Paulo Martins
Tão antiga quanto a própria literatura ocidental, a poesia erótica tem atravessado os séculos tomada ora como subproduto cultural, muitas vezes clandestino, ora como um gênero que desperta aquela reverência um tanto envergonhada diante de textos clássicos – e disso não se escapa quando se trata da Grécia Antiga, pródiga nas manifestações artísticas de uma cultura que valorizava a sensualidade. Fato mais notável (e eventualmente mais constrangedor para alguns) é a constatação de que foi a poesia de uma mulher do século 7º a.C., Safo de Lesbos – cujo nome, sim, deu origem aos termos lesbianismo e safismo –, que tenha inaugurado essa longa e rica tradição.
Não foi muito o que restou de sua obra: a impiedade do tempo nos legou pouquíssimos textos, e nenhum chegou integralmente até nós. O que temos hoje são apenas cacos, ruínas, vestígios de uma poesia inovadora que pode apenas indicar ou sugerir a grandeza dessa poetisa. Fora de catálogo no Brasil durante um certo tempo, ou dispersa em algumas publicações, os fragmentos de sua poesia estão reunidos agora no livro Eros, Tecelão de Mitos, de Joaquim Brasil Fontes. Além dos textos de Safo, a edição se propõe a fazer uma análise extensa e minuciosa, sem precedentes no meio literário nacional –ainda que, no que se refere à tradução, principalmente dos nomes próprios, peque por não seguir a tradição lusófona, o que facilitaria a leitura.
Da vida de Safo, pouco se sabe com certeza. Nascida entre 630 e 612 a.C. na cidade de Mitilene, na ilha de Lesbos, localizada no mar Egeu (na atual costa da Turquia), ela teve, em algum momento, de abandonar a ilha, por razões políticas obscuras, fixando na Sicília, então colônia grega. Ali, diz a tradição, reuniu em torno de si um grupo formado exclusivamente por mulheres, a fim de cultuar, por meio da música e da poesia – indissociáveis na época – em honra de Afrodite, deusa do amor, mãe de Eros, o deus menino que a tradição latina perpetuou com o nome de Cupido.
Foram nesses rituais de celebração do erotismo e da sensualidade que, ao que tudo indica, Safo deu início a esse gênero de poesia que prosperaria, nas mais diversas formas, até os dias de hoje. E não deixa de ser curioso que essa força, própria dos raros momentos históricos que marcam a inauguração de uma arte, tenha sobrevivido por meio de uma “ruína”. A resposta pode ter sido dada por Ezra Pound, que, ao incluí-la em uma antologia, justificou o ato em O ABC da Literatura: “Coloquei o grande nome de Safo na lista por sua antiguidade e porque tão pouco resta de sua obra que tanto se pode lê-la como omiti-la. Se vocês a leram, saberão que não há nada melhor.”
Pound se refere especificamente à ode Poikilothron, uma das mais sensuais de que se tem notícia na história, e é bastante provável que tenha sido a partir dela que tenha nascido a literatura erótica, seja por alusão direta ou, em caso mais incertos, por pura coincidência. Seu erotismo não é evidente, a não ser pelo fato de ter como centro da persona poética a própria Afrodite, mãe do tecelão de mitos, que é colocada num trono de cores e brilhos (o poikilothron) e caracterizada como “urdidora de tramas”. A ela é direcionada a súplica dos amantes, para que o coração do “eu”, que fala na poesia, não seja dobrado diante das mágoas e dores que a deusa urde.
Não tão sutil é a ode Phainetai, na qual Safo representa seu amor como um deus, ao qual atribui dotes sem par – “este teu sorriso que acorda os desejos” – e constrói epifanias do amor como condição física a que está sujeito o apaixonado: “meu coração no peito estremece de pavor no instante em que eu te vejo”; “escorre-me sob a pele uma chama furtiva”; “meus olhos não vêem, meus ouvidos zumbem”, “um frio suor me recobre”; ”estou a um passo da morte”. É digno de lembrança que essa mesma ode irá ser reciclada pelo romano Catulo no século 1o a.C.
No que se refere ao teor homoerótico de sua poesia, um outro fragmento é exemplar: “que morta, sim, eu estivesse:// ela me deixava, entre lágrimas// e lágrimas, dizendo:// “Ah, o nosso amargo destino,// minha Psappha: eu me vou contra a vontade”. Mas atenção: cumpre, aqui, reagir contra a leitura biografista, pois esse tipo de poesia entre os antigos poderia ser ou não reflexo de uma condição vivida pelo poeta, e aquilo que nos informa o texto de Safo pode não ser efetivamente algo de sua própria vida. O que, no entanto, não invalida a amplitude da figuração homossexual.
Mas, se é certo que a poesia de Safo serve longinquamente de modelo da poesia erótica, também é fundamental dizer que ela sobreviveu por meio de outros autores, aqueles mesmos cujas obras reproduziram, reinventando-a, essa mesma tradição – por vezes distante de certo vulgarismo; outras vezes, tão próxima e, mesmo assim, objeto digno da mais elevada literatura. Não é descabido colocar nesse rol pares tão ímpares quanto Safo e Horácio, Propércio e Florbela Espanca, Adélia Prado e John Donne, Paulo Leminsky e Allen Ginsberg, Walt Whitman e Manuel Bandeira, Ovídio e Drummond, autores que primam pela capacidade de traduzir Eros em palavras, apesar de não serem quase nunca autores circunscritos apenas a essa temática nem obrigatoriamente considerados próximos entre si, pois a distinção entre o sensual, o amoroso, o erótico e o fescenino entre eles é clara. Porém vale dizer que, em todos os casos, o deus menino e sua mãe presidem a elaboração poética, e são as suas metamorfoses que alimentam as artes.
Na antiguidade clássica, muita poesia erótica foi escrita, e a tal ponto isto é verdadeiro que se construiu em torno da temática uma preceptiva poética específica para ela, desenvolvendo-se uma gama imensa de subgêneros. Por exemplo, a elegia erótica romana de Ovídio, Propércio e Tibulo é fundamental para o entendimento da produção erótica de poetas clássicos como John Donne (1572-1631) em The Extasie (Aos corpos, finalmente, retornemos, / Descortinando o amor a toda gente;/ Os mistérios do amor, a alma os sente, / porém o corpo é as páginas que lemos.) ou em Elegie: Going to Bed (Deixa que minha mão errante adentre/ Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre./ (...) Minha Mina preciosa, meu Império,/ Feliz de quem penetre teu mistério), magistralmente musicada por Péricles Cavalcante, traduzida por Augusto de Campos e gravada por Caetano Veloso no disco Cinema Transcendental.
Mas sempre é bom lembrar que a leitura de textos antigos pressupõe fundamentalmente a separação entre o poeta, historicamente tomado, e o sujeito da enunciação poética. Muitos equívocos de intelecção derivam disso. Portanto, ao lermos Safo, Propércio, Ovídio, ou mesmo, Donne, não podemos confundir a priori sujeito histórico e persona poética. Fato que pode e deve ser desconsiderado quando estamos diante de poetas contemporâneos, pós-românticos e românticos, em cujas obras podem ser observadas características pessoais e idiossincráticas, que são marcas de sua singularidade.
Quando Manuel Bandeira, por exemplo, constrói o belíssimo Água-forte na Lira dos Cinquent’anos, ele dá a dimensão dessa proximidade: “O preto no branco/ O pente na pele:/ Pássaro espalmado/ no céu quase branco.// Em meio ao pente,/ A concha bivalve/ Num mar de escarlata. Concha, rosa ou tâmara?// No escuro recesso,/ As fontes da vida/ A sangrar inúteis/ Por duas feridas.// Tudo bem oculto/ sob as aparências/ Da água-forte simples:/ De face, de flanco,/ O preto no branco.”. Além de recuperar a elocução do cânone da poesia, construindo aquilo que os antigos chamaram de ekphrasis (descrição de uma imagem visual), Bandeira imprime também toda uma história pessoal que não pode ser desconsiderada: na sua poesia a impossibilidade da concretização do amor e a sublimação do sexo são evidentes. Isso sem contar a simplicidade compositiva que é pedra de toque nessa grande obra, desmitificando a própria linguagem e a associando à sua própria simplicidade, num jogo de xadrez cujos sujeitos são vida e poesia.
Falar de amor e sexo é falar da própria humanidade. Na antiguidade, ela era o reflexo da condição humana que deveria ser observada na poesia como algo possível, necessário e inevitável; nos tempos atuais, como retrato de uma condição individual que alavanca o “eu poético e histórico” para o cerne da representação e, portanto, para o centro da existência. No caso de Eros, Tecelão de Mitos, essas duas vertentes estão presentes. A primeira parte do ponto arquetípico que é a própria obra, hoje fragmentária, da poetisa de Lesbos; e outra que nasce da preocupação do autor em buscar na modernidade a decifração do tema como condição de vida. Assim Eros – e não as Parcas, as senhoras dos destinos do homem – é que tece a vida. A vida como mito, como discurso que representa a condição universal do homem que, hedonicamente, sobrevive, mesmo diante das agruras que vida impõe e diante dos prazeres que o texto e o amor proporcionam.