quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Eneida de Virgílio e a tradição épica ocidental

Manuscrito d' A Eneida




Por Paulo Martins


Antes de qualquer coisa, faço aqui um pequeno excurso. É comum, todas as vezes que começamos a ler o maior e melhor poema épico em língua portuguesa, Os Lusíadas, nosso professor de literatura associar a idéia de Renascimento à tradição cultural greco-romana e, nesse caso específico, à tradição literária da poesia épica, mostrando o quanto Homero é importante como modelo que foi seguido nesse momento histórico dos séculos XV e XVI. Realmente, não há como negar que as epopéias homéricas, A Ilíada e A Odisséia, como frutos e flores de uma civilização são marcos incontestes do mundo grego, afinal, até mesmo Platão, séculos depois da composição desses dois poemas, afirmara, tratando de Homero em seu livro A República, que “este poeta ensinou a Grécia”.

Homero

Nesse sentido, se o poeta grego é o cerne da civilização helênica, também o seria para os romanos e, por conseqüência, para nós, ocidentais. Contudo, a poesia grega homérica possuía uma característica importante e diferenciada se comparada, por exemplo, ao Camões épico: a oralidade. Isto é, aquela poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C. e transmitida oralmente por cantores (os aedos) antes de ser consignada pela escrita a partir do século VII a.C. Tal propriedade é importantíssima, pois determina características formais no poema, a saber: as repetições sistemáticas, a presença de epítetos (aspectos exemplares das personagens), as formulações lapidares que percorrem os milhares de versos das obras. Assim, se por um lado Homero é semelhante a Camões, por outro ele se distancia gravemente do mesmo, uma vez que o meio, pelo qual seus poemas são transmitidos, era diverso: o primeiro a voz; o segundo, a escrita.


Camões

Bem, se proponho Homero, em certa medida, distante de Camões, a pergunta mais óbvia seria: Quem é o êmulo do poeta português na Antigüidade Clássica? E a resposta é imediata e direta: Virgílio. Tal afirmação seria até certo ponto irresponsável se não existisse um argumento de autoridade que a respaldasse. Todos sabem que Dante Alighieri (1265-1321), o autor da Divina Comédia, no século XIV, é um dos responsáveis pela grande síntese da história literária ocidental, ao associar a cultura medieval católico-cristã ao mundo clássico greco-latino, afinal, a idéia de paraíso, purgatório e inferno é, a um só tempo, cristã e pagã. Sem falarmos da presença de uma personagem fundamental no texto de Dante que é seu acompanhante ao mundo dos mortos: Virgílio. Vejam, não é Homero que o acompanha! Ainda hoje, também, nesse nosso mundo pós-moderno, “pós-tudo” ainda ecoa a voz de um poeta e crítico norte-americano radicado na Inglaterra nos anos 20 do século XX, T.S. Eliot (1888-1965). Ele nos informa sobre importância de Virgílio para a cultura ocidental ao propor: “Nenhuma língua moderna pode pretender produzir um clássico no sentido que considero Virgílio um clássico. O nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é Virgílio.”


Dante

Outras indagações poderiam surgir a partir desta conclusão de Eliot que assumo como minha: O que fez Virgílio então para receber tamanha dignidade? O que produziu? Como e quando escreveu?

Nascido em Mântua, norte da península itálica, em 70 a.C., Virgílio produziu três grandes obras poéticas: As Bucólicas, As Geórgicas e A Eneida. Sua época é a do início do Império, isto é, momento em que a República romana sucumbe como conseqüência das guerras civis e da ditadura de Júlio César. Otávio Augusto assume a função de Príncipe e, a partir daí, se estabelece uma sucessão, em certa medida, hereditária e que só irá se extinguir com a queda do Império do ocidente, quinhentos anos mais tarde (em 476 da nossa era). Virgílio como escritor está associado à imagem de Augusto cujo lugar-tenente, Mecenas, aplica-se na constituição de um círculo cultural que serve ao poder, produzindo propaganda para feitos e poder do novo líder. Nesse mesmo grupo, surgem poetas como Propércio e Horácio (tão importantes quanto Virgílio na tradição literária ocidental).

A Eneida, a despeito do fato de ser uma poesia encomendada com a finalidade de exaltar o poder de Augusto, inaugura uma nova possibilidade de constituição da épica, tendo como meio a escrita e, ainda, tendo por trás de si uma tradição literária que inclui Homero além dos poetas da época helenística. Constituída por 12 cantos, a épica virgiliana trata, como argumento, da fundação de Roma e tem como personagem principal Enéias, guerreiro troiano que foi incumbido pelos deuses a fundar a nova Tróia, Roma. Em sua saga, Enéias percorre um longo caminho até sua chegada à região do Lácio, percurso que, do ponto de vista da estrutura do poema, dura exatamente os seis primeiros cantos. E, assim, ao chegar ao local que lhe fora determinado, age, seguindo sua sina, empreendendo guerras de conquista, afinal é um herói e como tal está predestinado a combater. E essa ação heróica percorre os seis cantos finais da epopéia.

Se observarmos mais atentamente o enredo, notaremos que ele está plenamente de acordo com a proposição do poema, afinal diz Virgílio logo no primeiro verso “Arma uirumque cano” (“As armas e o homem canto”) e isto significa que o poema tratará, de um lado, das desventuras de Enéias (homem) e, de outro lado, das campanhas bélicas empreendidas por ele (armas). Vale lembrar que, para os poetas romanos, a imitação (a mimese) é fundamental, portanto não seria possível produzir um texto épico que desconsiderasse Homero. E o poeta de Mântua, engenhosamente, estabelece a conexão de seu poema com a tradição, afinal de contas, essas desventuras do herói relacionam-se com o seu vagar pelo Mar Mediterrâneo, exatamente aquilo que ocorre na Odisséia, quando Ulisses é posto a realizar tarefas semelhantes até conseguir chegar aos braços de Penélope, sua fidelíssima esposa. Já na segunda parte do poema (os seis cantos finais) estão coadunados com o outro poema homérico (A Ilíada), uma vez que o fulcro é guerra. Curioso é observarmos que essa mesma estrutura permanece viva na épica moderna de Camões. Não é por acaso que em Os Lusíadas o homem Vasco da Gama e suas desventuras são decantadas.















Augusto e Vasco da Gama

Na verdade, não há, na literatura dita ocidental, nenhum poema épico que não se apóie na estrutura d’A Eneida e segundo Curtius “Para todo o fim da Antigüidade, para a Idade Média, como para Dante, é Virgílio ‘o altíssimo poeta’”.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Curso de Pós-graduação na FFLCH/USP - 1o. Semestre de 2008

No primeiro semestre de 2008, a partir do dia 2 de abril, será oferecida a Disciplina de pós-graduação no programa de Letras Clássicas da FFLCH/USP: "Lendo imagens: a representação pública romana na República e no Império" (FLC5967).

Início: 2 de abril de 2008
Término: 25 de junho de 2008
Dia da semana: Quarta-feira
Horário: das 8:30 às 12:30
Local: Prédio das Ciências Sociais/Filosofia - FFLCH/USP
Docente: Prof. Dr. Paulo Martins


Inscrições

Alunos Especiais: 1 - 11 de Janeiro de 2008 (encerrada).
Alunos Regulares já matriculados anteriormente (http://www.fenix.usp.br/): 21 de Janeiro - 1 de Fevereiro de 2008.
Alunos Regulares Ingressantes: 11 - 15 de Fevereiro de 2008 no serviço de Pós-graduação da FFLCH, no prédio da Administração da Faculdade.


Mais informações no serviço de Pós-graduação da FFLCH/USP.

Observação


Caso exista interesse em assistir ao curso como aluno-ouvinte, enviar e-mail para pamar62@yahoo.com.br, indicando qual é o interesse no curso.

Segue abaixo a apresentação do curso:


FLC5967 - Lendo Imagens - A Representação Pública Romana na República e no Império


I. Objetivos

O curso visa a considerar as práticas imagéticas e textuais como representações de personagens da história romana nos séculos I a.C. e I d.C.. Para tanto, parte da constituição de procedimentos retóricos e poéticos para o discurso verbal e da preceptiva pictórica e escultórica na Roma Republicana e Imperial para aferição do discurso não-verbal. Dada a escassez desta última, resgatar-se-á certa forma mentis romana a partir da consideração de um vocabulário imagético, que, como consuetudo e ius, delimita a recepção apta para esse tipo de linguagem, e daí, explorar-se o efeito produzido por essas representações, isto é, a recuperação das afecções da recepção e as finalidades dessas linguagens dentro do poder público constituído no período.


II. Justificativa
Como a interseção entre linguagens é hoje alvo de vários estudos nas mais diversas épocas e sociedades, é necessário que, num programa de pós-graduação em Letras Clássicas, se forme este tipo de reflexão interdisciplinar que atente para práticas artísticas dentro de uma visão mais eclética e geral, observando-se pontos comuns e divergentes dentro da perspectiva do uso das linguagens na sociedade clássica, mais especificamente, romana. Mais do que a simples aferição de procedimentos técnicos, é fundamental a recuperação das afecções que caracterizam a fruição das obras imagéticas e textuais, pois essa delimita certo tipo de público para o qual eram produzidos os textos imagéticos e verbais.


III. Conteúdo

1. Questões Metodológicas I: História literária e historia da arte. As marcas da descontinuidade das representações. A impossibilidade de existência de “o Clássico”:

a. Plínio, o velho – História Natural, Livros XXXIV, XXXV e XXXVI
b. Marcas da elocutio nas representações arcaica, clássica e helenística:
i. O geométrico




ii. As kórai e os kouroi



iii. O movimento clássico




iv. O cânone de Policleito



2. Questões Metodológicas II: Homologia entre o discurso verbal e visual: Uma doutrina.

a. Aristóteles: Arte Poética, Arte Retórica, Política

b. Platão: A República, O Sofista

c. Cícero: O Orador, Sobre o orador, Sobre a invenção
d. Horácio: “Vt pictura Poesis
e. Quintiliano: Instituições Oratórias, Livro XII.
f. Epicuristas, Estóicos e a segunda sofistica:
i. Lucrécio
ii. Marco Aurélio
iii. Hermógenes, o rétor


3. Realismo e Idealismo. Público e privado. Marcas da elocutio. Virtus e uitium:

a. A tradição itálica – Identidade entre modelo e representação


b. A tradição helênica – Ausência de modelo




4. A historiografia das “vidas”: Suetônio e Plutarco. A retórica epídititica:

a. Anônimo, Retórica a Herênio
b. Menandro, o retor, Dois Tratados de Retórica Epidítica


5. Éthos e páthos: Afecções. Disposição anímica: Phantasiai:






a. Aristóteles: Sobre a alma, Livro III.

b. A dicotomia entre alma e corpo. A fisionomia como reflexo da alma. Os tratados de Fisiognomonia.


6. A moeda como instrumento de propaganda política: a circulação do poder:




a. O meio circulante.

b. As oficinas e a cunhagem
c. Possibilidades de representação:

7. O passado como memória. O poder privado das máscaras mortuárias e o rito dos antepassados:



a. Políbio - História, Livro VI

b. A extensão do poder público ao domus. Os retratos de Fayoum.


c. Exempla como Argumentatio

8. O presente como poder. “Certa microfísica” do poder. Monumento e Documento.


a. Res Gestae Divi Augusti




b. A coluna de Trajano.


c. Colossum de Constantino.




9. O futuro como perpetuação das imagines: Ars longa. A representação dos Deuses:


a. Hinos Homéricos – Apolo e Zeus

b. Poesia Lírica - Afrodite

c. Elegíaca – Eros/Cupido/Amor

d. Priapéia Grega e Latina – Priapo


10. A divinização dos imperadores: Vita breuis. O deus como imperador e o imperador como deus. O Sublime.



a. Augusto/Júpiter do Hermitage




b. Augusto/Netuno do Museum of Fine Arts, Boston




c. Augusto/Apolo do Museu Arqueológico de Tessalônica e do Museu do Teatro Romano de Arles


d. Augusto em:
i. Propércio
ii. Horácio
iii. Virgílio – A Eneida, Canto, VI
iv. Ovídio



11. A parataxe e a hipotaxe na representação. Sintaxe das representações.


a. A táxis das tessarae nos mosaicos



b. A táxis dos mistos: A cobra Glikon. O Hermes-Thot. A Esfinge.
As Sereias.



c. Homologia entre o Império Romano e Carolíngio. A sintaxe da “Cruz de Lotário”



i. Dispositio/táxis como argumentatio.


12. Euidentia e ekphrasisDescriptio e narratio: Descritividade e narratividade

a. Homero - Ilíada

b. Virgílio - Eneida

c. Salústio – Conjuração de Catilina

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

W.H. Auden

Ao republicar o texto sobre Poesia Alheia de Nelson Ascher que fora publicado no Jornal da Tarde em 1998, lembrei-me de uma belíssima cena de Quatro Casamentos e um Funeral, filme em que é falado o poema Funeral Blues de Auden.
Funeral Blues
Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood,
For nothing now can ever come to any good.

Tradução de Nelson Ascher:

Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

Poesia Alheia por Nelson Ascher

ASCHER, NELSON - Poesia Alheia. 124 poemas traduzidos. São Paulo: Imago. 1998. 378 páginas.



Paulo Martins



Poesia Alheia, livro de poemas traduzidos por Nelson Ascher, que acaba de ser publicado pela Imago, seguramente, é um marco na trajetória profissional deste poeta e crítico. Pelo menos desde 1983, quando publicou o pequeno grande livro Ponta da língua, que, estranhamente, não consta de sua bibliografia, Ascher nos encanta com sua capacidade de produzir boa poesia e, igualmente, excelente tradução poética, caso raro nos dias de hoje.
Infinitos seriam os argumentos que comprovariam tal acertiva, contudo três possibilidades já são válidas para que possamos incluí-lo no rol de grandes tradutores em língua portuguesa: sua consciência no trato do material poético a ser vertido, seu indiscutível conhecimento das línguas de origem e sua concisão.
Segundo ele próprio, “a tradução de poesia é uma arte à parte, singular, cercada por todos os lados de mal-entendidos e permeada, em todos os níveis, de paradoxos. Ela parece poesia, mas não é poesia; assemelha-se e, às vezes, confunde-se com a tradução propriamente dita (...), mas não é a tradução propriamente dita”. Esta consciência poética traz à tona conseqüências práticas dentro de sua “poesia-não-poesia traduzida" , ou seja, ao deparar-se com o empreendimento de tradução, Nelson sabe – e isto foi escrito por ele mesmo – que deverá trabalhar com um material que não foi elaborado “COM palavras”, como num romance ou numa novela, mas com um material composto “DE palavras”, a poesia.
Sua perspicácia, portanto, deriva da capacidade de compressão da importância da palavra, unidade singular, tijolo e cimento da construção de elefantes (perdoe-nos Drummond) ou, simplesmente, de poesia. Assim, tem a consciência de que o poeta utiliza todas, ou quase todas, as possibilidades semânticas, sonoras e significativas de seu material, buscando um resultado final denso, ou melhor, condensado o qual Pound tão bem soube expressar no ABC da Literatura , quando retomando Basil Buting, afirmava que a boa poesia observa a saturação da linguagem e, portanto, nada mais natural que o verbo alemão “Dichten” (Condensar) corresponde ao substantivo “Dichtung”, poesia.
Dessa forma, segundo Ascher, o resultado da tradução de poesia não é poesia, porquanto acata a proposição de Robert Frost que indica: “poesia é o que se perde na tradução”. Mas o que seria isto que resulta de um imenso engenho e arte? Outra solução não há, a não ser a de que o universo da tradução constitui um gênero da literatura no qual há uma interação física entre dois mundos, dois textos e dois indivíduos. Destarte, o resultado final desse “árduo trabalho” será algo que, apesar de calcado numa origem específica, será algo diferente: a poesia-não-poesia que jamais poderá ser considerada certa ou errada e tão somente boa ou ruim.
Realmente, o livro de Ascher compõe instrumentos inumeráveis para levar a cabo essa proposta de gênero literário, a começar pela diversidade temporal e espacial de seu manancial primeiro, o poema em língua estrangeira, diacronicamente tomado. Isto é, se o intuito é observar o resultado como gênero específico, pouco importa recorte temporal ou espacial, uma vez que o resultado é uma obra diferenciada, um génos específico, e este sim deve ser avaliado.
Noutro sentido, esta intenção soterra a possibilidade, talvez romântica, de se ler poesia estrangeira traduzida e, neste caso, quem deseje ler Yeats, Shakespeare, Borges, Horácio, cummings, Safo, Valéry, Ungaretti, Hölderlin não terá outra opção a não ser aprender, e muito bem, inglês, espanhol, latim, grego antigo, francês, italiano e alemão. E ainda, haverá de ter muito claro em mente que, ao ler as traduções desses autores, não estará lendo estes autores e, sim, um tradutor dos mesmos. Poder-se-ia crer, pois, na limitação da poesia à circunscrição lingüística que, talvez, a tornasse menos universal. Triste, porém instigante, dado que um poema geraria uma infinidade de outros poemas, quiçá, superiores àquele os gerou.
O que surpreende na leitura de Poesia Alheia, além do próprio paradoxo do nome (a poesia é própria, é Ascher), é a habilidade técnica no trato de línguas tão diversas e tão distantes, assim como os próprios poetas que apresentam o material, a arché dos poemas do livro. Em 1983, em Ponta da Língua, já causava espanto o tratamento dado ao poema 32 do poeta latino Catulo (I a.C.), transformando um simples epigrama erótico numa inscrição romana “arqueo-erótica”.
Hoje muito mais do que em 83, Ascher produz ótima poesia para quem não conhece a língua de origem e uma excelente tradução para o caso do conhecimento dos originais. Um exemplo disso é a excepcional capacidade de reproduzir a concisão de uma língua declinada, como o latim, trabalhada originariamente por um mestre absoluto dessa língua que é Horácio. Seguramente, por mais que se tente reproduzir os efeitos propostos pelo poeta romano da época de Augusto, sempre esbarraremos em restrições de cunho econômico-poético, fato esse superado com precisão cirúrgica por Ascher.
Se consegue recuperar, economicamente Horácio, nada se pode dizer do cuidado com que trata os poetas de língua inglesa, francesa, provençal, alemã, espanhola, italiana, eslava e hebraica, tão mais próximos no tempo. Nesse sentido, o ecletismo de Ascher, que para muitos poderia soar pejorativamente, recupera o preceito poundiano de “paideuma” cuja intenção visava a propor a leitura dos melhores em diversas línguas e épocas. O que facilmente pode ser aferido, ao percorrermos os 124 poemas de Poesia Alheia.
Outro ponto que vale ressaltar é a proposta de edição bilingüe. Se aceitarmos sua proposta de texto traduzido, o que ocorrerá, ao adquirirmos o livro, é possuirmos dois ou mais, uma vez que leremos Ascher e uma gama de mais de cinqüenta poetas diferentes.
Este livro ímpar está divido em dez partes. Nove delas que compreendem grupos de poetas, ou mesmo, um poeta apenas, como é o caso de Ungaretti e de um poeta anônimo provençal, classificados pela língua de origem, e mais, uma parte primeira, à parte, dedicada a um diálogo poético, fundado no conceito de emulação, pois trabalha diacronicamente o tema Roma durante um lapso temporal de quatro séculos.
Dessa forma dialógica, nos deparamos com poemas de Janus Vitalis, Du Bellay, Szarzynsky, Heywood, Quevedo e Goethe que são observados e trabalhados por Ascher sob o ponto de vista do lugar-comum Roma em Ruínas. Os textos recuperam o conceito de fugacidade da vida diante da grandeza física do centro do maior império da Antigüidade, que deveria ser ou é eterno:
"Recém-chegado, buscas Roma em Roma
sem Roma achar em Roma e quanto vês
– arco, palácio e muro –, o que se toma
por Roma ficou velho e se desfez." (Bellay)
ou
"Procuras Roma em Roma, ó peregrino,
mas não há Roma em Roma onde as muralhas
altivas transformaram-se em mortalhas
e, em túmulo de si mesmo, o Aventino." (Quevedo)
ou
"Tudo está vivo eem teus sagrados muros, Roma
eterna – é frente a mim só que se cala? (Goethe)"
ou
"Recém-chegado que, buscando Roma em Roma,
não encontras, em Roma, Roma alguma,
olha, ao redor, muro e mais muro, pedras rotas,
ruínas, que assustam, de um teatro imenso:
Roma é isto que vês – cidade tão soberba,
Que ainda exala ameaças seu cadáver." (Janus Vitalis)
Apesar de parecer deslocada a primeira parte das demais, Nelson recupera uma estrutura imaginada, antológica, creio, procedendo a apresentação dos autores revisitados por origem lingüística. Nesse sentido, torna pública suas versões do latim que, como já vimos, primam pela concisão. Opera, portanto, uma mixagem temática que salta aos olhos dos mais atentos.
A seguir passa a compor bricolage poético: em provençal, inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, húngaro, eslavo e hebraico onde ecoam preciosidades como a Ode 1,5 de Horácio (para Pirra), To his coy mistress do Metafísico Inglês Andrew Marvell, Funeral Blues de W.H. Auden, Le Sylphe de Paul Valéry, Amor constante más allá de la muerte de Quevedo, Instantáneas de Octavio Paz, Variazioni su nulla de Ungaretti, Der Abschied de Friedrich Hölderlin e outros.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Lançamento de uma nova edição de Propércio

Na esteira da reedição de Sexto Propércio elaborada pela Harvard University Press (G.P. Gold) em 1990, a Oxford University Press lança a sua nova, que vem a substituir o fundamental trabalho de E.A. Barber (1953).




Sexti Properti Elegi
Edited by S. J. Heyworth




Price: £18.50 (hardback)


ISBN-13: 978-0-19-814674-2


Publication date: 13 December 2007


240 pages, 186x123 mm


Series: Oxford Classical Texts


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Description Presents a thoroughly readable text, prepared in the light of the most recent research Enables full understanding of the manuscript tradition for the first time Preface in English reflects on how the text should be edited and read, so making the practice of textual criticism accessible Propertius is a poet of the Augustan period, a successor of the great Hellenistic elegiac poets Callimachus and Philitas, and a precursor of Ovid. His account of his fictionalized affair with his beloved alter ego Cynthia is the purest expression of the spirit of love elegy, setting them as a pair against war, epic and (apparently) Augustus himself. The treatment of their love is tender and at times delightfully macabre, in pursuing their love beyond the grave. This is a text read by virtually all students of Classical Latin, and it is now available in a radical new edition, more readable and based on the latest research into the manuscript tradition. This is fully explained in the English preface, which also contains important comments on the way texts are edited and read. Some significant emendations discovered in the papers of A. E. Housman are published here for the first time.


Readership: Scholars and students of classics, especially of Latin poetry.
Authors, editors, and contributors


Edited by S. J. Heyworth, Bowra Fellow and Tutor in Classics, Wadham College, Oxford

sábado, 12 de janeiro de 2008

Imagines Amoris

No dia 11 de dezembro de 2007, fiz uma postagem com a tradução da elegia 2,12 de Propércio - uma ékphrasis cujo texto em latim é:


XII
QVICVMQVE ille fuit, puerum qui pinxit Amorem,
nonne putas miras hunc habuisse manus?
is primum vidit sine sensu vivere amantis,
et levibus curis magna perire bona.
idem non frustra ventosas addidit alas,
fecit et humano corde volare deum:
scilicet alterna quoniam iactamur in unda,
nostraque non ullis permanet aura locis.
et merito hamatis manus est armata sagittis,
et pharetra ex umero Cnosia utroque iacet:
ante ferit quoniam, tuti quam cernimus hostem,
nec quisquam ex illo vulnere sanus abit.
in me tela manent, manet et puerilis imago:
sed certe pennas perdidit ille suas;
evolat heu nostro quoniam de pectore nusquam,
assiduusque meo sanguine bella gerit.
quid tibi iucundum est siccis habitare medullis?
si pudor est, alio traice tela una!
intactos isto satius temptare veneno:
non ego, sed tenuis vapulat umbra mea.
quam si perdideris, quis erit qui talia cantet,
(haec mea Musa levis gloria magna tua est),
qui caput et digitos et lumina nigra puellae,
et canat ut soleant molliter ire pedes?



Hoje apresento algumas imagens não-verbais cujo cerne seja Cupido/Eros/Amor:


Pelike Seated Eros holding phiale - Museum of Fine Arts, Boston - 76.56


O Amor Punido, Nápoles

Pair of silver scyphi (cups) with relief decoration, Metropolitan Museum of Arts, New York - late 1st century B.C.–early 1st century A.D.; Early Imperial, Augustan Roman - 1994.43.1, .2

Fragmento de uma estátua de Eros - Museum of Fine Arts, Boston - 72.732 - Greek, Hellenistic or Greco-Roman Period




Estátua de Bronze de Eros Dormindo - Metropolitam Museum of Arts (MET), New York - 43.11.4 - 3rd century B.C.–early 1st century A.D.; Hellenistic or Augustan period


Statua di Eros che incorda l'arco da un originale di Lisippo, Museo Capitolino, Roma - MC0410

Eros e o Centauro - Museu do Louvre, Paris

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Alguns Eventos Internacionais

The University of Nottingham, Department of Classics, is pleased to announcethe following:

PG Workshop on Classical Reception StudiesSponsored by the Classical Reception Studies Network

Thursday, 7 February 2008: 10.00 – 16.30PG suite Trent building, University of Nottingham

Kyriaki Konstantinidou (abxkk1@nottingham.ac.uk) and Lynn Kozak(adxlk@nottingham.ac.uk)

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NORTHERN ASSOCIATION FOR ANCIENT PHILOSOPHY

CONFERENCE 2008

Newcastle University
Wednesday, 2nd - Thursday, 3rd April 2008

The 2008 meeting of the Northern Association for Ancient Philosophy will be held at Newcastle University.

The conference is supported by the Mind Association, the Aristotelian Society, the Society for the Promotion of Hellenic Studies, the Classical Association, the Northern Centre for the History of Medicine and the School of Historical Studies at Newcastle University.
For details of booking and accommodation see the conference website at http://www.ncl.ac.uk/historical/naap/naap.htm .

For further information please contact Philip van der Eijk at philip.van-der-eijk@ncl.ac.uk or James Wilberding at james.wilberding@ncl.ac.uk

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ACCORDIA & INSTITUTE OF CLASSICAL STUDIESRESEARCH SEMINARSSPRING 2008
NEW APPROACHES TO COLONIZATION: SETTLERS AND SETTLEMENTS IN ITALY AND SICILY

Tuesdays @ 17.15 in Room NG16, Institute of Classical Studies, Senate House, London WC1E 7HU, apart from April 22, which will take place in the Institute of Archaeology, 31-34 Gordon Square, London WC1H0PY. For further details, please contact Dr Kathryn Lomas, Institute of Archaeology, UCL, 31-34 Gordon Square, London WC1H 0PY (email: K.Lomas@ucl.ac.uk).Dr Kathryn Lomas

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domingo, 6 de janeiro de 2008

Ainda o Tempo...

Denário de Bronze
Anverso: DIVA FAVSTINA
Reverso: AETERNITAS - SC

Breves sunt dies hominis... sola Aeternitas longa


Se, de um lado, o tempus é segmento e é limitado, como vimos, e tão propenso à efusão lírica já que essa é a poesia do agora e do aqui; de outro lado, a aetas (idade), outra abstração humana, palavra cognata do advérbio aei grego, cujo significado é "sempre", dá conta de uma outra modalidade ou dimensão do tempo e esse é ilimitado, incontável, infinito, daí a palavra aeternitas (eternidade). Ela, aetas, nas Letras Clássicas é o tempo do mito, do herói, do deus e, por isso, filia-se aos gêneros literários cujos objetos da imitação são os homens superiores e não os homens como nós (com toda licença de Aristóteles).
Dessa maneira, enquanto a efemeridade da vida tem guarida no tempus, a perenidade da obra possui estreita relação com a aetas. Portanto, o nosso tempo e o tempo dos deuses são absolutamente distintos.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Efemeridade da vida - Tempus fugit


O início de um novo ano, principalmente para aqueles que ultrapassaram a barreira dos 40 anos, imprime certa melancolia. Ela nasce de nossa completa incapacidade de gerir a vida de acordo com a passagem do tempo. Esse conceito arbitrário e abstrato, o tempo, pode ser explicado a partir do étimo: o tempus latino tem a mesma origem do verbo grego témno, cortar, fracionar...Daí sua limitação, afinal é segmento e daí nossa limitação em geri-lo. O tempo foge, "escorre pelas mãos", pois apequenado sempre é...

Horácio talvez seja o poeta, entre os romanos antigos, que mais tenha se dedicado ao tema/lugar-comum da efemeridade da vida, consciência de nossa incapacidade e fruto de nossa melancolia. Suas odes, assim como a poesia lírica como um todo, são reflexos dessa limitação humana, essencialmente humana. Não é por outro motivo que estão localizadas no universo do hic et nunc (aqui e agora).

Esse é um tópos que tem larga difusão nas práticas poéticas da Antigüidade. Já o encontramos em Homero, em Mimnerno além de outros. Porém a precisão e a delicadeza helenística de Horácio saltam aos olhos nessa ode cuja tradução segue abaixo:



IV,VII

Diffugere nives, redeunt iam gramina campis
arboribusque comae;
mutat terra vices et decrescentia ripas
flumina praetereunt;
Gratia cum Nymphis geminisque sororibus audet
ducere nuda choros.
immortalia ne speres, monet annus et almum
quae rapit hora diem.
frigora mitescunt zephyris, ver proterit aestas
interitura, simul
pomifer autumnus fruges effuderit, et mox
bruma recurrit iners.
damna tamen celeres reparant caelestia lunae;
nos ubi decidimus,
quo pius Aeneas, quo Tullus dives et Ancus,
pulvis et umbra sumus.
quis scit an adiciant hodiernae crastina summae
tempora di superi?
cuncta manus avidas fugient heredis, amico
quae dederis animo.
cum semel occideris et de te splendida Minos
fecerit arbitria,
non, Torquate, genus, non te facundia, non te
restituet pietas;
infernis neque enim tenebris Diana pudicuni
liberat Hippolytum,
nec Lethaea valet Theseus abrumpere caro
viucula Pirithoo.

4,7

Dissolveram-se neves, já vergéis retornam
Aos campos e às árvores comas;
Mudam vezes a terra e às margens tornam
Descendentes os regatos
A Graça com Ninfas e com gêmeas irmãs
Ousa nua conduzir coros.
Vida eterna não esperes, ano e hora que rapta
Dia propício advertem.
Frios abrandam com Zéfiros, verão suplanta
Vera até que morto esteja;
Logo outono pomífero trará frutos e
Reviverá inverno sem pomos.
Luas céleres recuperam celestes danos
Quando, então, nós descemos
Onde estão Enéias pai, rico Tulo, Anco
E somos pó e sombra apenas.
Quem sabe se súperos somam ao todo,
De amanhãs um intervalo?
O que terás dado com ânimo amigo,
De ávido herdeiro fugirá.
Quando tiveres morrido e Minos tiver
Feito de ti juízo notável,
Nem estirpe, Torquato, nem fluência, nem
Piedade te darão vida;
Pois nem Diana livra de atroz inferno
Seu casto Hipólito,
Nem Teseu é forte para romper oblívios
Vínculos do caro Pirítoo.

(tradução: Paulo Martins)
Em tempo: Vale lembrar que essa ode foi traduzida brilhantemente por Mário Faustino, ainda hei de postá-la. Não agora, pois o êmulo seria injusto para mim... é lógico...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Georges Duby e a História Artística da Europa - Idade Média


DUBY, GEORGES – História Artística da Europa. Idade Média. Tomo I e II. São Paulo. Paz e Terra. 1998.



Paulo Martins



Pautada basicamente na inter-relação entre história e as demais ciências humanas, a nova história (La nouvelle histoire) ou a Escola dos Annales operou durante este século uma verdadeira “revolução” (Cf. Peter Burke – A Escola dos Annales, 1991) na historiografia. Efeitos dessa revolução podem ser observados nas inúmeras publicações dessa nova concepção de fazer história.
Dentro do grupo de intelectuais, reunidos em torno do periódico Annales d`histoire économique et sociale , encontram-se: Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie, Philippe Ariès, Paul Veyne, além de agregados como Michel Foucault, Michel De Certeau e Claude Levy-Strauss. Estes nomes, enfim, revitalizaram e redirecionaram a ciência histórica e produziram epígonos nos quatro cantos do mundo, revolucionando conceitos de longa duração, curta duração, cultura material, mentalidades, etc..
Fundamentalmente, o projeto dos Annales visava a transferir o eixo constitutivo da história produzida até então, que era o da história do poder central ou história oficial, para o eixo da história de capilaridade social, observando-se as relações com a sociologia, com a antropologia, com a psicologia e as demais ciências humanas. Dessa maneira, não far-se-ia mais história de cima para baixo, mas de baixo para cima, a história das menores unidades de relação dentro do corpo social, inserindo-se, assim, na história aqueles que até então se viam desapropriados de sua própria história, excluídos pela história do poder.
Foi dessa maneira que grande um número projetos se desenvolveram a partir do primeiro quartel deste século: o da história da vida cotidiana, o da vida privada, o das mulheres, o das crianças, o da loucura, o do homossexualismo, etc.
O Brasil, por sua vez, presenciou mais proximamente (1997) este fenômeno acadêmico com a publicação dos volumes dedicados à história da sua vida privada que seguem o paradigma da obra francesa homônima.
História Artística da Europa é mais um projeto audacioso que vem somar a esta linha do fazer histórico. Os tomos relativos à Idade Média (dois), organizados por Duby, seguramente um dos maiores medievalistas dos nossos dias, estão baseados em três princípios: a iconografia deve ter precedência sobre as dissertações; a iconografia deve apoiar-se num guia de leitura e, por último, deve abarcar vastos territórios, ou seja, deve observar um intercâmbio franco entre arte e as sociedades que moldam autor e artista, entre historiador e especialistas de campos diversos, entre narrativa escrita e imagem.
Contudo, esta ingente tarefa poderia, apesar das linhas diretrizes do monumento, tornar-se um Frankenstein histórico-artístico. Careceria, pois, de linha condutora que absorvesse em seu bojo unidade, diga-se de passagem costumeira entre os “analistas”. Assim, dentro dos vinte e três ensaios que compõem os dois tomos da obra, encontramos seu fato gerador, sua origem, sua arché, o belíssimo ensaio de Duby que corresponde à 110 páginas do primeiro tomo.
O ensaio introdutório aposta na confrontação, não se sujeitando à submissão da imagem ao texto ou à justaposição de imagens em coadunação ao texto, como é muito comum nos livros de história da arte, ou simplesmente de história nos quais a imagem se assemelha àqueles livros de uma grande biblioteca cujas lombadas ricamente trabalhadas servem apenas ao diletantismo ou ao pedantismo do proprietário da biblioteca. O texto de Duby, muito além de balizar os demais ensaios, dita regras onde a obra de arte é o sujeito.
As imagens, assim, determinam mais do que simples deleite do esteta, trazem em si o crivo de poderes, orientados por certa sociologia histórica da obra de arte que perpassa a cadeia da elaboração do artístico desde a invenção até seu legado como cultura material. Busca Duby resgatar o olhar coetâneo das obras.
Por se tratar de um estudo relativo à Idade Média, o historiador procurou reconhecer nas imagens do período suas funções - dado imperativo e imperioso para os que trabalham com material iconográfico - , portanto, vai mais longe dizendo que as obras da “Idade das trevas” tinham como fundamento uma funcionalidade que é extremamente distante daquela visão que hoje temos de que a obra de arte não tem função alguma. O historiador nos fala : “não consideramos essas formas com o mesmo olhar dos que primeiro as viram. Para nós, são obras de arte das quais esperamos apenas, como das que são criadas nos nossos dias, um prazer estético. Para eles, esses monumentos, esses objetos, essas imagens eram antes mais nada funcionais. Serviam. Numa sociedade fortemente hierarquizada, que atribuía ao invisível idêntica realidade e ainda mais poder do que ao visível e não acreditava que a morte fosse o fim do destino individual.”
Segundo Duby, a arte desse período de dez séculos, a que se convencionou chamar Idade Média, ora são tidas como presentes oferecidos a Deus, ora são simples oferendas aos santos e aos defuntos, ora são a afirmação do poder divino, celebrando o de seus servidores, o de chefes de guerra, o dos ricos.
É justamente em torno dos ricos que a arte na Idade Média se desenvolve, apesar da não-distinção entre artista e artesão (palavras cognatas com origem no conceito de ars, que em latim tinha como significado técnica, aproximando-se, assim do conceito grego da técne – técnica, habilidade). Eles, os ricos, encomendavam estas obras e as distribuíam ao seu redor como prova de opulência e distinção em relação aos demais. Contudo, muitas modificações ocorreram nestes dez séculos e, portanto, aquele que detinha o poder em certo momento, não o manteve em outro. O deslocamento do poder durante a Idade Média determina alterações significativas no fazer artístico do período: “ao afetarem as relações sociais e os diversos componentes da formação cultural, as transformações modificaram as condições da criação artística.”
Resumidamente, o ensaio introdutório de Duby não pretende explicar a evolução das formas artísticas, observadas as estruturas materiais e culturais da sociedade, antes, visa a colocá-las em paralelo, auxiliando a entendê-las simultaneamente, ou seja, como uma é reflexo e origem de uma e outra.
Se a premissa é a de transformação dos agentes e atores sociais e a transformação associa-se a certa cronologia, então, Duby não pôde se apartar do recorte temporal para traçar o roteiro delineador do projeto em questão. Seu texto subdivide-se em quatro partes: Uma primeira dedicada a uma visão geral dos séculos V ao X; uma segunda do ano 960 ao 1160; uma terceira do ano 1160 ao 1320 e uma quarta do ano 1320 ao 1400.
Os cinco primeiros séculos, segundo o historiador, marcam a passagem da Antigüidade para Idade Média. Neste quadro vemos a leste a continuidade do mundo clássico antigo, enquanto que a oeste há o desmoronamento da civilização mediterrânea, precipitado pelas migrações germânicas, provocando por pelo menos três séculos a desordem na qual misturam-se ingredientes de uma nova civilização e, conseqüentemente, de uma nova arte.
O próprio ocidente não pode ser considerado como uma unidade inflexível e, minimamente, nele se destacam duas partes. A primeira ao sul, romanizada e uma segunda parte ao norte onde ressurgem costumes locais, autóctones, que haviam sido sufocados pelo poderio imperial romano.
Ao contrário do que costumeiramente se aprende, este primeiro período da Idade Média não foi marcado só por desgraças, características dos séculos de ferro ou da idade obscura. A despeito de certa devastação do patrimônio cultural legado da Antigüidade, as invasões, segundo Duby, também: “foram fator de rejuvenescimento. Varreram boa parte do que estava vetusto e deteriorado, do que criava obstáculos a inovação. Favoreceram todo tipo de transferências, de trocas.”
No segundo período trabalhado por Duby, 962 marca mais uma restauração em favor do rei dos germanos, Oto. Com ele floresceu o renascimento iniciado por Carlos Magno. A corte imperial, estimulada pela vontade de reviver os costumes e virtudes da alta sociedade romana e de renovação do Império Romano faz nascer, entre outros gêneros, a arte das pinturas de perícopes e da ourivesaria de frontais de altar.
O século XIII, por sua vez, assiste a uma nova expansão da Europa, ao norte os últimos povos pagãos são conquistados; na Península Ibérica são libertados os espaços do domínio muçulmano; no leste territórios vazios ou subjugados pelos príncipes eslavos são colonizados por habitantes que partiram das regiões flamengas, do vale do Reno, da Francônia e da Baviera. Tais movimentos, principalmente, na questão da reconquista do território hispânico, produzem operações de pilhagem que marcam a evolução das formas artísticas. Efetivamente, este momento marca a primeira expansão além das fronteiras do mundo antigo, mediterrâneo.
“No século XI, no século XII, a unidade da arte européia explica-se em parte pela extensão das peregrinações e pela coesão das congregações monásticas; no século XIII, pela mobilidade dos objetos de arte, das estatuetas, das jóias, dos livros ornamentados com imagens. Neles se refletiam as inovações estéticas cuja origem eram obras mais imponentes. Esses objetos contribuíram para propagá-las, pois nessa época começavam a entrar no circuito do comércio.”
Na segunda metade do século XIII, por seu turno, a Itália passa a ser o centro das forças vivas da Europa, lá “o orgulho cívico iniciava a revalorizar a decoração monumental, a traçar os esboços de um urbanismo inspirado na Antigüidade, a desenhar praças, enfeitar fontes, embelezar o palácio municipal glória da cidade.”
O grande nome do período é Frederico II que espantou o mundo por se dizer curioso de todas as crenças, não apenas da divina, mas também das leis humanas e naturais. Ele manda erigir em Cápua uma porta monumental que quis ornamentar aos moldes de Roma imperial, com seu próprio busto e a dos principais artesãos do seu poder. Lançou, definitivamente, as bases da última renascença, a grande. Meio século após sua morte, a Europa assistiria, extasiada o desabrochar das obras de Dante, dos escultores pisanos e de Giotto.
Por fim, o último período que trata Duby é o hiato de oitenta anos entre 1320 e 1400. Por conta de diversos fatores, diz ele que à primeira vista, a produção artística reduz a parte atribuída ao sagrado. “A principal razão desse aparente recuo é que os atavios profanos, os do corpo, os da casa, se conservaram em muito maior número que os paramentos datando de épocas anteriores. Outro fato explica a laicização da grande arte: é que esta aos poucos se libertou da tutela dos homens da Igreja.”
A partir desta grande síntese levada a termo por Georges Duby, História Artística da Europa abre espaço para o detalhe, para as especificidades das obras de arte, seja ela a pintura, a arquitetura, a música, a ilustração, a estatuária, etc. Assim, seqüencialmente são apresentados ensaios precisos, assinados por especialistas de cada assunto.
Ainda no primeiro tomo, são propostos sete textos abarcados sob o grande tema: “TRADIÇÕES, INVASÕES, INOVAÇÕES”. Neste ponto observa-se o desenvolver histórico sobre a arte visigótica, a arte irlandesa, a iluminura carolíngia, a virada arquitetônica do ano 1000, a iluminura otoniana, a arte viking e os mosaicos.
O segundo tomo dedica-se a mais dois grandes temas sob os quais encontramos mais duas grandes seqüências de ensaios. No primeiro do tomo segundo ou segundo da obra: “MONGES E PRÍNCIPES, IMAGENS DE DEUS” enquadram-se os seguintes textos sobre: a produção artística do Al-Andaluz; Benedetto Antelami; a arte românica inglesa e suas relações com o continente; a caligrafia; as fachadas românicas; o tesouro eclesiástico medieval; a música e polifonia; Cluny, cidadela celeste; Sainte-Foy de Conques; o projeto cisterciense; o vitral; a guerra e arquitetura; Frederico II e Castel del Monte e, por fim, os palácios principescos, residências senhoriais.
No terceiro da obra ou segundo do tomo segundo: “FIGURAS DA LUZ, ORDEM DAS COISAS” delineiam-se informações acerca de: os desenhos e tratados de arquitetura; as catedrais; o jubeu; Duccio e os mestres de Siena; o gótico tardio e os países meridionais: a Catalunha; a difusão dos alabastros ingleses na Europa; a escultura italiana no século XIV; o jacente; o cavaleiro de São Jorge; as vidas dos santos; Giotto; Veneza e por último, aurora e crepúsculo de uma arte internacional.
A despeito da excelência científica dos textos, elaborados por uma equipe de estudiosos de ilibada competência técnica, a qualidade editorial desta obra editada no Brasil pela Paz e Terra, evidencia a inserção do Brasil no mercado de publicação de livros de arte, uma carência sempre muito sentida por aqueles que se interessam por artes em nosso país.
Nada devendo a publicações semelhantes de origem européia ou norte-americana, os dois tomos ricamente ilustrados, o papel, a capa, enfim, o acabamento são excelentes e marcam distintivamente esta publicação. Aguardemos, pois, os volumes dedicados aos outros períodos da História Artística da Europa que, certamente, serão tão atraentes, instigantes e esclarecedores como este dedicado à Idade Média.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Balanço - 2007

Letras e Artes completa hoje, dia 1 de janeiro de 2008, 204 dias on-line
  • Entradas contabilizadas: 7662
  • Média de visitas/dia: 37,55
  • Postagens: 29
  • 1 postagem a cada 7,034 dias

A partir do dia 26 de dezembro foi incluído um novo contador de entradas: o NeoCounter. Além de indicar o número de entradas, ele também possibilita a verificação da cidade de origem do usuário. Para termos uma pequena idéia, em 6 dias Letras & Artes recebeu visitas de 366 pessoas de 56 cidades diferentes e de 6 países diferentes.

As visitas mais freqüentes são das seguintes cidades:

  • São Paulo - 174
  • Rio de Janeiro - 63
  • Fortaleza - 12
  • Milharado/Portugal - 7
  • Londrina - 7
  • Lisboa/Portugal - 6
  • Belo Horizonte - 5
  • Niterói - 5
  • Campinas - 5

Os seis primeiros países:

  • Brasil
  • Portugal
  • Estados Unidos
  • Chile
  • França
  • Alemanha