Diz-se freqüentemente que um escritor "carregou nas tintas" ou que "desenhou bem uma característica de uma personagem", ou ainda, que "pintou bem os costumes de um tempo". É comum, pois, se tomar termos emprestados à pintura para qualificar uma determinada situação ou pessoa numa obra literária.
Por outro lado, o atento crítico literário pode também vislumbrar em sua exegese os contornos de um texto, os comparando com uma técnica pictórica. Não é de outra maneira, por exemplo, que Haroldo de Campos em sua introdução às Memórias Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade nos informa: "É bem possível que a influencia primordial na prosa de Oswald – um visual por excelência – seja ainda, para além da assimilação da teoria e da prática futurista, a transposição imediata de suas descobertas pictóricas nas exposições de Paris Como explicar, de outra forma, o cubo-futurismo de tantos trechos do Miramar”.
Destarte, pode-se afirmar que a pintura não só auxilia na qualificação de um determinado texto pelo crítico, mas, também, pode engendrar uma escritura, com a aplicação de suas técnicas específicas pelo autor. Assim a relação entre a pintura e o texto está determinada por uma "dupla-mão", uma que nasce da observação da pintura pelo crítico que a aplica em sua análise Literária e outra que vem da observação da pintura pelo autor e que o leva a transformá-la em texto.
Seria uma tolice, por outro lado, se pensar que essa indene ligação fosse um fenômeno da belle époque, ou de um modernismo radical naquele texto representado tanto pela critica de HC como pelo citado romance de Oswald de Andrade, como poderia inferir o leitor mais incauto.
A especulação acerca dessa complementaridade ou homologia, pintura-textos, remonta à época de Semônides na Grécia arcaica e percorreu toda Antigüidade Clássica, estando em todos os tempos presente nas palavras dos poetas e dos retores nas preceptivas.
Um bom exemplo clássico da operação com o retrato literário é a obra historiográfica de Salústio, A Conjuração de Catilina, pois lá se observam pelo menos quatro imagens que seguem a proposta retórica da enargia. Entretanto, seria impossível expor tais visões do retrato em Salústio, sem antes, se fazer uma breve exposição do quadro geral da preceptiva retórica, pois que esclarecesse principalmente as questões concernentes ao gênero e sua respectiva invenção.
Como foi dito, daquilo que se pode chamar retrato, qual seja, uma descrição precisa dos caracteres físicos, morais e éticos de uma personagem, nas monografias de Salústio, pode-se encontrar pelo menos quatro significativos: O retrato de Catilina, o de Semprônia, esposa de D. Júnio Bruto, e o de Júlio César e de Catão de Útica.
Tais descrições, retoricamente, se enquadram, quanto ao gênero do discurso, no epidítico, pois, como transmite a norma aristotélica, esse gênero é aquele que sempre trabalha uma situação pressuposta como res certa no presente, atribuindo-lhe vitupérios ou elogios. Esse ato de se encontrar pensamentos (res) adequados (aptum) conforme o interesse do partido representado dá-se o nome de inuentio. Tais pensamentos, porém, devem ser entendidos como instrumentos intelectuais e afetivos que se concretizam pelas palavras para que se obtenha êxito na argumentação.
Assim, Salústio, seguindo a preceptiva do gênero demonstrativo, atribuiu às personagens vitupérios ou elogios quando tais categorias se lhe pareciam oportunas dentro da propositura de monografia. A Retórica a Herênio nos informa a respeito de tal procedimento, ao propor a invenção nesse genus: "Quoniam haec causa diuitur in laudem et uituperationem, quibus ex rebus laudem constituerimus, ex contrariis rebus erit uituperatio comparata. Laus igitur esse rerum externarum, corporis, animi. Rerum externarum sunt ea. quae casu aut fortuna secunda aut aduersa accidere possunt: genus, educatio, diuitiae, potestates, gloriae, ciuitas, amicitia, et quae huiusmodi sunt et qua his contraria. Corporis sunt.ea quae natura corpori attribuit commoda aut incommoda: uelocitas, uires, dignitas, ualetudo, et quae contraria sunt. Animi sunt ea. quae consilio et cogitatione nostra constant: prudentia, iustitia, fortitudo, modestia, et quae contraria sunt."
Convém lembrar que a crítica de estudos clássicos, em sua maior parte, afirma que tais retratos primam pela riqueza dos caracteres psicológicos pintados pelo autor, contudo, parece que tal afirmação soa um tanto anacrônica uma vez que as categorias psicológicas, ao tempo de Salústio, ainda não haviam sido formuladas, ou seja, a psicologia, a época de César, não existia, enquanto disciplina capaz de fornecer algum subsidio de análise. Desse modo, seria mais conveniente dizer que a riqueza de tal procedimento retórico, na verdade, está no estabelecimento do "éthos" das personagens e não de sua "psique", freudianamente falando.
Quintiliano, por sua vez, nos esclarece que as qualidades que devem ser louvadas ou vituperadas no discurso demonstrativo são as do espirito, do corpo e as dos bens da fortuna, sendo que as últimas, em todos os casos, são as menos importantes. Quanto as qualidades do espírito, afirma que são sempre verdadeiras e o orador, ao tratá-las, deve seguir uma cronologia partindo, inicialmente, da tenra infância, falando da índole e mais tarde, as aplicações dessa naquilo que o elogiado faz ou obra, naquilo que diz ou pensa, exaltando, então, as virtudes da temperança, da justiça e da fortaleza e suas ações correspondentes.
Das ações que se devem exaltar, Quintiliano propõe: atos que o homem faz por si, naqueles em que foi o primeiro, em que houve poucos que o seguissem, aqueles que excederam a esperança, os que foram imprevistos e, por fim, os que foram em utilidade dos outros do que em utilidade própria. Isso que os retores latinos estabelecem como decoroso acerca da invenção no gênero epidítico, Salústio segue. A Retórica a Herênio indica que são três as categorias, como foi visto, que o orador deve tratar em seu discurso aquilo que é relativo à alma, ao corpo e às coisas externas.
Salústio inicia o retrato de Catilina: nobre quanto ao nascimento (coisas externas), forsa de alma (alma) e, por fim, força de corpo (corpo). Por outro lado, Quintiliano esclarece: "quodque ante eos fuit quoque ipsi uixerunt qui fat;o sunt functi etiam quod est insectum." Por sua vez, o pintor afirma quanto ao protagonista da Conjuração: "Huic ab aduiescentia bella intestina, caedes, rapinae, discordia ciuile grat;a fuere, ibique iuuentutem suam exercitauit."
Poder-se-ia pensar que o historiador, por construir o discurso do retrato, epidítico por excelência, sob o viés do vitupério, poderia, pois, estar construindo uma sátira uma vez que tal gênero ''literário'', muita vez, adere a esse procedimento, estabelecendo assim uma crítica moral, ética ou mesmo, religiosa.
Um prefácio de um estudo sobre a sátira barroca daquele a quern chamamos Gregório de Matos Guerra, adverte que: "São cinco as divisões do livro, da retórica as partes são cinco. Cuida o livro da Sátira, logo, do vitupério." Tal comentário de Leon Kossovich para o livro de J. A. Hansen poderia engendrar um pensamento, qual seja, de que tudo quanto vitupério fosse, retoricamente, sátira seria. Isso não é verdadeiro, pelo menos, no discurso demonstrativo de Salústio. Os vitupérios são cortantes e indicam um éthos negativo no que concerne à imagem ética do protagonista que atinge aquilo que Quintiliano propugna como mais verdadeiro; contudo, o autor não poupa elogios relativos ao corpo e às coisas externas, essa última, segundo a norma, a menos importante das "res" a serem louvadas.
Catilina, apesar de vituperado, vítima de um invectivador, certamente menos mordaz que Cícero, também não escapa dos inúmeros elogios de Salústio: sua origem patrícia, sua força de alma e de corpo, capaz de suportar fome, frio e insônia e, por último, muito eloqüente. Então, apesar dos vitupérios, em quantidade e qualidade, superarem aos elogios, esses, ainda assim não são poucos tal desenho poderia determinar uma certa imparcialidade de Salústio no que tange a figura histórica de Catilina, porém, o pincelar nebuloso do retrato erigido torna pouco determinável a intenção do autor.