Por Paulo Martins
É muito comum, nos dias de hoje, lendo jornais, revistas e livros, ou ainda, assistindo aos noticiários da televisão, observar usos contínuos e sistemáticos de certas palavras, sem, no entanto, nos ater ao seu significado exato e verificar o sentido que lhes está sendo impresso, ou ainda, sem ter a curiosidade de pesquisar suas origens, seu étimo. Talvez imaginemos que apenas decodificar o sentido das palavras a partir do nosso próprio uso seja suficiente para detectar-lhes o significado exato que no momento da enunciação está sendo empregado. É possível que isso realmente seja válido e relevante, mas é certo também que poderá não ser completa a compreensão de certos textos em determinados momentos.
Recentemente, pudemos assistir no Brasil ao caótico “apagão aéreo”. Tal expressão, que para o falante do português de quaisquer dos países lusófonos, à exceção dos brasileiros, pode soar incongruente, sem sentido, sem lógica, pois que tem seu significado associado ao uso cotidiano da língua. Assim, por conta da falta de energia elétrica, que assolou nosso país há alguns anos, por contigüidade, foi aproximado da falta de controle do tráfego aéreo. Assim “o apagão” que fora o de luz efetiva, foi ligado à outra carência que era a de organização do sistema de controle de vôo e dos aeroportos brasileiros. É ... A língua pode funcionar assim. Uma simples associação de significados de caráter meramente circunstancial e localizado que resume em uma só palavra um conceito, uma idéia, por vezes, complexa.
Por outro lado, se ao invés de “apagão”, usássemos crise, indubitavelmente, teríamos um sentido mais claro e, seguramente, denotativo. Sem se dizer no efeito de seu uso. Esse, é certo, é de matiz pejorativo. Afinal, o termo “crise” diacronicamente e, portanto, desde, pelo menos, o século XIX no português está ligado ao jargão médico, especificamente, determinando o ápice de uma doença e, segundo determina a lógica humana, nenhuma doença é boa. Antes disso, em outros países, como França (crise), Inglaterra (crisis), Alemanha (krise), Itália (crisi) e Espanha (crisis), nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, respectivamente, o termo surge, estabelecido pelos falantes como algo relativo ao campo da Economia. Não é de outra forma - isto é negativa - que a Língua Portuguesa, hoje, por sua vez, oferece um espectro muito largo de utilização do termo, a saber: três acepções utilizadas pela Medicina; quatro pela Psicanálise; duas pela Economia; cinco pela Sociologia.
O fato de a palavra crise aparecer nas línguas apontadas evidencia ao leitor cuidadoso um caminho etimológico fundamental para verificação de seus significados. O que haveria de comum entre elas? A resposta é imediata, uma vez que o inglês e o alemão são línguas que pertencem à família das línguas anglo-germânicas e o espanhol, o francês e o italiano são línguas derivadas do Romance (o latim vulgar), ou seja, são neolatinas. Entretanto essa separação em dois grupos é muito posterior ao uso da palavra, pois uma língua suposta, o proto indo-europeu uniria todas elas em um só grupo e por dedução já registraria a raiz “kr-”. Como não se tem registro dessa língua suposta, tomemos suas origens mais remotas hoje conhecidas: o grego antigo e o latim.
A palavra crise origina-se do verbo grego “kríno” que significa de acordo com o Dictionnaire Étymologique De La Langue Grecque de Pierre Chantraine: separar, apartar, escolher, cortar, decidir, fazer passar por um julgamento. Curiosamente, verificando esses significados, encontramos no latim um verbo cognato: “cerno”, cujos significados historicamente propostos no respectivo verbete do Oxford Latin Dictionary são: peneirar, separar, decidir, determinar, discernir com os olhos, discernir com o intelecto, perceber claramente, procurar, examinar. A crise, portanto, seria o resultado dessas atividades: a separação, a decisão, o julgamento, a escolha e a eleição. É digno de observação que em nenhuma dessas acepções o sentido do termo é exclusivamente negativo. Antes, assume certa neutralidade da atividade, seja ela advinda do ato mental, seja do ato mecânico. Assim, a “crise aérea”, ou simplesmente, o dito “apagão” no Brasil, sob a ótica da etimologia do termo, deveria ser vista como aferição de um processo e como tal servir para separar o joio do trigo, longe, portanto da constatação apenas de um caos que se instaurou no país.
Entretanto, para que esta última atividade fosse levada a bom termo, seria necessária uma disciplina reguladora da atividade da crise: a crítica. Em sua origem, que é a mesma de crise, era um adjetivo, isto é, “aquele que é capaz de discernir e julgar” (cf. A Greek-English Lexicon de Liddell e Scott). Porém, observada a diacronia, passou a ser o próprio “poder do discernimento” e, por extensão, a arte de julgar, “kritikê tékhné” (arte/técnica da crítica). E nas línguas modernas e, talvez, por sua influência, o uso na técnica de avaliar e julgar qualquer coisa ligou-se à obra de arte no francês do século XVI “critique”, no inglês do XVI “critic” e no inglês do XVII “criticism” e no italiano, no espanhol e no português do século XVIII “crítica”.
No Português contemporâneo, o Dicionário Houaiss propõe que esse substantivo feminino em sua primeira acepção desenvolve o conceito histórico relacionado à arte, contudo vai além como, por exemplo: “exame racional, indiferente a preconceitos, convenções ou dogmas, tendo em vista algum juízo de valor”, ou por metonímia: “escrito ou gravação resultante dessa atividade teórica, ideológica e/ou estética”; ou “exame de um princípio ou idéia, fato ou percepção, com a finalidade de produzir uma apreciação lógica, epistemológica, estética ou moral sobre o objeto da investigação”, e por último, numa rubrica filosófica: “questionamento racional de todas as convicções, crenças e dogmas, mesmo se legitimadas pela tradição ou impostas por autoridades políticas ou religiosas”.
Entre o agir (kríno) e a atividade (kritikê), porém, deve haver a capacidade mental que os decodifica como necessidade. Assim não basta observar a crise e ser hábil no avaliá-la. Uma capacidade intelectual se faz necessária, um imperativo: o discernimento. Ele, como se nota, é uma palavra cognata do verbo latino cerno (e dessa maneira, associada ao étimo de “kríno” e “cerno”) que sofreu no próprio latim prefixação do “dis-”, cujo significado, como em português, pode ser a disjunção, a separação, assim o processo de formação da palavra enfatiza que o julgamento pressupõe a separação do que é mal daquilo que é bom. Quanto ao significado em português, distante, no entanto, da carga pejorativa e/ou negativa de crise, o Dicionário Houaiss assim esclarece: “ato ou efeito de discernir. 1. Capacidade de compreender situações, de separar o certo do errado. 2. Capacidade de avaliar as coisas com bom senso e clareza; juízo, tino. 3. Conhecimento, entendimento.” Assim, nosso “apagão” aéreo, muito além de uma simples carência, deveria ser considerado crise para que pudéssemos agir criticamente, balizados pelo discernimento. Dessa forma, seguramente, teríamos muito mais do que a simples constatação de um problema, teríamos, sim, a clareza e a precisão de um evento que deve ser tratado com discernimento e não alheio às críticas que dele podem advir.