quarta-feira, 26 de março de 2008

Três Tragédias Gregas


ALMEIDA, GUILHERME DE E VIEIRA, TRAJANO - Três Tragédias Gregas. São Paulo: Perspectiva. 1997. 310p.



Paulo Martins




Três tragédias gregas, livro elaborado por Trajano Vieira, professor de Língua e Literatura Grega da Unicamp, pode ser elencado no rol de raridades de qualquer biblioteca. O qualificativo não provém de um ineditismo ou qualquer outro valor atribuído costumeiramente às obras raras. Antes, advém de um audacioso projeto cuja linha mestra reside no conceito do que venha a ser uma tradução poética.
Contudo, valores mais comuns também podem ser depreendidos dessa obra, que zelosamente é publicada pela Editora Perspectiva dentro da Coleção Signos, que tantas contribuições e gratas surpresas já proporcionou ao mundo das letras no Brasil.
O primeiro deles é a possibilidade de termos contato com 3 tragédias gregas de dois expoentes do gênero: Sófocles (496-406 a.C.) e Ésquilo (525-426 a.C.). O segundo, seguramente, está centrado na divulgação de traduções inéditas e poéticas, extremamente competentes, de Trajano Vieira para obras dos dois tragediógrafos, precedidas de cuidadosos ensaios introdutórios. Em terceiro, o acesso a inéditos de estudiosos das letras helênicas do século passado, em forma de tradução. E, por último, a revisão daquela que para muitos é a melhor tradução poética de Sófocles em língua materna: Antígone de Guilherme de Almeida, poeta modernista cuja verve no mundo da tradução é reconhecida por seu trabalho em As Flores do Mal de Charles Baudelaire.
Além disso, o livro Três Tragédias Gregas nos põe em contato com um belíssimo ensaio de Haroldo de Campos acerca das traduções do Prometeu de Ésquilo no XIX, afora uma tradução de sua lavra da Antígone de Hölderlin (Ato I, cena I).
Dessa forma, é composto dialogicamente por textos de tradução poética, sem os excessos de blá, blá, blá teórico que, muita vez, subverte a importância da poesia, ao deslocar o eixo da leitura do objeto para o sujeito, ou seja, não se dá mais importância ao texto crítico do que ao texto que o gerou. Assim, seqüencialmente os textos poéticos são apresentados e, a partir daí, o leitor atento pode se ater naquilo que há de semelhante e dissemelhante entre as diversas traduções de gerações diversas.
Talvez, a única falha editorial dessa obra esteja numa certa dissimetria editorial, que soa esquisito, pois é oferecido o contato com o texto original em grego em apenas uma das tragédias — Antígone. Se fosse sanada esta questão, o livro contribuiria ainda mais para o mercado editorial de Letras Clássicas.
Quanto às tragédias em si, imergem o leitor em dois estilos diferentes, porquanto Sófocles diverge muito de Ésquilo, não só quanto à complexidade como, também, quanto à forma de desenvolver a ação trágica e a construção de personagens e coros. Observará que em Ésquilo há uma maior importância do coro que dialoga de forma mais lírica e incisiva, além de submeter a vontade dos homens à dos deuses. Sófocles, por sua vez, um inovador segundo a concepção aristotélica da tragédia, concede uma maior importância às ações humanas, suas personagens são fundamentais ao desenvolvimento da ação.
Sófocles mostra as pessoas como elas deveriam ser, não obstante seus personagens estarem sujeitos a falhas humanas, são realmente heróis, afetados, pois, por motivos elevados. Não é de outra forma, por exemplo, que Antígone desafia nobremente o poder de Créon, ao não deixar seu irmão, Polinices, insepulto; desencadeando conseqüências trágicas fabulosas como sua própria morte, a morte do filho de Créon e o suicídio de Eurídice, esposa de Créon. Vale lembrar que esta ação se desenrola a partir da saga do genos de Édipo, uma vez que Polinices é um dos seus filhos amaldiçoados por ele, Édipo.
Ajáx, protagonista da tragédia homônima, é um excelente representante da arrogância humana (hýbris), pois inconformado de as armas de Aquiles terem sido dadas a outro (Odisseu/Ulisses), mata-se após recuperar-se de seu estado de demência com sua própria espada. Por conta de seus atos é condenado por Menelau e Agamemnon a permanecer insepulto. Contudo, num gesto de grandeza de alma, Odisseu os dissuade desta pena imposta àquele, constituindo-se assim o caráter típico do herói sofocliano.
Por sua vez, Ésquilo é, sem sombra de dúvidas, mais lírico que Sófocles, contudo isto não significa que seja melhor ou menor. Pode-se dizer, efetivamente, que são diferentes. Há que se pensar, sim, que suas tragédias possuem um viés religioso mais vigoroso. Suas personagens, afinal, estão submetidas às vontades divinas. Por conta de seu lirismo exacerbado, por vezes, foi tido como grandiloqüente — Quintiliano o considera por vezes canhestro —, principalmente, se comparado aos seus sucessores conhecidos (Sófocles e Eurípides). Suas tragédias constróem idéias edificantes acerca da fatalidade que é condicionada pelas vontades divinas e pelas paixões humanas.
O Prometeu acorrentado ou prisioneiro ou encadeado — variações possíveis para o título original — insere-se nesta característica da tragédia de Ésquilo. O titã Prometeu, que fora auxiliar de Zeus na imposição de seu poder sobre Cronos nas origens dos tempos (arché), constituí-se, como afirma Paul Harvey, no paladino da humanidade, por conta da defesa intransigente das carências e necessidades humanas, contrariando as vontades do poder supremo. Nesse sentido, é-lhe imposta por Zeus uma pena de prisão da qual só sairá após trinta mil anos.
A partir desses mananciais mítico-literários, que são inesgotáveis, Três Tragédias Gregas servem de palco para a proposição transcriativa ou recriativa de Guilherme de Almeida e de Trajano Vieira e, nesse ponto, atingimos o fulcro central da obra, porquanto as transcriações são o objeto dialógico sobre o qual o leitor deve se ater com mais vagar.
Ambos, cada qual a seu modo, não cedem a soluções simplistas e rápidas, tão comuns hoje em dia. Manejam o verso com a presteza necessária à empreitada a que se propuseram — oferecer ao leitor brasileiro tradução digna. Descartam soluções escolares ou tentativas humildes de um simples resgate cadencial. Interferem, assolam, debulham, esmerilham, burilam o verso de sorte a retirar dos mesmos efeitos sonoros, rítmicos, metafóricos, alegóricos propostos no original. Contudo, adaptados às necessidades vernaculares.
Nesse sentido, estabelecem um ambiente agonístico com os gregos antigos, tornam-se seus êmulos ao mesmo tempo em que os respeitam. O universo da tradução, enfim, foi representado nesta obra rara de brilho singular, mostrando aos incautos o quão difícil é a vida do (bom) tradutor.

sábado, 8 de março de 2008

pictoribus atque poetis omnia licent

HASKELL, Francis - Mecenas e Pintores: as relações entre arte e sociedade na Itália Barroca. Trad.: Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Edusp. 1997 - 18x25. 726p. Ilustrado.





Paulo Martins



Mecenas e Pintores foi publicado pela primeira vez na Inglaterra em 1963, tempo em que raríssimas eram as publicações sérias a respeito dos artistas italianos do séculos XVII e XVIII. Sua segunda edição surge em 1980, quando foram corrigidos erros e acrescentados novos comentários sobre as novas descobertas e abordagens de história da arte. Em 1991, ou seja, 28 anos após a primeira edição inglesa, publicou-se a primeira edição francesa que, sob o ponto de vista do próprio autor, seria a forma mais acabada de seu trabalho e, assim, aquela que deveria nortear as futuras edições. Portanto, a presente edição brasileira seque a “opção francesa” do livro.

Horácio, autor latino muito discutido e trabalhado no renascimento e, conseqüentemente, no barroco, em uma de suas odes, propôs metalingüisticamente “exegi monumentum aere perenius /regalique situ pyramidum altius - “construi um monumento mais perene que o bronze, mais alto que a velhice das pirâmides dos reis”. Esta metáfora da perenidade da obra de arte pode ser, objetivamente, aplicada à obra de Haskell, tanto no que se refere ao seu objeto de estudo — a arte barroca do século XVII na Itália — quanto ao seu texto — a história das práticas artísticas e suas relações com a sociedade — pois, além de a construção da metáfora ser corriqueira, ou melhor, absolutamente programática, à época; efetivamente a obra de Francis Haskell é um monumento sem igual nesse campo científico.

O mecenato — conceito apropriado pela edição francesa, uma vez que o título em inglês é Patrons and painters — é compreendido por fenômeno social datado que associava artistas ao poder, possibilitando o servitù particolare . Vale dizer que o termo mecenato foi resgatado da antigüidade clássica latina, quando um círculo de autores foi patrocinado pelo poder imperial de Augusto no século I a C. , sob os auspícios de seu lugar-tenente Mecenas. Logo, a solução francesa e brasileira (e não a Inglesa) aproximam, via título, o trabalho de Haskell e seu objeto de estudo a um fenômeno sócio-cultural, distante pelo menos em 1600 anos. Contudo, tal fato não desabona a tradução tampouco o empreendimento científico, porquanto, certamente, o termo já havia sido apropriado pela cultura do período para designar fenômeno semelhante, provocando leitura metonímica do conceito. (cf.ilustração 145, p.586)

Giambattista Tiepolo (1696-1770) - "Mecenas e Augusto" (1745) - Hoje no Hermitage de São Petersburgo


O livro é proposto a partir de uma saborosa narrativa histórica que resgata a produção artística dos séculos XVII e XVIII na Itália, observando círculos do poder privados e públicos cuja preexistência determinaria, quantitativamente e qualitativamente, a própria produção. Dessa forma, são analisados cuidadosamente os mecanismos de uma patronage política, eclesiástica e econômica que propiciariam a produção artística de valor sem precedentes na história da arte.

Divido em três partes e em dezessete capítulos, o livro pretende esgotar critérios de seletividade das obras de arte do período, revisitando as estruturas de poder, primeiramente, em Roma durante o papado de Urbano VIII (Maffeo Barberini), elemento central no texto de Haskell. Observa também a importância das ordens religiosas, fundamentalmente a dos jesuítas, a dos oratorianos e a dos teatinos, além de cuidar também da existência do mecenato privado. Tais instituições seriam importantíssimas na constituição e difusão artística dessa época.

Num segundo momento, trata o livro da dispersão, ou melhor, descentralização da produção artística, que abandona Roma e sofre a intervenção de outros centros de poder, disseminando-se pela Europa, até se fixar numa nova “capital” cultural: Veneza. Nesse sentido, abre-se espaço para a avaliação de um novo sistema de poder, centrado nas relações entre estado, nobreza e Igreja, sem prejuízo da observância, por conta de uma nova situação geográfica, de influências estrangeiras e de um novo conceito filosófico, que propõem uma nova orientação para a produção pictórica, arquitetônica e escultórica.

Na verdade, o livro traz à tona certa estrutura de confluência e dispersão da produção. Resumidamente, propõe um sistema de poder, cuja centralidade estaria no Papa e em seus “sobrinhos”, que propiciaria a confluência de artistas de toda Europa (algumas cidades da Itália, França, Países Baixos, Espanha etc) para Roma, a fim de realizarem trabalhos que refletiriam o real poder do chefe da secular instituição — a Igreja Católica — diante de ameaças políticas e religiosas oriundas da Reforma. A confluência, a serviço do poder, segundo Haskell, imprimiria nas obras do XVII certa tendência artística, uma vez que, em muitos casos, as encomendas eram acompanhadas de um receituário que o artista ou arquiteto deveria seguir rigidamente. Esse fenômeno redunda em duas conseqüências: a primeira diz respeito a um processo “inflacionário” de artistas em Roma, isto é, seguem para Roma inúmeros artistas que buscam seu lugar ao sol na corte papal. A segunda, a reprodução da patronage em escalões inferiores de poder: reis, cardeais, ordens religiosas, banqueiros, etc.

Por outro lado, esta estrutura era garantida por uma opulência que, com o passar do tempo, apresentou sinais claros de desgaste pelos mais diversos aspectos, culminando com a diminuição sensível do espaço das artes em Roma, como bem esclarece o autor: “A desordem financeira que se seguiu ao pontificado de Urbano VIII veio mudar toda a situação e forneceu aos comerciantes a ocasião de realizar seus primeiros grandes negócios. A política de retração econômica implantada por Inocêncio X havia deixado os artistas desamparados. Muitos deles haviam sido atraídos a Roma e ali conquistado a sua principal clientela durante o longo e próspero pontificado de Urbano VIII. Agora o mercado parecia entrar em colapso.” (p.206)

Dessa forma, a partir do terceiro quartel do século XVII, há a dispersão dos artistas por diversos centros políticos da Europa, a saber: a Paris de Richelieu e de Luís XIV, a Londres de Carlos I e II, a Madri de Felipe IV, a Viena de Leopoldo I, etc.: “É verdade que a Espanha e a França exerceram uma influência considerável sobre os artistas italianos, doravante privados de seus grandes mecenas autóctones. Mas foi o Sacro Império Romano, depois a Inglaterra, que de fato retomaram progressivamente a sucessão desses grandes mecenas à medida que o século se aproximava de seu final.” (p. 313)

O papa Urbano VIII instaura em Roma um novo momento no fenômeno do mecenato, embora não tenha sido o primeiro nem o único a promover as artes em Roma naquela época. Uma série de fatores concorreram para que ele se tornasse figura eminente na patronage artística: o término da Basílica de São Pedro e sua conseqüente decoração, a construção do palácio familial e uma villa, apoio e enriquecimento de novas fundações religiosas no esteio da Contra-Reforma e a constituição de coleções privadas de quadros, esculturas e antigüidades pelos parentes e amigos.

Segundo o historiador, ele submeteu Roma ao tratamento mais radical que a cidade conheceu em toda sua vasta história. Foram abertas novas ruas, um eixo monumental foi traçado, unindo todas as principais igrejas construídas, ao mesmo tempo em que era pontuado por praças e fontes. Enfim, os anos desse pontificado mudaram a feição da cidade que até então era marcada por características típicas da Idade Média. Pode-se entrever certa função dessas obras: “visava em parte sufocar as dúvidas no seio da própria Itália — daí a importância do elemento ‘persuasão’, que é a outra grande característica do barroco que todos os observadores assinalaram.” (p. 61)

Tendo em vista a existência do interesse em arte, inúmeros artistas durante o início do XVII afluíram para Roma. Invariavelmente, seguiam o mesmo esquema de sobrevivência: “Em primeiro lugar, o jovem pintor tinha de achar um lugar onde morar, talvez num mosteiro, através de um cardeal que no passado fora legado papal em sua cidade natal. Por intermédio desse benfeitor, o artista conhecia algum influente prelado bolonhês que lhe encomendava um retábulo para a igreja de que era titular e encarregava-o da decoração de seu palácio familial — no qual, a partir daí o artista se instalava. Desses dois dignatários, o primeiro assegurava ao artista um certo reconhecimento público, ao passo que o segundo apresentava-o a outros mecenas potenciais, dentro do círculo de amizades do cardeal. Essa era de longe a etapa mais importante. Durante vários anos, o pintor recém-chegado trabalhava exclusivamente para um grupo restrito de clientes, até que, afinal, depois de um número crescente de retábulos, estabelecesse solidamente a sua reputação junto a um público mais amplo e pudesse tirar disso rendimento e prestígio suficientes para trabalhar por conta e aceitar encomendas de fontes diversas. Atingindo este estágio, o artista podia receber a morte de seu patrono ou mudança de regime com certa tranqüilidade de alma.” (p.19)

Havia, contudo, uma segunda possibilidade de sobrevivência para os artistas no período: o mecenato levado a termo pelas ordens religiosas que, se não independententes em relação ao Papa, possuíam alguma autonomia. Em Roma, na primeira metade do século, três ordens destacaram-se pela contribuição ao desenvolvimento das artes por conta de três construções de suma importância: os jesuítas e a decoração da Igreja Gesù de Sant’Ignazio; os teatinos e a igreja em honra de Santo André (Sant’Andrea della Valle) e os oratorianos e a Chiesa Nuova.

Porém, Haskell destaca que os principais artistas em Roma do período, Pietro da Cortona e Bernini, não puderam participar da decoração dessas igrejas a princípio, porquanto estavam ocupados nas obras de decoração da Basílica de São Pedro e do palácio familial dos Barberini (família de Urbano VIII), portanto impedidos , hierarquicamente, de realizar obras para as ordens religiosas. Vale ressaltar que ambos tivessem estreita relação com os jesuítas, não trabalharam num primeiro momento na decoração da Gesù, que, segundo os críticos, haveria de ser uma das maiores glórias do barroco italiano. Entretanto, após a morte de Maffeo Barberini em 1644, estas obras puderam receber a atenção destes artistas, que contribuíram para que elas se tornassem grandes monumentos.

Mesmo sem a participação de Bernini e Pietro da Cortona, estes empreendimentos arquitetônicos sofreram a intervenção de nomes como Gaulli, Caravaggio, Lanfranco e Baciccio, entre outros, e foram resultado “de uma síntese de forças contrárias, que se opuseram com maior ou menor virulência durante todo o século XVII” (p. 118). Tal afirmação, extremamente pertinente, indica uma avaliação muito interessante, consumada por Haskell, ao opor os interesses pessoais do Papa aos das ordens religiosas, ou, mesmo, os interesses daqueles que detinham o poder espiritual aos daqueles que detinham o poder econômico.

Nada mais natural que uma cidade, para a qual confluíam fortunas advindas de diversas partes da Europa, possuísse mais de um centro de poder econômico, isto é, seria pouco verossímil crer que, em Roma, nessa época, apenas o Papa detivesse todo o poder econômico. Dessa forma, Roma fervilhava de membros de uma alta casta econômica cuja única função é integrar grupos de amateurs e de virtuosi. Assim, há mais um tipo de mecenato: o privado. Sua principal característica e única preocupação era seguir a moda ditada pela corte papal no que se refere às artes.

Estes colecionadores possuíam coleções absolutamente invejáveis tanto dos artistas “modernos” (leia-se aqui barrocos) quanto dos antigos (renascentistas). Além do mais, tinham uma enorme preocupação com as antigüidades clássicas greco-latinas. Haskell, neste capítulo, faz uma compilação daquelas que foram as maiores coleções particulares de Roma no período, indicando no que tais amateurs influíram na consolidação do estilo. Dentre os muitos amateurs, o autor destaca três: o Marquês Giustiniani, Camilo Massimi e Cassiano dal Pozzo, cuja coleção de antigüidades constitui peça de grande valor científico até hoje, pois empregara grandes mestres do quilate de um Poussin para elaborar cópias das antigüidades encontradas na cidade. A partir dessas cópias foi constituído aquilo que o próprio Cassiano chamou de Museu de papel (Museum Chartaceum).

Segundo Haskell, para Dal Pozzo “os vestígios de Roma antiga eram os testemunhos fragmentários de um mundo desaparecido cujos valores apresentavam o maior interesse intrínseco. Por conseqüência, tudo o que subsistira era importante, pois mesmo o baixo-relevo mais danificado ou a inscrição menos perfeita podia esclarecer algum costume importante”. (p.172)

O último mecanismo de divulgação de obras de arte analisado por Haskell é a relação das obras com o grande público, por meio das sucessivas exposições a que o século assistiu e por meio da atividade dos comerciantes de arte. Na verdade, a presença dos mecenas privados, de certa maneira, incentivou o cultivo das artes em esferas mais miúdas das população, ou seja, o monopólio da aristocracia e da Igreja foi sendo paulatinamente quebrado. “A chegada em Roma de uma multidão cada vez maior de turistas e a crescente instabilidade da economia transformaram pouco a pouco as condições do mecenato, e viu-se multiplicar o número dos comerciantes de arte que tratavam diretamente com os artistas.”(p.204)

Haskell salienta que esses comerciantes gozavam de péssima reputação em Roma, pois, várias vezes, agiam de forma a coibir o contato direto do artista com seu cliente, ou mesmo, incentivavam a circulação de cópias das obras. Subtraindo-se a flagrante desonestidade desses marchands, o historiador tece comentários acerca da degradante atividade desses comerciantes que, em geral, eram considerados aviltadores das obras, o que, seguramente, é uma proposição extremamente romântica, posto que supervaloriza a atividade artística em detrimento da atividade comercial.

Por outro lado, a festa de corpus Christi, a de São Bartolomeu, a de São José e a de San Giovanni Decollato, com o desenrolar do século, tornaram-se o centro de contato das grandes obras com o grande público. Nestas festas, realizadas em quatro datas distintas do ano, os artistas, com o fito de honrar um santo e seus devotos com um grande espetáculo decorativo, expunham suas obras. No entanto, as mesmas não podem ser consideradas de forma isolada. Antes, devem ser observadas como possibilidade de contato da obra com um público que jamais poderia adentrar a um palácio familial.

Haskell vai mais longe, ao propor que mesmo os estrangeiros as utilizavam como meio de introduzir em Roma a arte de culturas estrangeiras. Nesse sentido, as exposições contribuíram para, primeiramente, tornar a produção artística um “negócio público” e, em segundo lugar, inserir na produção romana características alienígenas.

Esta data possui um valor marcante dentro da estrutura do mecenato romano. A morte de Maffeo Barberini, o Papa Urbano VIII, gerou dentro do círculo artístico que o cercava um grande desconforto, uma vez que ele próprio, agora morto, e seus sobrinhos, apesar de cardeais da Santa Madre Igreja, não mais detinham o poder de financiamento das artes em Roma e, com isto, grandes pintores, arquitetos e escultores viram-se numa situação absolutamente desconfortável para trabalhar. Poussin, por exemplo, um ano após a morte afirma: “As coisas em Roma mudaram muito sob o papado atual, e não desfrutamos mais de qualquer favor especial na corte”. (p. 243)

Apesar disto, alguns artistas ainda conseguiram manter seu status quo, como é o caso de Bernini. Sob o pontificado de Inocêncio X e sob os auspícios de Camilo Pamphili, pôde desenvolver alguns trabalhos monumentais como a Fonte dos Quatro Rios, na Piazza Navona e, ainda, a construção de San Andrea al Quirinale. Contudo, os artistas mais jovens sofreram muito com a mudança de direção, imposta pelo novo papado. Segundo o historiador, tal fato esclarece o avanço de importância dos marchands e dos comerciantes de arte que passaram a ser responsáveis pela venda da produção em outros centros da Europa, disseminando as características do estilo ao mesmo tempo em que, por conta das encomendas, passavam a sofrer uma certa influência de outras escolas e de outros gostos. Em 55, Inocêncio X morre e assume Alexandre VII que, de certa forma, resgata o vigor da corte dos Barberini. Contudo, o declínio das artes em Roma já se fazia arraigado e os novos centros passam a receber os artistas italianos.

A partir da segunda metade do século, raríssimos eram os pintores italianos que não recebiam de clientes estrangeiros uma parcela significativa de encomendas. “Até a queda dos Barberini, as oportunidades de trabalho em Roma eram tão grandes que poucos governantes estrangeiros logravam vencer a supremacia dos papas. Com o declínio do mecenato papal, no entanto, a situação inverteu-se e muitos pintores tomaram consciência das extraordinárias oportunidades oferecidas pelo estrangeiro”. (p.276)

Iniciada a dispersão dos artistas pela Europa, talvez a Inglaterra seja o maior exemplo da importância que este fato imprimiu não só no âmbito das artes como, também, no da política. O isolamento impresso pela Contra-Reforma a este Estado começa a sofrer refluxo. Carlos I, após sistemáticas tentativas de contratar um artista italiano para sua corte, consegue contratar Orazio Gentileschi. Mais tarde é “coroado” por um busto de Bernini, elaborado a partir de uma obra de Van Dyck.

A França, que desde a época de Richelieu insistia na contratação de Bernini para realizar algumas obras, sob as benesses do Cardeal Giulio Mazzarino, passa a receber sistematicamente visitas de inúmeros artistas italianos que passam a gozar de certa penetração na corte francesa. O próprio Bernini irá dedicar-se a uma obra fantástica que é o busto de Luís XIV, considerada por muitos como “o registro mais veemente do absolutismo” na história das artes visuais (cf. ilustração 69, p.309). Com efeito, a França do período, segundo Haskell, supera a qualquer outro país, ou mesmo, coligação de países da Europa. no poderio militar, na literatura e em todas esferas.



Louis XIV - Bernini - Château de Versailles



Velázquez, talvez um dos maiores expoentes do período no âmbito da pintura, já há algum tempo mantinha contatos estreitos com a pintura italiana. Como membro da Accademia di San Luca e da Congregazione dei Virtuosi, podia praticamente ser considerado um italiano. Portanto, as relações entre os pintores italianos e a Espanha já estavam, até certa medida, consolidadas. No entanto, a partir do fim da primeira metade do século, Felipe IV “não saciado pelos serviços de Rubens e Velázquez” (p.279) encomendou diversas obras a Lorrain e Poussin, porque, “conservava o maior interesse pelo cenário romano”.

Dentre os centros políticos europeus que durante o XVII receberam artistas italianos e, muita vez, imprimiram influência na produção artística do período, Haskell destaca a Viena de Leopoldo I, a Liechtenstein de Eugênio e a Pommersfelden da família Schönborn. “Não há dúvida de que o mecenato alemão foi decisivo para a própria existência da pintura” (p.317). Por exemplo, o nu feminino, sob pressão dos príncipes alemães, adquire uma importância até então ignorada e que jamais será superada em período posterior (cf. ilustração 72, p.318 e 73, p. 319).





Marcantonio Franceschini - Diana e Acteão - Liechtestein Museum



Guido Cagnacci - A Morte de Cleópatra - Kunsthistorisches Museum - Viena



Caso não houvesse um capítulo dedicado à dispersão provinciana da obra barroca, a narrativa histórica de Francis Haskell,certamente, poderia induzir o leitor a um erro grave, pois poder-se-ia imaginar que a arte deste período só circularia nos grandes centros políticos, o que é absolutamente inverossímil. Nesse sentido, o livro trata pontualmente de alguns mecenas, residentes fora dos grandes centros políticos que propiciaram o desenvolvimento dessa arte. Destacam-se, em Nápoles, Gaspar Roomer e Antonio Ruffo (cf. ilustração 82, p.346), possuidor de nada menos que 189 quadros de Rembrandt; em Florença, a família Rosso e Ferdinando de Médicis; em Ferrara, Tommaso Ruffo (cf. ilustração 83, p. 361) e, por fim, em Macerata, Raimondo Buonaccorsi.

Velázquez - Juan de Pareja - MET - Nova Iorque

Muito embora estes mecenas não residissem em Roma, foram capazes , em suas próprias coleções, de refletir a variedade de gostos — característica marcante e mais sedutora do barroco — além, naturalmente, de difundir características autóctones da escolas provincianas nas quais estavam absolutamente imersos. Por outro lado, amiúde, a distância do centro do poder propiciava em alguns casos um desinteresse pelo cânone romano. Portanto, muitos pintores que estavam em desacordo com os dogmas impostos pela escola romana e haviam sido desqualificados na corte papal, já na província puderam “dar livre curso a um gosto que repousava sobre cânones e valores completamente diferentes”. (p.352)

A terceira e última parte do livro trata de Veneza. A rigor, o sistema proposto pelo autor para estudar a questão do mecenato romano é reproduzido ipsis litteris em Veneza. Ou seja, observam-se o mecenato oficial, o das ordens religiosas e o privado, nesta seqüência. Há, contudo, um detalhe importante que deve ser pensado diante desta leitura: a cronologia proposta.

Ao estudar o mecenato desta importantíssima cidade italiana, Haskell demonstra sublinarmente que o barroco lá constituído é tardio, isto é, em Veneza o estilo desenvolve-se em pleno XVIII, o que poderia, de certa forma, para o leitor brasileiro, aproximá-lo daquele que se desenvolveu em terras brasileiras, mormente em Minas e na Bahia, no que diz respeito às práticas arquitetônicas, pictóricas e escultóricas, haja vista, por exemplo, as obras de Aleijadinho e Ataíde em Vila Rica.
Tal fenômeno, entretanto, não pode ser reproduzido, se analisada a produção literária, uma vez que, no XVII brasileiro, as práticas letradas de Gregório de Matos e Pe. Antonio Vieira indicam a apropriação do estilo na colônia, enquanto o XVIII já é marcado pelo desenvolvimento do movimento academicista, inserido completamente no ideário do iluminismo europeu.

A explicação desse barroco tardio em Veneza é, de chofre, oferecida pelo historiador: “Ao longo do século XVIII, uma surpreendente contradição perpassa toda a história de Veneza. Esta cidade era um dos grandes centros cosmopolitas da Europa, um famoso ponto de encontro do turismo internacional, e o governo favorecia esse tipo de turismo por todos os meios possíveis. No entanto, esse mesmo governo fazia esforços sistemáticos para manter Veneza ao abrigo das influências estrangeiras e para torná-la impermeável a todas as forças que operavam uma mudança nas noções dos homens e na sua concepção do mundo, e que foram englobadas sob o termo genérico de Iluminismo”. (p.399)

As correspondências entre os mecenatos romanos e venezianos podem ser avaliadas a partir de simples equações: Bernini e Pietro da Cortona estão para Roma assim como Tiepolo está para Veneza. Ou, ainda, da mesma forma que jesuítas, oratorianos e teatinos foram fundamentais para a produção artística romana no XVII, os carmelitas, dominicanos e capuchinhos o foram para Veneza do XVIII. Contudo, há de ressaltar diferenças na estrutura do estado veneziano do XVIII em relação à corte papal do XVII em Roma, e tais diferenças são bem estabelecidas pelo historiador.

Enquanto em Roma o poder religioso confundia-se com o próprio estado político, em Veneza sempre existiu uma tensão entre ambos, uma vez que certa “burguesia mercantil” passa a disputar com a aristocracia tradicional o poder político e econômico. Se é certo que a nobreza tradicional da cidade era quem dirigia a Igreja, via de regra, o tensionamento transferia-se para o eixo burguesia emergente e ordens religiosas. Assim, a burguesia, segundo o autor, jamais desempenhará qualquer poder político ou cultural em Veneza, fato que demonstra, claramente, o quanto esta cidade, apesar do incrível fluxo cosmopolita, era tradicional e refratária às mudanças ou inovações. Dessa maneira, a arte produzida em Veneza será considerada conservadora pelos críticos, operando elementos distintivos da Contra-Reforma. Destarte, coadunada com aquelas praticadas em países em algo semelhantes: Espanha e Alemanha do Sul.

Na primeira metade do século XVIII, assim como ocorreu em Roma na segunda metade do XVII, contudo por motivos diferentes, os artistas venezianos passam a circular pela Europa, constituindo, assim, uma segunda “diáspora” dos italianos. No entanto, salienta Haskell que não havia apenas uma Veneza, a do conservadorismo, da censura e da Contra-Reforma; havia outra que era a Veneza dos turistas e dos dilettantes, e esta produziu um novo tipo de pintura que ora tendia para o rococó ora para o neoclássico e que , ao contrário da outra, poderia ser digerida mais avidamente por países como França e Inglaterra que já se encontravam inseridos no contexto do liberalismo e do Iluminismo.

Assim, Veneza contribui para circulação e divulgação artística sob dois prismas distintos: o primeiro, o do barroco cujos expoentes são Tiepolo e Piazzetta; o do segundo, rococó ou neoclássico que possui como representantes Sebastiano e Marco Ricci, Pellegrini, Bellucci, Canaletto e Zuccarelli. Estes, sim, operam “novas e sutis combinações de cores, com malva e verdes, vermelhos translúcidos e prateados” que reforçam um singular frescor de uma nova pintura que emerge no XVIII.

A contradição indicada pelo historiador pode ser facilmente aferida a partir de um tipo de pintura erótica que surge na cidade, fora do círculo austero do poder: “Era, sobretudo, um porto de paz, ainda prodigiosamente rico, onde o governo encorajava seus prazeres, ansioso que estava por conquistar o maior número possível de amigos; era uma cidade cujos palácios transbordavam, como em nenhuma outra parte da Europa, de obras-primas facilmente apreciadas por sua beleza sensual, e de cortesãs que eram famosas por seus encantos. Não é de surpreender que tenham desejado registrar em telas, que pudessem levar para seus reinos guerreiros ao norte, a lembrança da cidade e de suas mulheres”. (p.451)

Mantendo a estrutura proposta de simetria do livro, passa o autor a avaliar o mecenato privado de Veneza que, diferentemente de Roma, estava centrado em três estrangeiros, residentes em Veneza. São eles o Cônsul Joseph Smith, o Marechal Schulemburg e Sigismund Streit. A importância desses mecenatos é fundamental para o divulgação da pintura veneziana, porquanto, sistematicamente, estes mecenas enviaram para o exterior obras de autores da cidade, além de patrocinar outros cuja obra já se distanciava do estilo vigente, como é o caso de Rosalba Carriera.

Talvez um dos grandes momentos da obra de Francis Haskell esteja reservado para seu final, pois, no momento em que o leitor identifica a questão do barroco tardio de Veneza, automaticamente, se questiona: como uma cidade, com um fluxo comercial tão grande, teria ficado imune às inúmeras publicações iluministas do período? Nesse sentido, o autor propõe: “Veneza permanecera imóvel — ou pelo menos parecia— mas a Europa havia mudado. Nos últimos dez anos do século XVII, a Inglaterra e a França haviam visto os inícios de uma revolução intelectual que iria destruir os alicerces sobre os quais estava assentada a civilização barroca”. (p.521)

Em países como França e Inglaterra, a supremacia absoluta de qualquer autoridade era seriamente questionada, a tolerância e a diversidade passavam a ser aceitas e o comércio substituía a propriedade como referência de riqueza. Tais transformações afetaram sensivelmente a natureza do mecenato e das artes. Dessa maneira, passa a haver um interesse crescente por um realismo tingido de sátira ou coberto por um certo didatismo. No bojo destas mudanças, uma nova investigação acerca do papel da pintura, que deveria representar a vida de um país, foi empreendida.

Na Itália estas idéias começaram a ser discutidas, segundo Haskell, em 1690, quando foi fundada a Sociedade Arcádia, que marcou, pelo menos no âmbito da literatura, uma ruptura com a cultura do barroco do século XVII. Porém, a despeito das publicações parisienses, a Itália demorou a reconhecer as mudanças, e os artistas, que desejassem ter um contato mais profundo com as mesmas, deveriam ir a Paris e a Londres. Nesse sentido, excetuando algumas possibilidades indicadas por Haskell, Veneza é dentre as cidades italianas a mais resistente às idéias difundidas no XVIII. Dois nomes foram importantes para a consolidação dessas novas idéias em Veneza: Antonio Conti e Carlo Lodoli. Conti manteve contatos diretos com Newton a quem conheceu em 1715 e Lodoli dirigiu uma escola na qual as leituras principais eram Bacon e Galileu, além de se corresponder com Montesquieu.

O primeiro efeito das novas idéias “esclarecidas” sobre as artes, afirma o historiador, foi a reavaliação da função didática da pintura. Isto seguramente deve-se a um novo esforço de recuperar valores classicizantes da arte. Vale lembrar que os dicursos desde a antiguidade clássica greco-latina possuiam três funções: deleitar, persuadir e ensinar. Nesse sentido, como eram inquestionáveis, durante o barroco, o deleite e o caráter persuasório dos discursos e das pinturas, este novo momento atenta para a valorização da função didática que será uma característica do estilo neoclássico.

Enfim, o livro de Francis Haskell, pelo que se pode observar, é um caminho necessário para quem pretende conhecer as obras artísticas do período. Não se limita, pois, a ser um manual ou um catálogo de obras e autores; vai além, e, a partir de um estudo incansável das relações sociais de uma época, consegue resgatar um sistema de produção e disseminação das artes no desenrolar de dois séculos. Fornece inúmeras fontes possíveis de pesquisas para aquele que pretende se debruçar sobre a história da arte e, simultaneamente, pode ser simplesmente degustado por aquele que deseja conhecer um pouco mais sobre as artes e que não tenha a pretensão de se tornar um connaisseur.

Outra característica a ser salientada é o vasto material iconográfico proposto, afinal são mais de 150 ilustrações que, via de regra, são analisadas pelo autor com uma sensata pertinência. Nesse sentido, a obra de Haskell jamais perde de vista um certo didatismo, por vezes esquecido pelos responsáveis pela divulgação científica. Por outro lado, seu livro deleita o leitor não só pela narrativa histórica proposta como também pelo contato com as belas obras do barroco italiano e, por fim e fundamentelmente, nos convence de uma tese, amparada por argumentos muito bem construídos e constituídos. Assim, pode-se dizer que Haskell não só cumpriu tecnicamente as funções de um discurso bem construído como, também, erigiu um monumento dificilmente superável no âmbito da história das artes.