Paulo Martins
O livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga, que a editora Perspectiva acaba de relançar em sua impecável série "Estudos", possui uma história peculiar no mercado editorial brasileiro. Além de se constituir num exemplo preciso de referência obrigatória para aqueles que se debruçam sobre a questão da tragédia grega, é preciosa sua repercussão nos estudos estruturalistas que se desenvolvem a partir da segunda metade deste século. Dessa maneira, ora pode ser avaliado do ponto de vista dos estudos helênicos, ora do ponto epistemológico e metodológico das Ciências Humanas.
A obra em questão, na verdade, são duas uma vez que compreende a soma de duas publicações que originariamente, tanto na língua em que foi escrita como na sua tradução para o português, compreendiam dois livros separados cronologicamente por alguns anos. No Brasil, Mito e Tragédia I foi inicialmente publicada pela editora Duas Cidades em meados da década de 70, muito bem traduzida pelas professoras: Anna Lia de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata e Maria da Conceição Cavalcante. Aproximadamente, dez anos mais tarde a editora Brasiliense a reedita, com pequenas alterações, apresentando ao público brasileiro, também, o segundo volume. O que hoje é apresentado ao publico, portanto, é a soma destes duas, com pequeno estudo introdutório do professor Trajano Vieira da UNICAMP.
O que faria certo livro possuir tal história editorial em país onde dificuldades de publicação são inúmeras e, conseqüentemente, acesso à leitura é restrito? A resposta a para este questionamento está associada à classificação que pode ser atribuída à obra: indispensável, tanto no que se refere à contribuição para os estudos do fenômeno literário, psicológico e social, a tragédia grega, como no que se revela intrinsecamente à escritura analítica, ou seja, seus aspectos metodológicos e epistemológicos.
Tendo como ponto de partida os estudos de Meyerson e Gernet, Naquet e Vernant conseguem sistematizar e orientar a leitura da tragédia grega, alvo sistemático de leituras equivocadas e, até certo ponto, perniosas que propunham anacronicamente visadas sobre o assunto, aplicando seus conceitos próprios ao objeto que deveria ser observado dentro de critérios científicos e metodológicos, coetâneos à própria tragédia grega.
Nesse sentido, o que se tem é série de leituras e análises das mais diversas obras do gênero trágico grego que chegaram até nós dentro da perspectiva que opta recuperar estruturas sociais e de pensamento à época da produção do objeto, procurando, nos textos as chaves para sua própria decifração, sem deixar que as mesmas se estabeleçam impregnadas de desvios que acabam por torná-las equivocadas.
Essa postura, entretanto, cumpre uma série de procedimentos que, via de regra, servem para manter a análise dentro de balizas sustentáveis. A isto Vernant chama de contexto, ou melhor, subtexto que deve ser observado dentro das obras trágicas gregas, contudo sem jamais se afastar por demasiado. Diz: “Mais que um contexto, constitui um subtexto que uma leitura erudita deve decifrar na própria espessura da obra por um duplo movimento, uma caminhada alternada de idas e vindas. É preciso, em primeiro lugar, situar a obra, alargando o campo da pesquisa ao conjunto das condições sociais e espirituais que provocara a aparição da consciência trágica. Mas é preciso, em seguida, concentrá-lo exclusivamente na tragédia, nisto que constitui sua vocação própria: suas formas, seu objeto, seus problemas específicos”.
Do ponto de vista destas especificidades, encontramos ensaios excepcionais sobre as obras de Sófocles (sete), Ésquilo (três) e Eurípides (um), além de um conjunto de mais seis ensaios/capítulos de âmbito mais geral que versam sobre aspectos diversos da obra trágica na Grécia antiga. Muito embora possa parecer uma obra escolar a princípio, o livro não pode ser lido sem atenta observação do objeto em questão, ou seja, não há como penetrar nos conceitos trabalhados por Vernant e Naquet, sem antes se fazer o percurso saboroso e instigante dos tragediógrafos gregos. Quem pensa encontrar no decorrer do livro simplificações didáticas, deve afastar-se do mesmo, porquanto apenas mais dúvidas terá ao fim da leitura.
Talvez uma das formulações mais interessantes do texto (e são muitas), seja a constatação do equívoco psicanalítico na interpretação da tragédia, imposta por Freud e seus epígonos: “Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda (Édipo) muito mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que freqüentavam seu consultório?” Ou “Mas onde se situa este ‘sentido’ que se revelaria, assim, diretamente a Freud e, depois dele, a todos psicanalistas como se, novos Tirésias, um dom de dupla visão lhes tivesse sido outorgado para atingir, além das formas de expressão míticas e literárias, uma verdade invisível ou profana?”.
Por outro lado, não só Freud é colocado no centro das argumentações de Vernant e Naquet. No texto nos deparamos com um longo preâmbulo que conduz à discussão sobre um tópico extraído da Introdução geral à crítica da economia política de Karl Marx. Mas, o que Marx poderia nos oferecer acerca do mito e da tragédia da Grécia antiga? A tese funda-se numa questão de método, porque “se os produtos da arte (...) estão ligados a um contexto, como explicar que permanecem vivos (...) quando as formas de vida social se transformaram e as condições necessárias à sua produção se dissiparam?”.
A resposta estaria, inicialmente, na pseudo-ingenuidade dos textos gregos que recuperariam a infância “normal” da humanidade; seu frescor e ingenuidade, próprios da criança sadia, seduzem e deleitam o adulto, que encontra nelas “as primícias do que ele se tornou na maturidade, uma fase dele próprio, tão mais preciosa por ter se dissipado para sempre”. Esta tese marxista é refutada. Contudo, por outra do mesmo autor em o Esboço de uma crítica da economia política, obra na qual Marx observa o desenvolvimento dos sentidos humanos como resultado de fenômeno sócio-cultural. Daí, o prazer que o texto grego antigo atualmente produz, segundo Vernant, relaciona-se com este desenvolvimento. Portanto, “o objeto artístico – como qualquer outro produto – cria um público sensível à arte, um público que sabe usufruir a beleza”. “Em arte, a produção não produz apenas um objeto para o sujeito, mas um sujeito para o objeto”. Logo, a partir desse ponto de vista, a tragédia ainda hoje repercutiria porquanto construiu a partir dos gregos sensibilidade trágica que propõe ao espectador dúvida de caráter geral sobre a própria condição humana.
Contudo, mais interessante do que estas leituras críticas que são feitas ora do ponto de vista do vitupério, ora do louvor, o livro(s) de Vernant e Naquet nos oferece lições precisas e científicas acerca da tragédia grega. Hoje, vinte e sete anos após sua primeira publicação estas lições continuam sendo de essencial valor para os apreciadores e estudiosos do gênero. Não é de outra maneira que podemos ler, sem a menor ressalva, capítulos/ensaios como "Tensões e Ambigüidades na Tragédia Grega" no qual se discute o papel do coro e suas repercussões dentro da estrutura trágica ou "Ambigüidade e Reviravolta. Sobre a Estrutura Enigmática de Édipo-Rei" onde são estudados a ambigüidade das palavras e seu efeito dentro de um contexto dividido e dilacerado do Édipo de Sófocles, ou ainda, "Ésquilo, o passado e o presente", cuja centralidade está na discussão da obra de Ésquilo, diante das mudanças sócio-políticas ocorridas na Grécia em meados do V século a.C.
Por fim, quaisquer propostas de leitura sobre a obra de Jean-Pierre Vernant e de Pierre Vidal-Naquet não serão capazes de traduzir honestamente a importância e a vitalidade desse jovem texto de 27 anos, porquanto esbarrarão sempre na superficialidade e na limitação de seus comentadores, como é o caso que hoje se propõe. Entretanto, sempre será de suma importância alertar aos menos informados de que Mito e Tragédia na Grécia Antiga constitui-se numa obra de valor inestimável que vale ser lida e relida inúmeras vezes.