CORRÊA, PAULA DA CUNHA - Armas e Varões. A guerra na Lírica de Arquíloco. São Paulo: Editora Unesp. 1998. 363 páginas.
Paulo Martins
Na Antigüidade Clássica, há determinados textos que são considerados inaugurais, protótipos, iniciais. Isto é, a partir deles somam-se outros tantos, apropriando-se de seus motivos, valendo-se de seus temas e, fundamentalmente, seguindo seus gêneros. Não foi de outra forma que Homero e Hesíodo tornaram-se monumentos sobre os quais a cultura clássica se sedimentou e se alastrou pelo ocidente, dando origem ao que se convencionou chamar civilizações mediterrâneas.
Assim, Platão n’A República, em que se pese a crítica e conseqüente exclusão do poeta e da poesia de sua cidade perfeita, ainda, estabelece que “este poeta ensinou a Hélade”. E Hesíodo, ainda hoje, é manancial didático-poético dessa mesma cultura tanto no que se refere ao mundo cotidiano (Os trabalhos e os dias) como no que se refere ao mundo religioso (A teogonia).
Contudo, pouco se fala daqueles poetas e respectivas obras que, no rastro dos dois anteriores, foram fundadores de um gênero poético muito caro nos dias atuais: o lírico. Ou seja, muito embora a épica homérica esteja na base de todas as práticas letradas ou composicionais gregas, outras fontes devem ser consideradas a fim de que se produza certo reconhecimento genérico da poesia lírica. Arquíloco de Paros é uma destas.
Poeta, que viveu na Grécia no período arcaico (VII a.C.), é depositário de uma série de lugares (tópoi, loci communes) que, posteriormente, se repetiram na dita literatura clássica, firmando determinados gêneros e servindo de êmulo para outros tantos poetas, dentre os quais destaca-se, e.g., Horácio.
Uma característica observável neste poeta é sua habilidade métrica, que desponta em seus poemas elegíacos, jâmbicos e trocaicos, que, por sua vez, mesclados às variados modos de expressão poética, firmam uma série de temas como a guerra, a invectiva, o convivial e o simposiático, perpetrando, originariamente, gêneros e sub-gêneros líricos. Talvez, tal dado tenha ampliado o leque desse tipo de composição, firmando, o material poético prévio que determinou a formatação de preceptivas poéticas e retóricas a partir do século V a.C..
Paula Corrêa, professora de língua e literatura grega na FFLCH/USP, acaba de lançar o livro Armas e Varões: A guerra na lírica de Arquíloco (sua tese de doutoramento) no qual recupera o percurso poético de Arquíloco e institui, na verdade, aquilo que pode ser chamado de uma poética da lírica arcaica, mesmo se considerado, o estado fragmentário dos textos que nos restaram de Arquíloco e o recorte temático considerado.
Seu trabalho (como já foi bem aferido por Trajano Vieira) tem lugar garantido em qualquer biblioteca de estudos clássicos, não só pela competência técnica desenvolvida, como, também, pela sensibilidade de avaliar questões pantanosas que cercam trabalhos deste quilate, como por exemplo, a distância das fontes, o estado físico do objeto, escassez material, entre outros dados concernentes à pesquisa de ponta em Ciências Humanas, principalmente, em Letras Clássicas no Brasil. Por outro lado, o trabalho agora publicado pela profissional e respeitável editora da Unesp é uma resposta cabal às mazelas e descasos de editores equivocados e a pareceristas de plantão ou de última hora, que não conseguiram compreender a dimensão do trabalho de Paula Corrêa, que poderia hoje citar e. e. cummings e, retribuir a atenção e consideração dispensada, propondo um no, thanks!.
A questão que move o livro é a caracterização do tema "guerra" em Arquíloco. Naturalmente, se o tema é este e o sujeito da enunciação poética é construído por um poeta lírico grego arcaico, aproximações deverão existir entre o poeta em questão e Homero — afinal está muito próximo de Arquíloco temporal e tematicamente. Contudo, tais aproximações são complexas uma vez que há discordâncias quanto ao caráter de continuidade e de distanciamento ou de ruptura entre as técnicas poéticas do poeta de Paros e Homero.
Esse relacionamento, não resolvido no âmbito poético, é levado às últimas conseqüências pela pesquisadora, pois que não se limitaria à questão genérica elementar: Arquíloco lírico e Homero épico. O que, então, é proposto por Paula Corrêa é a observação de alguns dados de cultura que podem caracterizar o homem e o pensamento grego tanto no período homérico como no arcaico.
Entretanto, como muito adequada e competentemente é demonstrado, esses dados sofrem, sincrônica e diacronicamente, mutação entre os críticos modernos do século XIX e XX como: Hegel, Nietzsche, Wilamowitz-Möllendorff, Snell, Fränkel, Vernant, Detienne e outros. Isto é, determinados conceitos levantados pela autora são analisados por eles ora de forma análoga, ora de maneira antagônica. Assim, observam-se questões concernentes ao corpo e à alma; às emoções mistas, à reflexão e à responsabilidade humana com a intenção de reconstituir o caráter desses homens ou desse homem grego, fator imprescindível na aferição dos fragmentos de Arquíloco.
Num segundo momento da obra, Paula Corrêa passa a discorrer sobre Arquíloco dentro da obra de Snell (A descoberta do Espírito) — fundamental dentro do percurso proposto e longe de certa impregnação que seria nefasta — observando os posicionamentos modernos acerca da efemeridade humana; da descoberta do indivíduo e da questão do gênero. Este último, talvez, possa deixar um leitor mais ansioso pouco decepcionado, caso espere encontrar, nesse momento, o desvelar sistemático da questão genérica em Arquíloco.
Na segunda parte do trabalho (II - O guerreiro arcaico: hoplitas, armas e táticas), passamos a tomar contato direto com a obra do poeta. A autora propõe, sistematicamente, uma leitura de fontes, o que, diga-se de passagem, é obrigatório diante deste tipo de “arqueotexto”. E ora aderindo ao comentário, ora distanciando-se, Paula Corrêa passa, indutivamente, a consolidar suas propostas para uma poética arqueloquéia.
A primeira delas é justamente a crença de modificação de status social na Grécia arcaica em detrimento daquela presente no mundo homérico. Ao cabo do primeiro capítulo da segunda parte, encontra-se: “Portanto, não há em Arquíloco, pelo menos nesse fragmento (FR 1W), evidência de uma nova postura ante as Musas, ou de uma noção diversa de arte poética. (...) Em razão disso, seria exagero acreditar, como Page (1964, p.134), que ‘esse dístico resume uma revolução social’”.
Num outro momento é proposta pela pesquisadora nova interpretação àquilo que durante muito tempo se propôs como o novo espírito grego, nascido com a lírica arcaica a partir da figuração de um tipo de soldado que abandona suas armas ou assume posturas não condizentes com sua posição. Demonstra que nada de novo há na figuração. Assim, o que se pode aferir é que certas situações produzidas por Arquíloco apenas determinam a intenção de reproduzir cenas anti-heróicas.
Um outro ponto trabalhado trata de dois conceitos interessantes que poderiam determinar ruptura entre o mundo homérico e o da lírica arcaica: a questão da vaidade e da coragem, partindo de uma possível representação de física de generais em Arquíloco.
A autora evoca o fragmento que dispõe a preferência do sujeito da enunciação pelo general cambaio em detrimento do general vaidoso. Tal juízo de valor indica que não há pelo menos neste caso distanciamento entre os poetas em questão, pois o ponto crucial da preferência não estaria no âmbito da aparência externa, mas no das qualidades internas: “Não gosto do grande general, nem do que anda a largo passo,/ nem do que é vaidoso de seus cachos, nem do bem barbeado,/ mas que me seja pequeno e com pernas tortas/ de se ver, plantado firme sobre os pés, cheio de coragem” (Frag. 5W).
Nos dois capítulos seguintes, pode-se observar aspectos fundamentais na reconstituição desse homem desenhado pelo poeta, discorre-se nesse ponto sobre os aliados e sobre o modo de guerra. A primeira questão perfaz um estudo acerca da philía, conceito que, segundo Aristóteles na Ética a Eudemo (1236a15), não é uno, mas triplo, pois ora está baseado na virtude, ora na utilidade e ora no prazer. Em Arquíloco, a autora constata a ambigüidade do conceito, pois ele afirma “o aliado é amigo enquanto luta” (Frag. 15W).
A terceira parte do livro objetiva situar as narrativas marciais de Arquíloco em termos genéricos, principalmente, se observados os textos anteriores a ele em que o tema central é o mesmo: a guerra. Nesse sentido, seria crucial particularizá-lo em relação à Ilíada. Talvez, esta discussão fosse a mais importante dentro da obra em questão, porquanto revigoraria o que mais se discute hoje em dia em termos de práticas letradas da Antigüidade Clássica, ou seja, o gênero.
O texto, contudo, decorre a partir de Hegel (Estética), buscando aproximações entre Arquíloco e outros dois poetas arcaicos, Calino e Tirteu que haviam sido trabalhados pelo filósofo na chave da dicotomia entre uma forma que é essencialmente narrativa e um tom que é essencialmente lírico. Dessa maneira, careceu a obra de preocupação mais sincrônica, isto é, haveria na Grécia arcaica, efetivamente, a dicotomia proposta pelo filósofo alemão? O conteúdo poderia delimitar o gênero? A forma seria fator preponderante para a caracterização genérica? Apesar de Hegel, Paula produz sua arqueologia com exata precisão que percorre seu texto desde o início e dessa forma, reconstitui o gênero de Arquíloco, até então não normatizado.
Enfim, a obra é essencial para aqueles que desejam debruçar-se sobre o princípio do pensamento grego e sua repercussão literária, ou mesmo, para aqueles que desejam ter um justo e preciso modelo de um raro e excelente trabalho de pesquisa em Ciências Humanas.
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ISBN: 8571392048
Assunto: História, Literatura
Idioma: Português
Formato: 14 x 21cm
Páginas: 363
Edição: 1ª
Ano: 1998
Acabamento: Brochura com orelhas
Peso: 445g