölffliana simplificada, da qual surge um homem barroco saudoso e seduzido, o estilo barroco segue uma evolução própria conforme as leis imanentes às próprias formas artísticas. Dessa maneira, o texto de Coutinho, segundo o autor, é o escamoteador de diferenças que produz aparência de complementaridade entre proposições diversas. Isto pode ser considerado algo muito sério.
Seguindo um percurso presumidamente cronológico, encontra-se a seguir, talvez, a parte do livro mais atraente e significativa, pois o autor resgata o pensamento de um de nossos mais brilhantes intelectuais: Sérgio Buarque de Holanda, que é revisitado em toda sua trajetória formadora, acentuando pressupostos teóricos que deságuam no seu posicionamento sobre o barroco. Nesse sentido, mostra-se imperiosa a formulação de SBH: “o barroco enlaçava-se à Retórica, à Filosofia e não menos, à Lógica da época, na comum aspiração de servir à Verdade e submeter ao seu jugo os corações e a sabedoria dos homens. Essa a soberana missão do poeta, missão que ele aceitava, não com revolta mas com entusiasmo, porque deveria assegurar ao seu esforço uma dignidade sagrada e perene”.
O conteúdo dessa observação promove um posicionamento distanciado do historiador em relação aos seus pares, pois dissocia o barroco de certa afinidade, pretendida por alguns, entre sua época e o início do século XX, além de dirimir qualquer possibilidade de aferição do barroco, tendo em vista os ditames da nova crítica (new criticism). “Fica claro, portanto, que quando Sérgio Buarque, afastando-se dos critérios de nacionalidade, começa a tratar da poesia no Brasil colonial, e para isso serve-se de categorias como Renascimento, Barroco, Neoclassicismo, o conteúdo desses termos não é apenas estilístico. Mais do que isso, dizem respeito a complexos de cultura que devem ser estudados em múltiplas dimensões”.
No capítulo dedicado a Antonio Candido, Simões Gomes Jr. faz um trabalho memorável, porquanto compreende todas as variáveis que nortearam a não-inclusão do barroco na Formação da Literatura Brasileira, o famigerado “seqüestro”. Basicamente, a tese de Candido, que já fora em outros momentos discutida exaustivamente, é retomada numa digressão em certa medida fastidiosa e até certo ponto desnecessária. Contudo, o autor revitaliza a questão ao tratar do comentário à poesia de Cláudio Manuel da Costa, que nas palavras de Candido possibilita "rever em sentido favorável o espírito cultista".
É nessa esfera que se encontra um excelente esclarecimento acerca dos termos cultista e culteranista que são basilares na compreensão que a Formação oferece sobre o barroco e, portanto, a posição de Antonio Candido. Enquanto, o primeiro termo propicia uma avaliação positiva, o segundo continua a ser, como no século XIX, reflexo de defeito. Diz Candido: "[Cláudio Manuel da Costa] encontrou a possibilidade de manter muito da sua vocação cultista encontrando ao mesmo tempo a medida que a conteve em limites compatíveis com a repulsa ao desbragado culteranismo da decadência."
Enfim, Palavra Peregrina nos oferece além da demonstração do estado da questão do barroco nas artes e letras brasileiras , excepcional síntese do pensamento estético dos séculos XIX e XX, que possibilita ao leigo nível de compreensão histórica coerente e ao estudioso interessante roteiro das mais diversas vertentes teóricas que plasmam a intelectualidade brasileira em dois séculos.
Mais além, o presente trabalho de Guilherme Simões Gomes Jr. é capaz de produzir efeitos sensíveis no círculos acadêmicos, onde até hoje encontramos avaliações equivocadas acerca desse conceito que, vale dizer, geram problemas na reprodução do saber em níveis mais elementares.
Ademais, Palavra Peregrina é um ótimo nome, pois associa arqueologia do conceito à peculiaridade característica de práticas artísticas (barrocas), que utilizam da construção da metáfora como marca distintiva de engenho e, ainda, salienta a idéia de percurso e desenvolvimento contínuo, fato essencial para o mundo do conhecimento.
Ademais, Palavra Peregrina é um ótimo nome, pois associa arqueologia do conceito à peculiaridade característica de práticas artísticas (barrocas), que utilizam da construção da metáfora como marca distintiva de engenho e, ainda, salienta a idéia de percurso e desenvolvimento contínuo, fato essencial para o mundo do conhecimento.