quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Antologia narra quatro séculos de latinidade

Texto publicado no Jornal da Tarde - "Caderno de Sábado", São Paulo, p. 5, 20 nov. 1999.


NOVAK, MARIA DA GLÓRIA et alii - Historiadores Latinos. Antologia Bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes.

Por Paulo Martins

"Sine ira et studio"
(Sem ira nem parcialidade)
Tácito

Historiadores Latinos, obra recentemente publicada pela Martins Fontes, propicia a, pelo menos, três reflexões pertinentes. A primeira delas concernente ao papel das antologias no estudo de práticas letradas. A segunda que tem como ponto de partida a recuperação genética do gênero historiográfico e the last but not the least, sobre o caráter da diversidade imposto pela tarefa da tradução.

Elaborada por um grupo de professores da área de Língua e Literatura Latina de diversas universidades brasileiras, durante as décadas de 80 e 90, esta antologia tinha como objetivo precípuo auxiliar o trabalho docente em Letras Clássicas que sofre por conta de escassez material de textos traduzidos, absolutamente necessários às aulas de língua e literatura latina.

Tal como a primeira obra da série (Poesia Latina, igualmente publicada pela Martins Fontes no início da década de 80), este livro tem como ponto de partida certo recorte diacrônico de determinado gênero dentro do universo literário de alguns séculos, ou seja, diferentemente daquilo a que estamos habituados, antologias que observam a produção de determinado autor ao longo de alguns anos, esta opera variações genéricas do ponto de vista de diversos autores, propiciando um retrato particular do desenvolvimento do gênero historiográfico na Roma Antiga.

Tal fato, seguramente, revelará viés diferenciado acerca do gênero em questão, uma vez que deixa de lado as questões teóricas e, de chofre, abre possibilidades de discussão a partir da efetiva prática letrada. Assim, o leitor ao fim e ao cabo da leitura poderá, indubitavelmente, teorizar sobre as variações do gênero em questão, podendo até mesmo refletir sobre a teorização que, geralmente, lhe é imposta pelas obras de teoria da literatura, e, mais especificamente, pelas obras de história da literatura latina que oferecem apenas o conceito deixando de lado o modus operandi a que se prendeu para que chegasse às conclusões expostas.

O uso desse expediente didático sempre foi muito utilizado dentro das Letras Clássicas e, portanto, não são poucos os títulos em países não periféricos que observam tal didatismo na formação dos críticos e estudiosos. Na verdade, os profissionais que adotam este tipo de intervenção desenvolvem a máxima retórica do “uerba mouent, exempla trahunt” (as palavras movem, os exemplos arrastam), ou a sentença de Sêneca nas Cartas a Lucílio: "Longum iter est per praecepta, breue et efficax per exempla" (O caminho pelos preceitos é longo, breve e eficaz pelos exemplos). Isto é, tanto no primeiro caso, como no segundo, o exemplo é o melhor caminho para o convencimento, logo, para a reflexão consciente e honesta, adequada.

A esta questão também deve ser somada uma “ideológica” – em seu senso mais amplo – no que tange à organização de antologias. Toda e qualquer reunião de textos faz despontar certa intencionalidade dessa seleção e organização. Portanto, à proposta antológica subjazem juízos que determinam opção, seleção, necessidade. E o que vemos na presente publicação, é absoluta proposta didática, sem, contudo, preterir prazer e convencimento. Nesse sentido, cumpre sua função horaciana, afinal a obra é dulce et utile (doce e útil), isto é, deleita, ensina e convence.

Esta seleção, cronologicamente, recorta quatro séculos de latinidade, oferecendo textos que vão de Júlio César (101 - 44 a.C.) a Salviano de Marselha (V d.C), passando por Santo Agostinho, São Jerônimo, Amiano Marcelino, Eutrópio, Floro, Suetônio, Tácito, Valério Máximo, Tito Lívio, Salústio, Cornélio Nepos, entre outros.


Tito Lívio


Tal fato opera, também, a diversidade de um mesmo gênero, fato dificilmente aferido na historiografia (mesmo na mais moderna); ao contrário daquilo que ocorre, por exemplo, com a poesia, tão diversa em si, contudo, tão propriamente poesia, singular, típica e isto, talvez, corrobore a afirmação aristotélica do capítulo IX da Poética, quando discute universalidade poética e particularidade histórica.

A historiografia latina e, conseqüentemente, a antologia em questão possui especificidades curiosas que determinam diferenças genéricas, ou melhor, subgenéricas, uma vez que tudo ali proposto é historiográfico. Assim, o que difere uma história de um breviário ou analística dos comentários? São questões subjacentes à interessante viagem factual e vivida proposta pela colagem de tempo morto e vivo em palavras.

Reavivada pelas palavras, o leitor brasileiro tem às mãos antologia que propicia o reconhecimento de certas instâncias de quatro séculos de história, vista pelos olhos de quem dela participou. Dessa maneira, o livro propõe textos de: Júlio César, grande nome da história republicana romana e hábil comentarista de campanhas bélicas (Recentemente foi comentada a mais nova tradução de sua obra A guerra Civil feita por Antônio da Silveira Mendonça); Tito Lívio, autor da época de Augusto, responsável pela mais completa narrativa da história romana desde a sua fundação até os primeiros dias do império; Tácito, agudo analista e historiador da segunda metade do século I d.C. e início do século II; Suetônio (69 -141), secretário do Imperador Adriano, cuja maior obra foi retratar biograficamente os primeiros doze césares, que, vale dizer, efetivamente foram onze, uma vez que Júlio César não era assim considerado.


Júlio César - Museus do Vaticano

Sob outro ponto de vista, podemos, também, por intermédio desses autores recuperar parte de um passado que, a princípio, é tido como inatingível. As obras desses autores, sistematicamente, tratam da vida pública, ou seja, estão presas ao fato histórico relevante, o fato público. No entanto, estilisticamente, é possível recuperar a história que não está na história, porquanto o estilo tem o poder de trazer à tona, elementos não presentes no texto, por exemplo, a recepção.

Tácito

Não foi de outra forma que Erich Auerbach (Mimesis, 1976. p. 40) adverte: "(...)Tácito escreve de uma posição superior que examina a multidão de acontecimentos e operações ordena-os e julga-os como um homem da mais alta posição social e educação, se não cai no árido ou ininteligível, isto se deve não somente ao seu gênio, mas também à incomparável cultura do visual e do sensorial durante toda a Antigüidade. Mas o mundo dos seus semelhantes, para o qual escreveu, exigia que o elemento visual e sensorial permanecesse dentro dos limites do gosto fixado por uma longa tradição, sendo que já nele aparecem sinais de uma transformação desse gosto, no sentido de um maior realce do sombriamente horrendo(...)".

Contudo, o fato mais diferenciado desta obra seja justamente observar estas diferenças genéricas, temporais e da recepção sob o ponto de vista diverso de tradutores diversos – são mais de duas dezenas no livro. A tradução como operação de linguagem pode também indicar, nos mesmos moldes da seleção antológica proposta, como vimos, propiciar à verificação de certo universo cultural e propositivo de tradutores, soluções, intenções e idiossincrasias que revestem o texto traduzido de estilo e pessoalidade.Portanto, a diversidade vista diversamente e unificada por intencionalidade “ideológica”, esta seria a definição mais adequada a este livro que ora se publica.


HISTORIADORES LATINOS - ANTOLOGIA BILINGUE
MARTINS FONTES
ISBN: 8533609124