segunda-feira, 25 de junho de 2007

As ameaças do mito

(texto publicado na Revista Bravo!, No. 45, Julho de 2001. pp. 132-5.)

Por Paulo Martins

Encenada pela primeira vez em 431 a.C., Medéia – obra absoluta de Eurípides – talvez seja uma das mais discutidas, relidas e revisitadas da história do teatro ocidental. Com argumento fundado na última parte da lenda de Jasão e Medéia, cujo ciclo inicia com viagem dos Argonautas para conquistar o velocino de ouro e termina justamente com a sina da filha de Eetes, rei da Cólquida, Medéia representa o limite a que pode chegar a alma feminina diante da recusa amorosa. Esse mesmo tema, após sua primeira apresentação, ou melhor, sua reconstituição em forma literária, foi retomado pelo menos três vezes por outros autores: Sêneca, no primeiro século de nossa era; Corneille no século 17; e, mais proximamente, na década de 70, com a montagem da Medéia Brasileira de Paulo Pontes e Chico Buarque, no musical Gota D’água. Em todas versões, a magistralidade do texto intenta função precípua da tragédia: o efeito catártico e, justamente por isso, nos faz refletir acerca da permanência dos mitos.
Fernando Pessoa já disse que “o mito é o nada que é tudo”. Isto é, se, de um lado, não passa de história, de caso, de fábula, de nada; de outro, é tudo, pois nos representa no âmbito do imaginário, a partir de ações que são típicas e, essencialmente, humanas, que se repetem ao infinito, independente das sociedades e épocas. É certo que os gregos antigos foram aqueles que mais adequada e vivamente entenderam o que isso significa, traduzindo e representando ações de homens em enfabulações poéticas, que além de servirem de modelos, chegaram a ser consideradas perniciosas, tamanha força vivaz possuíam - a crítica platônica à poesia comprova isso. Assim, são guias e exemplos típicos de ações sem idade e unívocas.
Não é de outra forma que sistematicamente os mitos são reaproveitados, reutilizados e aplicados às formas mais diversas de expressão que podem ser científicas – Freud e Jung são exemplares - ou literárias e plásticas, e, aqui se avolumam nomes a serem lembrados: Velázquez, com Las Hiandreras, Racine, com Fedra, ou Joyce, com Ulisses. O que se nota, portanto, é a adesão dos mitos à vida. E por isso, Pessoa já advertira que, paradoxalmente, “Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre” Por isso, sempre será inevitável sua releitura e “redicção”. Afinal, eles, os mitos, nos advertem, ameaçam, comovem e convencem que humanos somos e iguais seremos sempre, suscetíveis a inúmeras formas e tipos de ação e reação, impostas pelo inefável e entediante convívio humano e suas conseqüências mais banais, ou mesmo, as mais inusitadas.
Eurípides entre os trágicos, apesar da discordância aristotélica que o desqualifica se comparado a Sófocles, é aquele que aos nossos olhos românticos, modernos, pós-modernos, pós-tudo ou nada mais consegue traduzir a essência humana - se é que ela existe. Afinal, sempre estamos diante surpresas. Ele produz a combinação entre imaginário e real. Faz com que a lenda escorra na realidade e passe a perpetrá-la: tem-se a nítida impressão que seus textos não contam uma lenda, mas algo real que pode se tornar uma lenda. E essa característica de Eurípides é facilmente observável em Medéia.
Construída a partir de caracterização interessante, seu nome é cognato do verbo grego que indica engendrar, calcular, produzir, tramar, maquinar, Medéia nasce na Cólquida, região dos ungüentos, dos tônicos e dos venenos. Sua habilidade “farmacêutica” é notória e dela se utiliza, por vezes, para conduzir suas ações. Por outro lado, suas relações de parentesco não lhe comovem, não se inibe diante da possibilidade de matar um irmão ou trair o pai. Sempre o que lhe move é o imponderável, o inesperado.
Pontilhada de momentos patéticos, a tragédia adquire contornos interessantes uma vez que é desvendado logo de início o fato motivador do enredo (o repúdio de Jasão), porém a ação é conduzida para a catástrofe aos poucos e os acontecimentos soam absolutamente naturais como frutos próprios da necessidade. A protagonista, epicentro do enredo, mescla momentos de fúria –como os gritos e maldições que saem do interior de sua casa ao ser rejeitada (“Ouvi a voz, ouvi os gritos dela,/ da infortunada princesa estrangeira”) – com os de uma absoluta racionalidade – como aquele em que se põe diante do coro a falar sobre a sorte das mulheres em geral e de sua própria (“Das criaturas todas que têm vida e pensam/ somos nós, as mulheres, as mais sofredoras”) .
Essa mescla de horrores e racionalidade é a característica fundamental da personagem. Se, de um lado, se vê fragílima diante do abandono, de outro, é forte o suficiente para engendrar e produzir “remédios” para o seu mal. Se, de uma parte, é capaz de voltar-se contra o pai e o irmão, de outra, é capaz de construir aos poucos “em doses homeopáticas” sua vingança contra Jasão, seu grande amor. Tais contrastes, que despontam das ações, produzem efeito singular na personagem. Mas, o que a audiência deve pensar sobre Medeia, será fruto do ódio ou da compaixão?
O coro, que, como Jean-Pierre Vernant já demonstrou, é um elemento passível de ambigüidades, ocupa a posição da cidade de Corinto. Apesar disso, torna-se seu cúmplice e nós, audiência, passamos a ocupar o seu lugar. Talvez, essa seja a deixa. Se o coro fosse de homens, certamente, se colocariam a favor do rei e sua filha, e não contra. O coro, além de possibilitar o contraste natural das ações, também é, em si, contrastivo. E nós que posição ocupamos diante dela? A resposta é dupla: a favor e contra.
Medéia encontra seu caminho, pois antes não sabia o que iria fazer para se vingar. Mais uma vez opera o confronto de duas possibilidades concretas. Dubiedade e duplicidade, esse é o sentido. Seus dois filhos serão, ao mesmo tempo, vingança e instrumento de vingança. Ao enviar seu presente de escusas a Creúsa e a Creonte, por seu intermédio, utiliza mais uma vez suas habilidades de feiticeira, as mesmas que selam o destino dos próprios filhos, pois ao tomarem contato com o veneno do presente, não poderão mais sobreviver. Simultaneamente, apesar do amargor e tristeza que isto lhe traz, mata-os e finaliza a segunda parte da vingança, na qual os meninos eram a própria vingança contra Jasão.
Movida por um amor desmedido, o mesmo que a colocou contra o próprio sangue duas vezes, Medéia representa e é engendrada pelo binômio amor e ódio, o limiar de dois sentimentos, de duas afecções, que ora são patéticas ora éticas. Além disso, simboliza em essência a capacidade de reação transformadora e de conversão, utilizando-se de sua absoluta racionalidade para dar fim ao seu sofrimento irracional. Na batalha de sua alma, entrechocam-se o desejo de vingança e o amor pelos filhos. Uma de suas últimas falas para Jasão é: “Chamas-me agora, se te der vontade, monstro e leoa. Quis simplesmente devolver teus golpes ao meu coração como podia”.
Assim, seja pela absoluta humanidade, seja pela grandeza de sentimentos que dissemina, Medéia pode ser caracterizada, como quase toda obra de Eurípides, retrato fiel da alma humana, com seus contrastes e devaneios, com sua fúria e seu amor. Logo, pode-se observar nesta tragédia uma mudança de dicção da tragédia grega, pois, se em Ésquilo ou em Sófocles assistimos ao desvelar do mundo absolutamente mítico, no qual os homens cedem lugar aos heróis e deuses que operam ações superiores do ponto de vista de Aristóteles; nela, o que observamos é o espaço do homem como nós, ou melhor, do mito como homens, com limites e profundo realismo de sentimentos.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Saíram os finalistas do 49º Prêmio Jabuti 2007

CBL Informa – 20/06/2007

Em apuração realizada no dia 19 de junho, na Câmara Brasileira do Livro, foram definidos os 10 primeiros colocados das 20 categorias do 49º Prêmio Jabuti 2007(abaixo).
A apuração da segunda fase, na qual serão conhecidos os vencedores deste ano, está confirmada para o dia 15 de agosto, às 10h, também em sessão aberta aos associados, ao público e à imprensa na sede da entidade.
Para o curador José Luis Goldfarb, que há mais de 20 anos é responsável pelo Jabuti, esta fase demonstrou muito equilíbrio e reflete que os jurados terão muito trabalho na próxima, onde serão conhecidos os vencedores. “Tivemos um ano bastante disputado, mesmo com notas fragmentadas e sem os jurados se comunicarem, aconteceram diversos empates. O 49º Prêmio Jabuti 2007 promete uma competição muito acirrada”, avalia Goldfarb.
A cerimônia de premiação do 49º Prêmio Jabuti será na Sala São Paulo da Estação Júlio Prestes, no dia 31 de outubro. Mais informações pelo tel: (11) 3069-1300 ou pelo e-mail: jabuti@cbl.org.br.

Vamos ao que interessa:

1. Categoria Melhor Tradução:

FALO NO JARDIM: PRIAPÉIA GREGA, PRIAPÉIA LATINA
JOÃO ANGELO OLIVA NETO
EDITORA DA UNICAMP

ESTICO DE PLAUTO
ISABELLA TARDIN CARDOSO
EDITORA DA UNICAMP

O CAVALO PERDIDO E OUTRAS HISTÓRIAS
DAVI ARRIGUCCI JR.
COSAC NAIFY EDIÇÕES LTDA.

XENOFANIAS: RELEITURA DE XENÓFANES
TRAJANO VIEIRA
IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

2. Categoria Crítica/Teoria Literária

BILAC, O JORNALISTA (VOL. 1, 2 E 3)
ANTONIO DIMAS (ED.)
IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

PASSOS DE DRUMMOND
ALCIDES VILLAÇA
COSAC NAIFY EDIÇÕES LTDA.

POR MINHA LETRA E SINAL: DOCUMENTOS DO OURO DO SÉCULO XVII
HEITOR MEGALE
ATELIÊ EDITORIAL LTDA.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Odorico Mendes, beleza e engenho para verter os clássicos

(texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 30/01/1999)

por Paulo Martins


“Consola-se o Maranhão, também à Atenas,
que lhe deram por antonomástico, nunca
jamais lhe voltou o tempo de Péricles”
José Veríssimo


Falar acerca de Manuel Odorico Mendes (1799-1864) é algo temerário, pois para parte da crítica literária, seu nome não vale mais do que uma nota de rodapé num manual de história da literatura brasileira ou, no máximo, a sua presença restringe-se como exemplo de mau gosto; por outro lado, para outra parte desta crítica seu nome é sinônimo de pioneirismo, habilidade técnica, audácia e competência artística.
Ao primeiro grupo filiam-se nada mais nada menos do que Antonio Candido e Sílvio Romero; ao segundo, Silveira Bueno, Haroldo de Campos, Antonio Medina Rodrigues, entre outros. Nesse sentido, não há como balizar nossa opinião sobre a obra de OM, pautando-nos em opiniões alheias, porquanto tanto um grupo como outro exigem respeito e atenção.
Maranhense, contemporâneo e amigo de Gonçalves Dias e mestre de Sousândrade (No seu Guesa Errante, o chamou de “pai rococó”), pouco nos deixou de sua obra poética, propriamente dita. Isto, se imaginarmos que o território da tradução poética não seja um gênero literário carecedor da mesma atenção e rigor que os gêneros tradicionais recebem por parte da teoria literária. Como esta questão parece-nos pacificada, a obra de Odorico Mendes deve ser considerada ingente e digna de ser observada atentamente.
Filiado ao pós-arcadismo ou ao pré-romantismo, operou uma tarefa sem precedentes nas letras portuguesas: a tradução poética das epopéias homéricas - Ilíada (1874) e Odisséia (1928 – reeditada por Antonio Medina Rodrigues, em 1992 – Edusp) e de todo o Virgílio que nos restou da Antigüidade - As Bucólicas, As Geórgicas e A Eneida. A este último grupo de obras foi dado o nome de Virgílio Brazileiro (1854 – única obra publicada em vida), algo curioso, pois renomeia as obras clássicas como se suas fossem. E, de fato, são.
As traduções de Homero e Virgílio até hoje são marcos para os estudos clássicos nos países de língua portuguesa. Primeiramente pela destreza com o verso decassilábico, em segundo, pela concisão, em terceiro pelo indiscutível conhecimento das línguas de origem, o grego e o latim, como a de chegada, o português.
Cabe aqui tornar público um caso muito comentado: Certa feita, uma pessoa se dirigiu a um conceituado livreiro e lhe encomendou uma tradução de uma das épicas homéricas, mais do que rapidamente, o livreiro, conhecedor da fama de OM nos meios acadêmicos, lhe trouxe as traduções do maranhense. Uma semana após, aquele que havia encomendado, assustadoramente, devolveu a obra, afirmando que para ler “aquilo” mais fácil seria aprender o grego antigo.
Este, talvez, seja o ponto nevrálgico das discordâncias sobre Odorico Mendes. Seu português é difícil, muito difícil, o que o torna quase intransponível, contudo, ainda assim, impecável. Tanto isto é verdade que José Veríssimo afirmava que suas versões eram fidelíssimas, contudo de leitura custosa.
Para assimilá-lo são necessárias calma e persistência – características dos bons leitores – , da mesma forma que para ler Guimarães Rosa, James Joyce, Saramago, Ezra Pound, T.S. Eliot e Camões também são necessárias as mesmas qualidades. Porém, passado o estágio inicial de adaptação, o leitor toma contato com preciosidades poéticas insuperáveis até hoje, mais de um século após sua publicação. Além do mais, há trechos onde a beleza e o bom gosto superam, de longe, a mínima dificuldade como, por exemplo, o símile homérico (Ilíada, Canto VI) acerca da efemeridade da vida:
“(...) Como as folhas somos;
Que umas o vento as leva emurchecidas,
Outras brotam vernais e as cria a selva:
Tal nasce e tal acaba a gente humana.”

Dessa maneira, os qualificativos depreciativos aplicados a Odorico Mendes nos parecem excessivos, principalmente, quando Sílvio Romero, afirma que são “monstruosidades, escritas em português macarrônico”; ou quando Antonio Candido o julga “bestialógico” ou considera sua obra um “preciosismo do pior gosto” ou um “pedantismo arqueológico”, ou um “ápice de tolice”.
O estranhamento por parte desses críticos reside ora na descontextualização da obra de OM, ora, o que é pior, na aplicação de conceitos anacrônicos que exigem do texto certa atitude que não lhe era exigida à época de sua composição, ora na falta do cotejo com os originais que faz saltar aos olhos as fantásticas soluções de tradução.
Daí soar perfeita a ponderação de Haroldo de Campos: “O pioneirismo odoriciano no enfoque dos problemas da tradução (tanto na prática desta, como nas notas teóricas que deixou a respeito) só poderá ser devidamente avaliado se pusermos em relevo, como traço marcante de todo o trabalho no campo, a concepção de um sistema coerente de procedimentos que lhe permitisse helenizar ou latinizar o português, em lugar de neutralizar a diferença dessas línguas de origem, restaurando-lhes arestas sintáticas e lexicais em nossa língua.”
No mesmo esteio, Antonio Henriques Leal (apud Bosi, 1983) afirma que “suas versões, estritamente literais, foram julgadas indigestas quando não ilegíveis; opinião discutível na medida em que o literalismo pode concorrer para a forja de um léxico novo e colar-se ao espírito do original.”
O que observamos, ao lermos as traduções de OM, é uma nítida intenção de projeto de tradução, fato esse somente levado em consideração no Brasil muitos anos após sua morte, quando tradutores como José Paulo Paes, Augusto e Haroldo de Campos, José Cavalcante de Souza, João Angelo Oliva Neto, Antonio Medina Rodrigues, Jaa Torrano e outros passaram a elaborar trabalhos de tradução que seguiam rigorosamente um projeto tradutório. Ou seja, Odorico é um mestre tradutor, avant la lettre. Isto, certamente, não foi considerado por seus detratores.
Há em seu trabalho, pois, linha condutora que é operada em todo o conjunto produzido. É coerente. Ademais, há, em seus textos traduzidos, um número sem fim de referências intertextuais que fazem despontar seu universo de leitura, sua paidéia. Poundianamente falando, seu paideuma torna-se visível. Assim, pode-se dizer que o resultado traduzido oferece mais que a simples transposição de um texto de uma língua para outra, antes, possibilita certo resgate crítico. Seria ele, Odorico Mendes, poeta, crítico e tradutor, simultaneamente, nos moldes que hoje em dia reconhecemos esta tríplice tarefa. O que o tornaria, no jargão letrado, um transcriador ou recriador.
Antonio Medina Rodrigues, bem salienta: “As notas [à tradução] compreendem não só observações sobre a obra completa dos grandes épicos, mas também sobre poetas como Camões, Ariosto, Milton, Tasso, Filinto Elísio, Chateaubriand, Chénier, Voltaire, Madame Staël etc., como referências comparativas, ligadas quase sempre ao esclarecimento de problemas direta ou indiretamene relacionados com a tradução.”
Porém, para evitar um quê de anacronismo crítico, OM simplesmente resgata o conceito antigo de emulação, na medida em que o processo inventivo, mimético por excelência, observa a produção textual anterior e a recicla como reflexo de modelo a ser seguido. Muita vez, ainda a citação é imediata, ipsis litteris, tal técnica, prevista retoricamente, cria certa cumplicidade entre autor e leitor, porquanto o primeiro cita para que o segundo reconheça, ludicamente.
Dessa forma, tanto para os mais modernos, como para os mais antigos, Odorico nisto é perfeito. No primeiro caso, agindo como transcriador que opera a tradição, formatando seu universo crítico. No segundo caso, tradutor que reconhece as práticas retóricas que passam pelo trinômio: inventar, imitar e emular.
Sob outro recorte, o grego em mais momentos do que o latim, ambas línguas de origem dentro do manancial de tradução do maranhense, oferece uma curiosidade interessante: a composição de palavras. Isto torna os textos homéricos extremamente concisos e com carga significativa diferenciada, uma vez que uma só palavra é composta de outras tantas. Assim, dentro de uma tradução, teríamos de usar em português uma frase para traduzir uma palavra.
Odorico foi o primeiro a solucionar este problema, criando inúmeros neologismos para aproximar o texto em português dos originais greco-latinos. Assim, surgem: infrugífero mar; altipotente Jove; celerípede Aquiles; olhiespertos gregos; nubicogo Saturno; arciargênteo Febo; Aurora dedirrósea; Nereida argentípede; auritrônea Juno; etc.
Tais epítetos, muito longe da bestialogia aferida por Candido, inserem-se, delicadamente no contexto, contribuindo com a fluidez desejada pelo épico, como nesta fala de Calipso na Odisséia (Canto V) :
“(...) Freme Calipso e rápido responde:
‘Cruéis sois todos, ínvidos, ciosos
De que em seu leito, às claras, uma deusa
Mortal admita e ame e aceite esposo.
Roubado Órion da Aurora dedirósea,
O invejastes, vós deuses, té Febe
Casta e auritrônia o derribou na Ortígia
Com brandas frechas;’ (...)”

Outra habilidade lapidar é o manejo com o verso decassílabo. Tanto as epopéias de Homero, como as obras de Virgílio haviam sido escritas utilizando o verso hexâmetro datílico (seis pés métricos cuja unidade mínima é o dátilo ou o espondeu), medida que se aproxima do alexandrino (doze sílabas poéticas). Odorico Mendes, entretanto, nos moldes renascentistas, opta pelo decassílabo (dez sílabas) – verso típico das epopéias em língua portuguesa (Cf. Os Lusíadas, O Uraguai e O Guesa). Afirma sobre esta questão Silveira Bueno em 1956, “Deu ao decassílabo toda a fluidez possível em tão pequena extensão de dez sílabas, movendo a cesura desde a quarta e oitava, acentuação par, até a de terceira e Sexta sílaba, acentuação ímpar.”
Esta opção lhe trouxe um problema significativo: a diminuição do espaço versificado. Ou seja, o poeta-tradutor além de adequar sua versão a uma língua menos concisa do que o grego e o latim, ainda se arvorou no direito de diminuir o espaço para efetivar sua tradução. Isto não é tudo. Suas traduções, limitadas pelo tipo de verso escolhido, ainda, são mais concisas que o original. OM consegue vestir um pé 42 num sapato 40 e o resultado lhe é excepcionalmente confortável. Isto é o resultado traduzido não deve nada em conteúdo e seu tamanho é menor que o original.
Assim, ao se fazer o cotejo com o original, facilmente, se observa a não-linearidade entre o texto de origem e o resultado final (a Odisséia no original possui 12106 versos, enquanto sua versão 9302) . Este feito, se, por um lado, dificulta a operação de comparação para aqueles que não tem acesso ao idioma de origem, por outro, assevera a indiscutível habilidade do mestre tradutor com o sistema de metrificação e com aquilo que se espera da boa poesia, concisão.
O mundo da tradução no Brasil, apesar de tentativas esparsas, constituí-se, ainda hoje, incipiente, principalmente, se forem observados os clássicos greco-latinos. Em outros países, mormente, os centrais, há aquilo que chamamos tradição da tradução. Somam-se, diacronicamente, séries de tradução de um mesmo texto. Dessa maneira, imperfeições, erros e titubeios – e afinal como diria Horácio até Homero dormita – são sanados de geração para geração.
Isto ainda não ocorre no Brasil, haja vista que para as obras homéricas só possuímos duas versões em verso (Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes), da mesma forma que para as obras de Virgílio são também escassas as possibilidades. Nesse sentido, mesmo que verídicas as afirmações depreciativas acerca do trabalho de OM (e não acredito que sejam), sua relevância já estaria posta à prova, pois ele foi o primeiro perpetuar no vernáculo as obras fundadoras da civilização ocidental, além de apresentar caminhos importantes na difícil vida do tradutor.
Ademais, deixemos que a dedirrósea Aurora faça os seus textos falar, pois somente o tempo e as letras podem comprovar sua importância primeva; além disso, fiat iustitia et pereat mundus! (faça-se a justiça ainda que o mundo pereça!).

segunda-feira, 18 de junho de 2007

As duas vidas do imperador

Folha de São Paulo, Mais, 17/06/2007, p. 9.


Biografias de César, escritas pelo latino Suetônio e o grego Plutarco, alternam censura e louvor ao líder romano
por PAULA DA CUNHA CORRÊA

Vidas de César" traz ao leitor duas biografias do imperador romano, uma pelo latino Suetônio, a outra pelo grego Plutarco, em acuradas traduções (bilíngües). As biografias de Plutarco (cerca de 50-120) e Suetônio (cerca de 70-130) inserem-se na tradição latina de coletâneas biográficas como as "Imagines" de Varrão (116-27 a.C.) e os "Homens Ilustres" de Cornélio Nepos (100-24 a.C.), obra inovadora na qual uma série de figuras memoráveis recebe tratamento sistemático: para cada romano, o autor oferece a biografia de um estrangeiro comparável.Nas "Vidas Paralelas", Plutarco desenvolve esse modelo ao compor, também aos pares, biografias de personagens gregas e romanas. Assim, a biografia de Júlio César se espelha na de Alexandre, o Grande.Essas duas "Vidas" de César nos chegaram sem os parágrafos iniciais, que tratavam, provavelmente, dos primeiros anos do futuro imperador. A narrativa de Suetônio começa quando, aos 16 anos, César perde e pai; a de Plutarco, com as hostilidades entre Sila e o jovem César.

Assassinato teatral

Ambas narram a sua carreira política e a conquista do império até o assassinato teatral no Senado e a "divinização" pós-morte de César sob forma de cometa (Suetônio) ou por ser caro aos deuses (Plutarco). Notáveis, porém, são as diferenças entre as duas biografias, salientadas pela sua publicação conjunta neste volume que torna a comparação inevitável.Suetônio alinhava inúmeras citações e referências tão eruditas quanto minuciosas, compiladas graças a seu ofício como administrador das bibliotecas públicas e dos arquivos imperiais de Trajano e chefe da secretaria do príncipe no governo de Adriano.

Biografias de César, escritas pelo latino Suetônio e o grego Plutarco, alternam censura e louvor ao imperador romano CésarSe o ritual fúnebre (o encômio ao morto e a inscrição que registrava o nome, feitos e cargos por ele exercidos, guardada pelos familiares) constitui o embrião do gênero biográfico romano, a narrativa de Suetônio está distante de suas origens.

Pois, apesar de louvar César por sua oratória, clemência e comando militar, entre virtudes e vícios, o biógrafo confere relevo aos últimos. Escarafuncha toda sorte de documentação para expor detalhadamente os mais embaraçosos aspectos pessoais de César, como o homossexualismo passivo, que motivou o apelido "Rainha da Bitínia" e o seguinte bordão, entoado pelos soldados que o escoltavam no desfile triunfal da Gália:

"César submeteu as Gálias, Nicomedes submeteu César:Aqui triunfa agora César que submeteu as Gálias,Não triunfa Nicomedes que submeteu César."

Objeto de censura, conforme Suetônio e suas fontes, são também os métodos empregados por César para a conquista e a manutenção do poder.Espetáculos e banquetes nababescos, duplicação dos soldos das legiões visando a fidelidade das tropas e o apoio popular, "conchavos para ser dispensado das leis", saque de cidades aliadas, rapinas e sacrilégios, desvio de ouro do Capitólio, tráfico de influência, concessão de favores...

Com a permuta dos nomes próprios, pensaríamos estar lendo crônicas contemporâneas, não fosse a extraordinária bravura de César, entre outras virtudes, como o seu estímulo a médicos e professores, que o distinguem dos ilustres governantes atuais.

Exaltação

Se a biografia de Plutarco peca por imprecisões factuais, tornando-se presa fácil para historiadores positivistas do século 19, a sua dicção é elevada e a urdidura narrativa mais fina e dramática que a de Suetônio.O moralista grego fecha os olhos para grande parte dos vícios, compondo antes um encômio a César, exaltado como modelo paradigmático de comandante e imperador.

Além de alegar parcos conhecimentos da língua latina, Plutarco não tinha acesso à vasta documentação consultada por Suetônio. Mas, caso a tivesse em mãos, certamente não faria dela o mesmo uso, porque a sua biografia é mais filosófica do que histórica, voltada particularmente para questões éticas.

"Foi para os outros que comecei a escrever as "Vidas", mas vejo que persevero e afeiçôo-me também a elas já em benefício próprio, servindo-me da investigação ("historía') como um espelho no qual busco de algum modo adornar e ajustar a minha vida em conformidade com as virtudes daqueles (homens). Pois assemelha-se antes ao convívio quando, ao receber e entreter cada objeto da investigação como um convidado, contemplamos "o porte e as qualidades" para eleger de suas ações o mais importante e belo de se conhecer. "Ah, que graça maior que esta receberias", mais eficaz para a correção do caráter?"

PAULA DA CUNHA CORRÊA é professora de língua e literatura grega na USP e autora de "Armas e Varões - A Guerra na Lírica de Arquíloco" (Edunesp).

VIDAS DE CÉSAR
Autores: Suetônio e Plutarco
Tradução: Antônio da Silveira Mendonça e Isis Borges Belchior da Fonseca
Introduçoes: Antônio da Silveira Mendonça e Pedro Paulo A Funari
Editora: Estação Liberdade(tel. 0/xx/11/ 3661-2881)
Quanto: R$ 41 (270 págs.)

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Doação da Biblioteca de Thomas Rosenmeyer, helenista da Universidade da Califórnia (Berkeley)

Acabo de receber um e-mail de Giuliana Ragusa, professora de Língua e Literatura Grega da USP, com uma excelente notícia àqueles que se dedicam aos Estudos Clássicos no Brasil. A íntegra:

"Caros Colegas das áreas de Grego e de Latim,

É com grande alegria que escrevo este email, neste final de domingo.Permitam-me um breve histórico para contextualizar a notícia que tenho a dar.

Durante a “Bolsa Sanduíche” de que recentemente desfrutei, trabalhei com Patricia Rosenmeyer, Profa. Dra. do Departamento de Letras Clássicas da Universidade de Wisconsin e especialista em lírica grega, que conheci quando deminha primeira experiência em Madison, naquela universidade, em 2000, no período em que recolhi o material para meu mestrado.

Desta vez, tive o prazer de conhecer em dezembro o pai de Patricia, Thomas Rosenmeyer, renomado helenista da Universidade da Califórnia (Berkeley) que, infelizmente, veio a falecer no início de fevereiro; o seu obituário, que fala um pouco sobre suas atividades profissionais, pode ser lido no link abaixo:

http://classics.berkeley.edu/news/articles/story.php?id=10

A boa notícia que venho comunicar a todos é que Patricia, com quem acabo de falar ao telefone, decidiu oferecer a biblioteca particular de seu pai para a nossa biblioteca na USP; ela manterá para si apenas os livros que diretamente interessam aos seus trabalhos. Ela não soube dizer quantos livros são, mas elescobrem as paredes de três cômodos da casa de seu pai; logo, deve se tratar de uma grande quantidade de livros.

Segundo Patricia, receberemos periódicos, fontes primárias e secundárias das áreas de grego e latim, nas quais seu pai atuava; filosofia, história, oratória são alguns dos assuntos do acervo. As despesas com o envio dos livros também estão incluídas na doação, para a qual o único pedido que ela me fez foi o de que coloquemos nos livros "bookplates" que ela mesma me enviará, com dizeres que marcam a doação à USP em memória de Thomas Rosenmeyer.

A generosidade desse ato me parece digna de reconhecimento, e gostaria de sugerir que se registre por escrito, formalmente, o merecido agradecimento a Patricia.

Espero contar com o apoio de nossa biblioteca para receber um acervo irrecusável que certamente deve conter um bom número de obras que não temos eque nem estão disponíveis para compra.

Um abraço a todos,

Giuliana"

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Lei Rouanet para templos religiosos?! Você é contra? Sim? Então assine!

“O Senado está a um passo de aprovar um projeto de lei, de autoria do senadorMarcelo Crivella (PRB-RJ), sobrinho de Edir Macedo, fundador da IgrejaUniversal do Reino de Deus) que incluiria suas igrejas entre as beneficiáriasdo Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). Mais conhecida como "Lei Rouanet", aprovada em 1991 pelo Congresso Nacional, o Pronac permite queempresas invistam em projetos culturais até 4% do equivalente ao Imposto deRenda devido. O projeto chegou a ser aprovado em caráter terminativo naComissão de Educação, mas um recurso para que fosse apreciado pelo plenárioimpediu que seguisse para a Câmara. Uma emenda apresentada pelo senador SibáMachado (PT-AC) obrigou a volta do texto para a comissão. Ainda precisará servotado no plenário do Senado e depois ir à Câmara. Como o projeto originalfazia referência apenas a “templos”, sem especificar sua natureza, ao estendera eles os benefícios da Lei Rouanet, o senador Sibá considerou necessárioacrescentar um adendo. A emenda, que teve o parecer favorável do senador PauloPaim (PT-RS), foi aprovada pela Comissão de Educação e deixa mais claro que oPronac poderá ser usado para contemplar não só museus, bibliotecas, arquivos eentidades culturais, como também “templos de qualquer natureza ou credoreligioso”. A proposta agora segue novamente para o plenário, onde algunssenadores prometem reagir contra a idéia. Está mais do que na hora de aspessoas envolvidas e/ou preocupadas com a verdadeira cultura em nosso País,reagirem e tomarem uma providência”. Devem assinar, no endereço abaixo, todos os brasileiros que concordam que a LeiRouanet deve ser usada para a Cultura Brasileira e não para trampolinagens pseudo-religiosas: http://www.petitiononline.com/cult2007/petition.html

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Conferência de Jacqueline Fabre-Serris

Conferência
DIA: 18 de junho
em 2 HORÁRIOS: às 10h e às 20h
LOCAL: sala 102 do Prédio de Letras da FFLCH/USP

MINISTRANTE:Profa. DRa. Jacqueline Fabre-Serris (Université de Lille 3, FRANÇA)
TRADUÇÃO: Prof. Dr. Marcos Martinho dos Santos (DLCV/FFLCH/USP)

TÍTULO: Trois textes programmatiques alexandrins et leurs lectures romaines [Três textos programáticos alexandrinos e as leituras romanas deles]

RESUMO:

O prólogo dos Aítia de Calímaco desempenhou papel essencial nos debates poéticos da época augustana. O que chama a atenção, quando se estudam osdiversos textos que se referem a eles, é a perspectiva genérica que os poetas romanos adotaram. Pois cada um esforça-se por estabelecer o seu próprio gênero poético sob o signo de Calímaco, opondo aquele à epopéia, por meio da chamada recusatio. A conferência pretende estudar as adaptações romanas dos termos e passos de Calímaco, de modo a propor hipóteses acerca da origem da leitura genérica. Entre outras, parece que outros dois textos programáticos alexandrinos, que opõem a Homero o gênero pastoral, a saber: as Talísias e o Canto fúnebre dedicado a Bião, servem de pano de fundo a essa leitura peculiardos poetas romanos, a qual, ademais, parece remontar a Galo.

TEXTOS:

Calímaco, prólogo dos Aítia; Talísias; Canto fúnebre dedicado a Bião;Vergílio, Bucólicas VI; Horácio, Odes I 6; Propércio, II 1. 13; Ovídio,Metamorfoses I 1-4; Tristes.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

30 anos com e sem Bandeira

Paulo Martins

(Texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 17/10/98)

Certos poetas não deveriam ser lembrados no dia de aniversário de sua morte, mas ser festejados a cada ano na data de seu nascimento, porque, simplesmente, são imortais e, dessa forma, seria um desrespeito comemorarmos a ausência de alguém permanentemente presente. Este é o caso de Manuel Bandeira.
Porém, nossa cultura crê nos vivos. Deixa ao relento mortos e os perpetua como se sua obra tivesse chegado ao fim com o dia de sua morte. Sério equívoco. Seguramente, a crítica de poesia não comentou sequer um milésimo da obra de Bandeira, logo, mesmo após 30 anos de sua morte no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, continua vivo, eterno e infinito.
Talvez só os poetas compreendam a imortalidade e saibam, pois, nos traduzir que sempre há vida após a morte de um grande poeta. As palavras escritas permanecem, as faladas voam (uerba uolant, scripta manent). Se forem dignas de atenção – o autor medieval deveria ter completado a máxima.
Mas, por que é dado aos poetas este privilégio? Seriamos nós, simples mortais, incapazes de entender que boa poesia não morre jamais? A resposta certamente é não. Contudo, os poetas desde sempre compreenderam isto. Sabem que seu ofício, sua arte, encontrará acolhida na alma, sob os olhos atentos de bons leitores, independentemente de época. Não é de outra forma que ainda hoje lemos Homero. Porém, poucos sabem ler poesia. Assim, poucos além dos poetas entendem que não há relação direta entre a morte do poeta e o fim de sua poesia.
Se tal premissa é verdadeira, continuaremos a escrever homenagens aos mortos-vivos até o fim dos tempos, tentando alertar o maior número de pessoas de que há vida após a morte de um grande poeta.
Em 1977, mais precisamente no dia 17 de abril (Jornal do Brasil), o magistral Carlos Drummond de Andrade – outro imortal – conseguira sintetizar a obra de Manuel Bandeira, não escrevendo um texto de crítica literária, mortal e limitado (se comparado à arte de escrever poesia), mas elaborando a respeito do amigo Manuel e de sua poesia um belo poema (“Manuel faz novent’anos”) aos moldes daquele a quem se referia, afinal Bandeira foi assíduo nas homenagens poéticas.
Pois bem, é justamente falando acerca da imortalidade que Drummond, bem à maneira de Bandeira, começa seu poema:
“Oi, poeta!
Do lado de lá, na moita, hem? Fazendo seus novent’anos...
E se rindo, eu aposto, dessa bobagem de contar tempo,
De colar números na veste inconsútil do tempo, o inumerável,
O vazio-repleto, o infinito onde seres e coisas
Nascem, renascem, embaralham-se, trocam-se,
Com intervalos de sono maior, a que, sem precisão científica,chamamos
[de morte.(...)”
Assim, a carência de precisão científica da morte é sua completa inexistência para Drummond. Bandeira está apenas do outro lado de uma moita, se rindo de nós. O tempo para ele é uma dessas bobagens ao qual se colam números a seus trajes não costurados. Para Drummond, pois, Bandeira apenas dorme “profundamente”.
Esta idéia desde sempre perseguiu o poeta do Recife. O poema “Profundamente” do livro Libertinagem, por exemplo, alia o referido tema à memória distante do Recife e à memória mais próxima do Rio, transfigurando o tempo em algo inerte e sem valor. “Onde estão todos eles? // – Estão todos dormindo // Estão todos deitados // Dormindo // Profundamente”.
O local do sono eterno, ou, simplesmente, do sono maior, a que se refere Drummond, por sua vez, possui características ideais. Talvez, portanto, para os poetas este espaço, a que nós mortais denominamos morte, seja o local ideal da poesia. Lá, possivelmente, todas as coisas sejam em si verdadeiras, platonicamente tomadas. Ilatentes. Não é de outra forma, pois, que no Érebo (“Pasárgada”), um tuberculoso pratique ginástica, ande de bicicleta, suba em pau-de-sebo, monte em burro brabo, etc. O irrealizável tem espaço no universo da eternidade. Tudo é possível.
Porém, se a poesia refere-se ao eterno com letras e vozes do hic et nunc (aqui e agora), qual será a consistência da prática poética no mundo do sono eterno? Drummond questiona:
“(...) Hoje me sobe o desejo
de saber o que fazes, como,
onde:
em que verbo te exprimes, se há verbo?
em que forma de poesia, se há poesia,
versejas?
em que amor te agasalhas, se há amor?
Em que deus te instalas, se há deus?

Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?(...)”
Drummond quer nos enganar, ao questionar sobre o outro lado da vida, a morte, sobre como os mortos se comunicam, como escrevem poesia e como se amam. Ele sabe que a voz do amigo lá não é diferente de sua voz cá na terra. Bandeira já prenunciara ao propor em “O último poema” que:
“Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como o soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”
A forma ideal de poesia é um universal que serve a qualquer mundo, ao dos vivos e dos mortos. A forma ideal é simples, é ardente, é bela, é chama, é paixão. E, nesse sentido, ecoa em seu versos modernos um platonismo camoniano, plasmado em seus versos livres.
Mais do que isso, Bandeira é capaz de atingir a perfeição da poesia, operando materiais diversos que percorrem o absolutamente mundano, cotidiano e vulgar até o inacessível sublime. Desde a simplicidade de um “Café com pão // Café com pão // Café com pão // Virge Maria que foi isso maquinista?(...)” até a sublime delicadeza complexa de um “Quando a morte cerrar meus olhos duros //- Duros de tantos vãos padecimentos, // Que pensarão teus peitos imaturos // Da minha dor de todos os momentos?(...)”.
Acerca deste ideal que permeia a obra de Bandeira, Gilda e Antônio Cândido de Mello e Souza já haviam pensado na introdução ao volume Estrela da Vida Inteira de 1966: “A mão que traça o caminho dos pequenos carvoeiros na poeira da tarde, ou registra as mudanças do pobre Misael pelos bairros do Rio, é a mesma que descreve as piruetas do cavalo branco de Mozart entrando no céu, ou evapora a carne das mulheres em flores e estrelas de um ambiente mágico, embora saturado das paixões da terra. É entre estes dois modos poéticos, ou dois pólos da criação , corre como unificador um Eu que se revela incessantemente quando mostra vida e o mundo, fundindo os opostos como manifestações da sua integridade fundamental.”
Por outro lado, é certo que o modernista Bandeira prima pela capacidade de se expressar sob a égide de qualquer matiz estético, dessa forma o ideal corporifica-se em qualquer meio de expressão. Vale dizer, contudo, que não foi Bandeira que encontrou o modernismo, mas, ao contrário, foram os modernistas (e Mário tem responsabilidade nisto) que , o encontraram. Seu ecletismo formal e temático os tocou. Aqueles que buscavam ruptura, encontraram nele a síntese renovadora e avassaladora necessária à fratura estética.
Assim, ao observamo-lo filiado a certo simbolismo, cuja musicalidade exacerbada salta aos olhos de leitores mais atentos; a um romantismo, que tão bem soube comentar e traduzir; a um radicalismo poético na conformidade de certo modernismo mais visceral; aos experimentos formais característicos da poesia concreta, tão distante de sua formação poética e a uma sexualidade psicanalítica, que o remete a uma impossibilidade da vida real e sensível, podemos dizer que o mundo ideal preconizado concretizara-se em forma e conteúdo.
A esta diversidade de Bandeira, que certamente induz à universalidade ideal, Drummond, belamente, sintetiza:
“(...)Manuel canção de câmara, Manuel
canção de quarto e beco,
ritmo de cama e boca
de homem e mulher colados no arrepio
do eterno transitório: traduziste
para nós a tristeza de possuir e de lembrar,
a de não possuir e de lembrar,
a de passar,
mescla do que foi, do que seria,
simultaneamente projetados
na mesma tela branca de episódios
- em nós, vaga, soprada a cinza,
em ti, o sopro intenso de poesia.(...)”
A “mescla do que foi, do que seria , // simultaneamente projetados// na mesma tela branca de episódios” que Drummond fala é justamente a fusão dos dois pólos da criação de Candido e aquilo a que nos referimos acerca do ideal universal para o qual convergem concepções estéticas diversas e para o qual a diversidade mundana e supra real, consiliadas, reagem sob forma de poesia, que intensamente lírica, atinge a todos, ora pela simplicidade humilde do discurso (a que propala David Arrigucci Jr.) ora pela complexidade ontológica.
Destarte, o simbolismo de Bandeira, facilmente observável em Cinza das Horas (seu livro inaugural - 1917), nasce de uma poesia sujeita a uma técnica extremamente acurada que não visa ao efeito exterior, não se dirige tanto ao sentimento, ao coração, como a regiões menos exploradas da alma, como já alertara Sérgio Buarque. É assim que afirma em “Versos escritos nágua”:
“Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.”
Indelevelmente ligado a esta tradição, Bandeira afirma em Itinerário de Pasárgada: “compreendi, ainda antes de conhecer Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia.”
Da mesma forma, a poesia romântica alemã é tópica em sua poesia. Sua estadia na Europa antes da Primeira Grande Guerra possibilita contato mais direto com o alemão, e assim, pôde conhecer toda a força de Göethe, Hoelderlin, Schiller e tantos outros.
Contudo, a sua afinidade com a poesia moderna, realmente, é seu ponto mais alto. Constrói para si uma poética que deglute, absorve, alimenta-se da tradição e do cânone, conhecidos e trabalhados, para produzir um efeito reorganizador de sua poesia e conseqüentemente de outros que virão, ou melhor da poética moderna. Seu contato prévio com formas alheias de expressão poética lhe possibilitam uma crítica severa às mesmas. Mário de Andrade assim fala de Libertinagem, no qual sua maturidade moderna nos atinge avassaladoramente: “Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia de Manuel Bandeira, pois que este livro confirma a grandeza dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já publicou. Aliás também nunca ele atingiu com tanta nitidez os seus ideais estáticos, como na confissão de agora”.
Mário refer-se-ia ao poema. “Poética”, talvez um dos maiores instrumentos estéticos compostos pelo modernismo brasileiro, antológico em cada um de seus versos. Este poema reflete os ideais de toda uma geração de poetas. Seu último verso é uma bela hipérbole que restringe e, ao mesmo tempo, universaliza a produção poética moderna: “- Não quero mais saber do lirismo que não seja libertação.” Ao mesmo tempo que determina uma redução, ao negar o lirismo, propõe uma sua universalização ideal que é a libertação.
Tal movimento dialético proposto pode ser observado, por exemplo, no dístico “Poema do Beco” de 1933:
“Que importa a paisagem, a glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.”
Ou em “Última Canção do Beco”:
“Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades(...)
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais, (...)
Adeus para nunca mais!”
O beco tão presente em sua obra corresponde a um universo limitado físico que se contrapõe a universalidade do mundo. Entretanto, esta limitação física é trabalhada de forma a ser transposta e reavaliada universalmente dentro do mundo lírico, eclodindo em libertação. Assim temos que o universo ideal em Bandeira que parece estar restrito por uma simplicidade aparente, por uma pequenez do mundo cogitado, transforma-se no mote aglutinador das expectativas universais.São justamente estas expectativas universais, aparentemente simples de seus poemas que convertem-no, Bandeira, em um poeta da imortalidade e imortal.

Diego de Silva Velázquez: poeta e poesia na pintura

Paulo Martins

(Texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 26/06/99)

"Oh não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada"
Gregório de Matos

Os gregos antigos utilizavam o verbo poeîn para designar quaisquer atividades de manufatura e produção, assim sua primeira acepção aproxima a elaboração de um móvel qualquer, por exemplo, uma cadeira à de um objeto intelectual, texto, pintura. Contudo, essas atividades de elaboração não se restringiam ao universo mundano, físico, limitado por excelência; os próprios deuses eram agentes desse mesmo verbo quando nas palavras de Hesíodo (Cf. Os trabalhos e os dias v.110) criaram as cinco raças de homens (a de ouro, a de prata, a de bronze, a de heróis e a de ferro). Poder-se-ia inferir, portanto, que homens são o resultado da ação de poeîn dos deuses, ou seja, sua poesia. Apropriando-se desse verbo tanto no que diz respeito à ação humana como naquilo que é resultado da ação divina, podemos afirmar seguramente que Diego de Silva Velázquez, pintor sevilhano, nascido em 6 de junho de 1599 e morto em 6 de agosto de 1660, é poeta e poesia.
Velázquez é poeta. Esta assertiva, naturalmente, exclui qualquer possibilidade de atribuir-lhe certo gênio, qualidade capaz de produzir inexplicavelmente obra que, via de regra, seria ícone de inspiração divina, e logo, apartada de um programa sistemático de produção humano, essencialmente, humano. Nesse sentido, o pintor sevilhano iconiza o caráter de uma época cuja característica central é protocolar ações inventivas capazes de produzir certo efeito, muita vez, enigmático, contudo, absolutamente previsíveis para aqueles que observam os objetos de perto, tendo em mãos o sistema normatizador que regula a produção artística.
Talvez, esta característica afaste, hoje em dia, objeto produzido da recepção, isto é, poucos são aptos a observar a obra pictórica de Velázquez, por completa carência de conhecimento das regras que nortearam a sua produção. Seríamos ineptos (non aptum) e néscios (non scio) diante do engenho (ingenium) do pintor. Este fato provoca duas possibilidades de atitude. A primeira minimiza a importância da obra e a segunda proporciona uma atenção redobrada na sua observação.
Obviamente, não seria interessante desconsiderar seu valor, mesmo porque, isto é impensável. Resta-nos, pois, desvelar os enigmas de suas composições para, talvez, nos aproximarmos da recepção apta do século XVII e, assim, aferirmos toda a grandiosidade desse poeta-pintor que mais do que qualquer outro representa o que há de mais belo no dito século barroco.
O enigmatismo barroco é algo formidável, porquanto descortina uma intencionalidade não imediata diante do processo inventivo. O que se vê pode não ser o que se deseja figurar imediatamente. No entanto aquilo que se pode dizer de imediato também serve à proposta inicial de produção. Assim, há no barroco um acúmulo de mensagem e a recepção pode simplesmente observar sua superfície óbvia, limitada e néscia, como também adicionar a esta outra subliminar, enigmática e complexa. Há nesse caso uma adição de possibilidades de leitura e cabe ao receptor acioná-las de forma simultânea. Dois produtos exemplares dessa concepção em Velázquez são Las Hilandreras (1644-48, Museu do Prado, Madri, Inv.: 1173) e Las meninas (1656-57, Museu do Prado, Madri, Inv.: 1174).

Las Hilandreras, que superficialmente pode refletir apenas a intencionalidade barroca de figurar uma preocupação manufatureira e massiva da cultura como bem explicitou Maravall (A cultura do barroco, p. 162) no rastro de Max Weber, indubitavelmente produz uma série de indagações pertinentes que determinam uma segunda visada não tão superficial e mais aguda. Isto sem falar, é claro, da observação formal e técnica das habilidades do pintor no que diz respeito ao movimento, à luz, ao claro-escuro, à profundidade e à sombra.
Imediatamente, o quadro figura uma oficina. Segundo Antonio Maravall esta obra revela-nos a mentalidade de época que aprecia um modo de produção industrial. Estaria o artista barroco preocupado com a representação de estratos da sociedade cujo modo de vida se distingue dos ilustres de vida cortesã, não é, pois, de outra forma que o mesmo Velázquez opera retratos como o de Juan de Pareja (1649-50, Metropolitan Museum of Arts, Nova Iorque, Inv.: 1971.86), seu assistente.
Contudo, parece pouco provável que apenas esta tenha sido a real intenção do poeta-pintor em questão, pois que são evidentes outros elementos figurados no quadro, a começar por seu nome efetivo A lenda de Aracne. O nome remete ao mito greco-latino que nos indica a história de Aracne, excelente tecelã lídia que aprendera com Palas Atena sua arte e que, por conta de sua soberba em querer rivalizar com a deusa, foi punida sendo transformada em aranha (cf. Ovídio, Metamorfoses, vv. VI, 1-145). Pois bem, a tela indica três planos distintos que interagem. Um primeiro no qual está figurada uma oficina de fiação onde cinco mulheres empenham-se em seu trabalho. Duas delas, metáforas do mito: na roca, Palas Atena; a trabalhar com os fios, Aracne. Velázquez adapta o mito à realidade do século 17 (como nas telas Menipo, 1639-40 e Esopo, 1639-41). Num segundo plano, observa-se um vestíbulo, ao fundo da tela, ricamente iluminado, no qual são apresentadas mais três mulheres, duas das quais observando o terceiro plano e uma o primeiro e, consequentemente, a nós, espectadores. Estas mulheres como que estabelecem liame entre nós e o terceiro plano, entre realidade figurada metaforicamente, o mito em si e nós, pois que vale dizer que no terceiro e último plano, encontra-se uma tapeçaria – O rapto de Europa – que oferece contribuição no âmbito do mito, relaciona-se com Aracne – é uma de suas tapeçarias – ; de outro lado, composicionalmente, é alusão, é intertexto, é emulação, afinal, seu autor é Ticiano (considerado por Velázquez um dos maiores pintores).
Pode-se falar muito mais desse quadro, mas, efetivamente, ele nos fornece algo essencial para se ler Velázquez, ou seja, ele mostra que uma mera observação depurada pelo gosto não é suficiente para se acatar a produção desse poeta-pintor. O mesmo fato pode ser aferido em seu principal e mais famoso quadro: Las Meninas.
De chofre, Las Meninas não parece ser algo excepcional. Uma figuração da vida cortesã, da família real, cuja centralidade está na infanta Margarida e suas aias. No entanto, observa-se, também, a representação do avesso de um quadro e seu pintor – um auto retrato de Velázquez – a observar, quem sabe, aquele que está sendo pintado. Certamente, este não é a infanta, pois ela já está representada em Las Meninas, no nível primeiro de observação, este é o seu quadro. Quem seria então? Nós a vê-lo? Talvez. Ou simplesmente, aquele que no ato da representação observa, como nós, a cena. Se assim é, este quadro é singular, pois representa a todos indistintamente , bastando para tal, estar-se a frente dele. Isto é, Las meninas é o quadro de quem não está no quadro, pelo menos, a princípio.
Contudo, o observador mais atento verificará a presença espelho no fundo da câmara e nele perceberá a presença de uma imagem do rei Felipe IV e da rainha Mariana. Seriam eles, portanto, os observadores da cena, aqueles que ocupariam originariamente o lugar a nós reservado na observação. Assim, simultaneamente, são observadores, espectro e figuração em curso, imagem enigmática que está sendo elaborada pelo pintor dentro do quadro. Nesse sentido, Michel Foucault (cf. As Palavras e as coisas) em brilhante ensaio sobre esta tela informa: “Talvez haja, neste quadro de Velázquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo - que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.”
O espelho, aliás, sempre se constituiu como elemento cativante da representação, mesmo que comecemos com a proposição platônica em A República, livro X, onde é proposta imitação de todas as coisas do mundo a partir dele. Seria ele o artefato essencialmente mimético capaz de reproduzir com exatidão tudo que há. Dessa forma, os eikones produzidos, se não satisfazem a Platão – não são verdadeiros –seguramente, são fundamentais aristotelicamente. Por outro lado, a partir do século XV, amiúde, encontra-se a utilização deste artefato nas figurações. Observe-se a famosa tela de Jan van Eyck, O retrato dos esposos Arnolfini de 1434 (National Gallery, Londres).





Velázquez já se utilizara do espelho antes de Las Meninas, pelo menos duas vezes: Crista en Casa de Marta y Maria (The Trustees of the National Gallery, Londres, Inv.: 1375) e A Vênus do espelho (The Trustees of the National Gallery, Londres, Inv.: 2057), muito embora, em nenhuma destas duas obras se verifique a agudeza e engenho como no caso já explicitado.
Mesmo assim, é notável no caso do primeiro exemplo (Crista en Casa de Marta y Maria) o contrafluxo visual imposto pela tela. Os olhares de Maria e Marta nos capturam de forma avassaladora, tem-se a impressão de sermos o alvo da atenção iconizada, porém, na realidade o alvo é Cristo que para nós, simples mortais, não passa de uma imagem, um ícone da perspicácia do pintor-poeta. Mais uma vez, Velázquez nos constrange, porquanto, nos coloca como observadores ideais da cena. Em Las meninas como reis e agora como o próprio filho de Deus.
Segundo Maravall (op.cit. p. 316-7), esta forma enigmática de representar o mundo liga-se, fundamentalmente, à noção de que é necessário provar às pessoas da época que tudo é regido pelo protocolo, logo tudo que se lhes aponta é ilusório, regido pelo saber e pela prudência. "Por isso são tão importantes as técnicas empregadas para sublinhar a condição aparente e ilusória do mundo empírico. Compreende-se o grande desenvolvimento que elas adquirem e seu papel decisivo em todas as formas de comunicação com um público. Na arte, os efeitismos aos quais se recorre para se produzir um certo grau de indeterminação acerca de onde acaba o real e começa o ilusório correspondem ao delineamento que acabamos de fazer. Entre os efeitos desse tipo – para explicitar o que queremos dizer – citaríamos como exemplos alguns quadros fundamentais de Velázquez, tais como Las Meninas ou Crista en Casa de Marta y Maria. Observemos que agora não se trata do ingênuo virtuosismo de copiar algo com realismo tal que nos leve a acreditar que é coisa real e viva o que é apenas imagem pintada. O ensaio velazquiano é muito mais complexo: trata-se de multiplicar uma imagem dentro de outras, tão funcionalmente articuladas que chegam a produzir alguma incerteza sobre o momento no qual, nesse jogo de imagens, se transfere do representado para o real."
Uma outra questão que nos intriga em Velázquez é a aproximação entre dois tipos antagônicos de composição. Uma pública, até certa medida, idealizada e outra privada, apensa à realidade mais sensível. Tal dicotomia torna-se absolutamente visível e óbvia, quando observamos, lado a lado, sua dedicação na representação não só dos membros da casa real de Espanha (são inúmeras as telas), como também de outros insignes nomes do século 17 como no Retrato do Papa Inocêncio X em 1650 (Galleria Doria-Pamphili, Roma) e de personalidades vulgares da vida cotidiana, mormente, os que apresentam certas anomalias anatômicas como o Retrato do bufão Juan Calabazas entre 1637-39 (Museu do Prado, Madri, Inv: 1205) ou o Retrato do anão Francisco Lezcano entre 1643-45 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1204).
Estas antíteses também podem ser provocadas pela presença do idealizado e do vulgar simultaneamente. E ambas são surpreendentes. Nesse sentido, as célebres telas: Baco entre 1628 e 1629 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1170) e A forja de Vulcano em 1630 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1171); sem falarmos, naturalmente, na presença da figura megalocéfala figurada em Las meninas.
No caso das anomalias, segundo José López-Rey (cf. Velázquez - Obra Completa, p. 129-30), um dos maiores especialistas em Velázquez, estas estariam a serviço da figuração da natureza humana e seus desvirtuamentos. Além disso, Vale dizer que estas pessoas tinham uma posição no mundo cortês, serviam à quebra do tédio, do fastio que o mundo das aparências, regido pelos protocolos, proporcionava. Isto é, estas imagens são mirabilia, que, retoricamente, atendem a esta situação de quebra do taedium.
A simultaneidade de imagens vulgares e ideais poderiam atender à preocupação barroca das ruínas que indubitavelmente se associam à fugacidade da vida, ou seja, ao propor Baco ao lado de bêbados, Velázquez proporia análogos distantes, onde o primeiro representaria a perenidade - é um deus - e os demais aquilo que há de mais fugaz, o humano. Não é de outra forma que se nos apresenta a megalocéfala de Las meninas em contraponto à idealidade real da infanta Margarida e seus pais espectrais. Ou mesmo, em A forja de Vulcano, onde percebe-se a mesma atenção. "Nelas pretende encontrar o testemunho de um tempo, respondendo à incipiente consciência histórica que procura abrir caminho. (...) Mas as ruínas, além do mais, são um material muito adequado para estudar a estrutura da obra humana e, portanto, a condição da vida do homem que a criou, sem poder livrá-la de sua própria fugacidade. São um patente testemunho da luta entre a natureza perene, embora cambiante, e o homem perecedouro e dotado da capacidade de fazer mudar as coisas. (...) O tempo, portanto, é o puro processo dinâmico das transformações.(...)As imagens saturnais com que o século XVII o simboliza correspondem a essa consciência do fluxo ininterrupto de uma transformação universal, aniquiladora das coisas, mas também fonte de verdade e de fecundidade", escreve Maravall (op.cit. p. 301-2).
Tais observações acerca de Velázquez indicam apenas algumas características que não devem ser deixadas de lado ao tomarmos contato com a esplendorosa obra desse poeta-pintor sevilhano do século 17 e comprovam que, se uma de suas preocupações era figurar a fugacidade da vida, conseguiu apenas ser a representação real daquilo que há de mais perene, podendo inclusive citar o poeta latino Horácio: "exigi monumentum aere perenius" (Erigi um monumento mais perene que o bronze).

Horácio das Odes

Paulo Martins


Quinto Horácio Flaco nasceu em 65 a.C. em Venúsia, atual Venosa na região da Basilicata, e, escravo liberto, somou fileiras com Bruto, assassino de Júlio César. Mais tarde, tendo sido anistiado durante o segundo triunvirato, passou a fazer parte de um grupo de poetas e escritores financiados pelo lugar-tenente de Augusto, Mecenas. É desse período que nos resta sua produção poética.

Se a literatura clássica antiga deve sua importância a alguém – e seguramente deve – Horácio coloca-se entre os primeiros. Poeta de copiosa obra, singular e diferenciada, operou diversos gêneros poéticos dos quais talvez apenas a poesia épica tenha ficado fora de seu alcance. Dessa maneira, suas odes (4 livros), seus epodos (1 livro), suas sátiras (2 livros) e epistolas (2 livros, afora a Arte Poética) avolumam-se, produzindo um preciso retrato de seu tempo, a época de Augusto, além de representarem fielmente um repertório de formas e modos poéticos que até hoje encontram eco na vida literária. Entretanto, talvez, de todos os gêneros poéticos trabalhados por ele, suas odes sejam as peças literárias mais significativas, uma vez que a rapidez, suavidade, limpeza e, mais precisamente, a concisão dos versos, nesses textos, sem falarmos em seus conteúdos, despertem espanto ao crítico moderno.

Quando falamos “ode”, estamos tratando de um gênero poético, cuja origem remonta à Grécia arcaica e que possuía certa unidade regular métrica e estrófica, invarialvemente acompanhada musicalmente seja pelo aulós - um tipo de instrumento de sopro - seja pela lira – uma espécie de instrumento de corda - e que, ainda, do ponto de vista de seu tom, tratava de assuntos cotidianos de forma elevada e sublime, a despeito de, na maioria das vezes, tratar de matéria humana e, não necessariamente, divina.

No entanto, há que se lembrar que, na época de Horácio, essas características da ode já haviam se moldado a um novo tipo de sociedade em que a escrita era supervalorizada e, portanto, o virtuosismo da performance, da actio (ação) já cedera lugar ao da elocução. A despeito da citação de lugares comuns e da emulação com autores gregos como Arquíloco de Paros (Discutindo Literatura, 11) e Alceu e, ainda, do reconhecimento de ser sua poesia devedora aos modos gregos de composição, afinal ele mesmo diz em uma de suas Sátiras: “Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit agresti Latio” (A Grécia capturada tomou o ferro vencedor e trouxe ao Lácio agreste as artes - Sátira, 2, 1), Horácio é responsável pela consolidação da tradição literária ocidental em suas bases clássicas. Isto é, em que se pese a importância da literatura grega, aquela que se produz em Roma, no Lácio é a que efetivamente dita modelos na literatura européia moderna.

Um exemplo preciso do virtuosismo de Horácio é a quinta ode do primeiro livro, chamada Ode à Pyrra (ad Pyrram) que propomos a seguir numa excelente tradução de Nelson Ascher:

Que jovem grácil entre rosas
urge-te ungido de perfumes,
Pyrra, em teu antro?
Pra quem singelos ornas

louros cabelos? Ele a fé
maldirá logo e instáveis deuses,
sofrendo, inábil,
mar bravo e negro vento,

pois áurea frui-te ingênuo como
se sempre livre, sempre amável
e ignora as auras
falazes. Pobres desses

que, intacta, ofuscas. Sacro muro
por painel votivo atesta
que alcei molhada
a veste ao deus do mar.

As quatro estrofes dessa pequena ode tratam sucinta e rapidamente de um caso amoroso, mais precisamente de um triângulo amoroso: a mulher Pyrra (segunda pessoa) , um jovem homem (terceira pessoa) e o eu lírico (primeira pessoa), que insta Pyrra acerca de seu novo amor, logo na segunda estrofe o desenlace é proposto, pois externa que ele sofrerá a impossibilidade do desejo amoroso, maldizendo a fé, os deuses e as potências naturais, mar e vento. Afinal é característica de Pyrra não se entregar facilmente e, ainda, são incautos os homens que se interessam por ela por desconhecerem suas falácias, imaginando ela estar sempre livre e amável. A última estrofe finalmente indica que o próprio eu lírico é testemunha dos descasos de Pyrra uma vez que já entregou ao deus do mar em sinal de prece sua veste molhada, seja de suas lágrimas pelo o amor não correspondido, seja como resultado do ato amoroso que nunca mais se repetiu. Esta ode talvez seja o melhor exemplo daquilo a que se convencionou chamar de poética Alexandrina, pois que está assentada em pelo menos duas características fundamentais desta: o “leptós” – aquilo que é fino, diminuto – e o “malakós” – o que é suave.
A despeito de sistematicamente trabalhar em suas odes estas duas vertentes estilísticas, a saber, a suavidade e a fineza, o que proporcionaria uma suposta fragilidade do ponto de vista da composição literária se comparadas à grandiosidade e gravidade da épica virgiliana (Discutindo Literatura, 7), por exemplo, as odes, como um todo, são tratadas pelo próprio poeta como um monumento, algo grandioso sem precedentes na história literária de Roma. Tanto isto é verdade que Horácio na última ode do livro terceiro, que deveria ser a última nesse sub-gênero lírico, pois não pretendia mais à época produzir odes, sugere seu próprio inventário poético:

“Eregi obra mais perene que bronze,
Mais alta que pirâmides reais para
Que nem chuva edaz nem Áquilo colérico
Destruir possam ou inumeráveis séries
De anos ou fuga dos tempos. De todo não
Morrerei e mor parte de mim à Libitina
Sobreviverá, sempre e em todo lugar, novo
Renascerei por louvor até que o Pontífice
Com tácita virgem Capitólio escale.
Conhecido, onde Áufido violento ruge
E onde Dauno pobre reinou, n’águas, sobre
Campesinos, serei. Eu, de origem humilde,
O primeiro que trouxe canções eólicas
Ao metro itálico. Toma a grandeza por
Mérito obtida e cinge-me a cabeça,
Melpómene, desejando, com délfico louro.”
(tradução de Paulo Martins).

Vale ressaltar nesta ode a consciência da perenidade da obra de arte e sua grandeza, apesar de não estar produzindo um texto elevado aristotelicamente falando, pois não escreve uma épica nem tampouco uma tragédia e, antes, opera a lírica. Assim, mesmo sendo este gênero dedicado à leveza e à suavidade, ele é capaz de ser reconhecido como algo representativo de uma dimensão humana extremamente valorizada pela sociedade romana.

Em contrapartida à perenidade da poesia, a fugacidade da vida é outro elemento constante nas odes de Horácio. Assim, se de um lado aquilo que escreve é mais duradouro do que o bronze por sua altiva importância comparável à pirâmide de Qeops, e daí, ser lembrado o poeta até a eternidade, sempre novo sendo reconhecido, ultrapassando em existência os ritos ancestrais e, hiperbolicamente, superando a própria natureza do tempo, do vento e das águas; de outro lado, reconhece as limitações do homem natural, limitado por excelência, cujo fim é sempre o pó e a ruína. Isto é exatamente o que propõe a sétima ode do livro quarto:

Dissolveram-se neves, já vergéis retornam
Aos campos e às árvores, comas;
Mudam vezes a terra e às margens tornam
Descendentes os regatos.
A Graça com Ninfas e com gêmeas irmãs
Ousa nua conduzir coros.
Vida eterna não esperes, ano e hora que rapta
Dia propício advertem.
Frios abrandam com Zéfiros, verão suplanta
Vera até que morto esteja;
Logo outono pomífero trará frutos e
Reviverá inverno sem pomos.
Luas céleres recuperam celestes danos
Quando, então, nós descemos
Onde estão Enéias pai, rico Tulo, Anco
E somos pó e sombra apenas.
Quem sabe se súperos somam ao todo,
De amanhãs um intervalo?
O que terás dado com ânimo amigo,
De ávido herdeiro fugirá.
Quando tiveres morrido e Minos tiver
Feito de ti juízo notável,
Nem estirpe, Torquato, nem fluência, nem
Piedade te darão vida;
Pois nem Diana livra de atroz inferno
Seu casto Hipólito,
Nem Teseu é forte para romper oblívios
Vínculos do caro Pirítoo.
(tradução de Paulo Martins)

Confundem-se nesta ode dois tipos de rapidez. A primeira no âmbito da elocução, os versos extremamente ligeiros e, em certa medida, simples e doces são propostos em estrofes de dois versos, dísticos, que imprimem agilidade ao poema. A segunda, por sua vez, no âmbito do pensamento, do conteúdo, por assim dizer, reflete a passagem do tempo, a fugacidade desta convenção humana, lá medida pela passagem das estações. Ainda neste âmbito observa-se a transposição do tempo natural e humano para o tempo mítico, isto é, quando as estações se nos passam, estamos entregues ao mundo do mito, do em si. E lá conviveremos com personagens da primeva história de Roma: Anco, Tulo e Enéias e teremos, sim, condição de avaliar o que somos “pó e sombra”. É mister observar que, neste rápido poema, o tempo humano e o tempo da eternidade e/ou mítico se misturam e, nesse sentido, somos regidos pela piedade dos deuses que poderão nos dar algo mais: “Quem sabe se os súperos somam ao todo / de amanhãs um intervalo?”, contudo isto é uma incógnita não só para os mortais como também Hipólito ou Pirítoo.

A incerteza com a existência, a fugacidade da vida - pedra de toque destas odes - produziu como efeito um lugar comum da literatura ocidental, uma vez que nem os homens, tampouco os mitos são capazes de saber exatamente a sua extensão. A este “tópos” da literatura deu-se o nome de carpe diem, isto é, colha o dia. Assim, se não sabemos quanto tempo temos, gozemos a vida ao máximo. A origem desse lugar comum está na ode onze do primeiro livro:

Não procures – ímpio é saber – que fim
deuses te darão e a mim também, Leucônoe,
nem consultes babilônios números,
tanto melhor será tudo sofrer! ou
porque Jove deu vários invernos
ou último que já fere o Tirreno em
opostas rochas. Sê sábia, vinhos
filtra e suprime em breve espaço longa
espera. Ao falar, vida foge ínvida:
Colhe o dia e pouco crê no futuro.
(tradução de Paulo Martins)

A interlocutora do eu lírico, Leucônoe, é advertida para que não procure saber o tamanho de sua própria existência, antes deve ela tudo suportar tendo sido dado por Júpiter um dia apenas ou vários e, dessa forma, deve também buscar a verdadeira felicidade independentemente de qualquer coisa. Termina dizendo que a incredulidade nas coisas futuras é um sinônimo de sabedoria.

Na literatura de língua portuguesa, o autor que mais se aproximou de Horácio seguramente foi o heterônimo de Pessoa, Ricardo Reis. Todas as características elencadas para definir as odes do poeta romano podem ser facilmente encontradas nos poemas do modernista. Mais do que isto, pode-se dizer que Ricardo Reis alude sistematicamente Horácio, produzindo aquilo a que se convencionou chamar de intertextualidade como é o caso da ode 1, 38:

Da Pérsia, menino, adornos odeio;
Coroas com a tília atadas me cansam;
Não vás rebuscar a rosa em que partes
Tardia perdure.

Ao mirto simples não lavres lavores
Com zelo, peço: nem a ti que serves
Desdoura o mirto, nem a mim sob densa
Videira bebendo.
(tradução de João Angelo Oliva Neto)

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão Cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves,
E basta.
(Ricardo Reis)