quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Tempo e Idade

Paulo Martins


“Breves sunt dies hominis... sola Aeternitas longa”
“Breves são os dias dos homens ... apenas a eternidade é longa”


Talvez o tempo seja a criação mais instigante e curiosa da raça humana. Conceito complexo e interessante que incessantemente não pára de ser reciclado e re-observado pelas mais diversas áreas do conhecimento. Da Filosofia à Física. Da Gramática à Astronomia. Da Culinária à Poesia. Contudo, poucos são aqueles que atentam que a Língua e mais precisamente o estudo dos étimos trans-historicamente nos oferece diversos e variados matizes do termo, associando-lhe nomes específicos e aplicações práticas próprias igualmente específicas. Bom exemplo disso, entretanto, ocorre não no Português, mas no Inglês, afinal nenhum falante dessa língua teria dúvidas em distinguir tense e time. Enquanto o primeiro nomeia o tempo verbal, que toma como referência o momento da enunciação, o segundo se ocupa do conceito abstrato e relativo que é traduzido pelo primeiro lingüisticamente.

Apesar de não encontrarmos em Português tal especificidade, temos, assim como eles, falantes do Inglês, nuanças várias do conceito que, vez por outra, são empregadas de maneira indistinta e pouco atenta. Penso, por exemplo, em dois conceitos temporais: tempo e idade. Antes, contudo, de tratá-los com vagar sob a ótica lingüística da diacronia, poderíamos pensá-lo, o tempo, de forma mais geral.

Na Antigüidade Clássica greco-romana, abundam exemplos dessa sistemática reciclagem e re-observação do conceito. Desde os pré-socráticos, Parmênides (530 – 460 a.C.) e Zenão de Eléia (495 - 430 a.C.), até Santo Agostinho (354 – 430 d.C.) já nas portas da Idade Média, encontram-se filósofos que, com muita habilidade e, por vezes, com pouca clareza, ousam desvelar seus segredos e mistérios.

Para Platão (427 - 348 a.C.), por exemplo, o tempo não é um conceito verdadeiro, pois que apenas participa do mundo sensível, aquele em que as coisas são mutáveis, mediadas que são pelos mortais, agentes, portanto, do “não-ser”. A despeito de sua origem cosmológica, o tempo teria nascido, pois, da organização do caos, ele subsiste graças às sensações inerentes a cada pessoa, distante, assim, de uma Verdade absoluta.

Seu discípulo, Aristóteles (384 - 322 a.C.), por seu turno, em momento algum discordando da natureza essencialmente humana do tempo, vai adiante e propõe a estreita relação entre o tempo e o movimento, daí jamais ser possível sua desvinculação do “antes”, do “agora” e do “depois”, marcadores que estabelecem mentalmente a medida do movimento. Dessa maneira, já que as noções de passado, presente e futuro são compreensíveis apenas do ponto de vista da subjetividade humana, a própria condição de entidade real e autônoma do tempo é posta em xeque.

Certo é que essa noção antiga do tempo, como fenômeno subjetivo e cíclico, encontra guarida também, em certa medida, na própria natureza, uma vez que não há como se negar a existência das marés, das estações, dos ciclos lunares e dos dias que sucedem as noites.

Entretanto, ainda na Antigüidade, nós encontramos, entre os hebreus e zoroastritas – representantes da “antiga religião persa fundada no século VII a.C. por Zoroastro, caracterizada pelo dualismo ético, cósmico e teogônico” –, um outro sentido do tempo: o linear e absoluto, calcado assim em eventos únicos e que, portanto, não se repetem. Essa possibilidade foi incorporada por uma ética judaico-cristão-mulçumana que toma um evento único como marco divisório e estabelece relação com os marcadores aristotélicos do movimento (antes, agora e depois). Assim temos o êxodo do Egito, a crucificação de Cristo, a migração de Maomé de Meca para Medina, marcadores essenciais aos seus respectivos calendários.

Parece, pois, inegável que essas duas vertentes do tempo coexistiram e coexistem no mundo moderno, porém ambas estão sujeitas à mesma rubrica: o tempo. Contudo, parece-me que algumas Línguas, entre as quais o Português, podem bem distinguir essas formas de pensar.
A palavra tempo tem origem na palavra “tempus” latina cuja origem é a mesma do verbo “témno” grego que significa fracionar, cortar. Assim o termo que hoje usamos em expressões como “perder e ganhar tempo” ou “tempo da colheita” deveria apenas ser utilizado quando a medida fosse absolutamente mensurada e determinada por um limite fracionado. Sob aspecto estético, poder-se-ia dizer que, por ser o tempo sempre limitado e, portanto, jamais contínuo, ele seria o tempo da poesia lírica, pois aquilo que ela observa sempre é diminuto, afinal ela é expressão do hic et nunc (do aqui e do agora). Por ser o tempo sempre limitado, ele corresponde no plano do conteúdo àquilo que é findável e não perene - efêmero. O tempo, em que se pese aqui o paradoxo, é absolutamente humano. Daí ser tão suscetível à “efusão lírica”.

O tempo em decorrência do proposto ainda repercute a melancolia, uma vez que, por ser limitado e humano, “escorre pelas mãos”, “voa” e “não volta”. Daí a incapacidade humana em geri-lo adequadamente.

Por outro lado, a idade (de aetas do latim), palavra cognata do advérbio aei grego, cujo significado é "sempre", dá conta de uma outra modalidade ou dimensão do tempo e esse é ilimitado, incontável, infinito, daí a palavra aeternitas (eternidade). Ela, aetas, é o tempo do mito, do herói, do deus e, por isso, filia-se aos gêneros literários cujos objetos da imitação são os homens superiores e não os homens como nós (com toda licença de Aristóteles). Assim, enquanto o tempo humano é efêmero, como vimos, a idade e a eternidade são perenes e divinos. Daí ser seguramente o tempo do Torá, da Bíblia e do Alcorão. Dessa maneira, enquanto a efemeridade da vida tem acolhimento no tempus, a perenidade da obra possui estreita relação com a aetas. Portanto, o nosso tempo e o tempo dos deuses são absolutamente distintos.

Horácio talvez seja o poeta, entre os romanos antigos, que mais tenha se dedicado ao tema/lugar-comum da efemeridade da vida, consciência de nossa incapacidade e fruto de nossa melancolia. Suas odes, assim como a poesia lírica como um todo, são reflexos dessa limitação humana, essencialmente humana. Não é por outro motivo que estão localizadas no universo do aqui e agora. Esse é um lugar-comum que tem larga difusão nas práticas poéticas da Antigüidade. Já o encontramos em Homero (séc. IX a.C.), em Mimnerno (630 – 600 a.C.) além de outros. Porém a precisão e a delicadeza helenística de Horácio saltam aos olhos nesta ode:

4,7
Dissolveram-se neves, já vergéis retornam
Aos campos e às árvores comas;
Mudam vezes a terra e às margens tornam
Descendentes os regatos
A Graça com Ninfas e com gêmeas irmãs
Ousa nua conduzir coros.
Vida eterna não esperes, ano e hora que rapta
Dia propício advertem.
Frios abrandam com Zéfiros, verão suplanta
Vera até que morto esteja;
Logo outono pomífero trará frutos e
Reviverá inverno sem pomos.
Luas céleres recuperam celestes danos
Quando, então, nós descemos
Onde estão Enéias pai, rico Tulo, Anco
E somos pó e sombra apenas.
Quem sabe se súperos somam ao todo,
De amanhãs um intervalo?
O que terás dado com ânimo amigo,
De ávido herdeiro fugirá.
Quando tiveres morrido e Minos tiver
Feito de ti juízo notável,
Nem estirpe, Torquato, nem fluência, nem
Piedade te darão vida;
Pois nem Diana livra de atroz inferno
Seu casto Hipólito,
Nem Teseu é forte para romper oblívios
Vínculos do caro Pirítoo.
Tradução: Paulo Martins