Paulo Martins
Hoje em dia, quando falamos em História ou em Literatura pensamos em disciplinas estanques, separadas. A primeira se ocupa da Verdade e é científica; a segunda é ficção e se ocupa do prazer estético, da fruição. Contudo, nem sempre a distinção entre as duas existiu, pois entre os gregos e romanos da Antigüidade, a História era considerada gênero literário como o teatro, a poesia épica e lírica e como tal deveria ser tratada, não se excluindo, porém, suas características diferenciadas que a associam com eventos ocorridos, com a narração, com o conhecimento do mundo e dos homens que nele se encontram.
Aristóteles - Musée du Louvre
Aristóteles, filósofo, cuja obra é caracterizada pelo largo espectro de observação do mundo, em seu texto sobre a poesia, a Arte Poética, no capítulo IX, propõe certa reflexão entre as duas, ao afirmar que: “não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) ─ diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere-se aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (Aristóteles – Arte Poética. São Paulo, Ed. Abril. 1971. p. 451. Trad.: Eudoro de Souza)
Portanto, se as Histórias de Heródoto, o pai da História, poderiam ser postas em verso e isto não impediria que seu texto fosse histórico, então, a conclusão é imediata: os critérios de análise de ambas são os mesmos, a não ser o fato de uma tratar de assuntos que são gerais, a poesia; e a outra tratar de assuntos que são específicos ou particulares, a história. Por outro lado, se a literatura e a poesia tratam de eventos que podem ocorrer, são grandes as possibilidades de encontrarmos textos poéticos e, portanto, literários que deitem seu tema sobre ocorrências que, por obra do acaso ou pela observação sistemática dos homens, tornaram-se uma realidade histórica sob uma perspectiva mais geral. Assim a poesia e a literatura podem auxiliar o historiador em sua tarefa de explicação do mundo, de compreensão da natureza humana.
Hayden White (1928) - Professor Emérito da Universidade da Califórnia
Sob um aspecto formal, podemos partir de outro princípio que norteia a produção histórica e a literária: o texto. E, dentro desta chave, o historiador contemporâneo Hayden White propõe: “Há, porém, um problema que nem os filósofos nem os historiadores encararam com muita seriedade e ao qual os teóricos da literatura só têm concedido uma atenção momentânea. Essa questão diz respeito ao status da narrativa histórica, considerada exclusivamente como um artefato verbal que pretende ser um modelo de estruturas e processos há muito decorridos e, portanto, não-sujeitos a controles experimentais ou observacionais. Isso não quer dizer que historiadores e filósofos da história não observaram a natureza essencialmente provisória e contingente das representações históricas e sua suscetibilidade a uma revisão infinita dos problemas à luz de novos testemunhos ou de uma conceituação mais elaborada.” (White, H. – Trópicos do discurso. São Paulo, Edusp. 1994. pp.98-9.)
Observando essas relações entre Literatura e História, podemos inferir que durante muito tempo e, isto vale principalmente para a pesquisa histórica do século XIX, portanto, idealista e, porque não dizer, romântica, o historiador buscou a partir de considerações específicas de certo evento histórico, traçar certas generalizações que tornaram a história algo geral e, assim, mais poética sob o ponto de vista aristotélico. Assim, ao mesmo tempo em que pleiteavam o estatuto científico da história, implementavam características subjetivas e pessoais de análise que não se coadunavam com o preceito de história como ciência e aproximavam-na de uma visão romântica de poesia.
Um fato interessante é que hoje ainda colhemos os frutos desse paradoxo, a História, tal e qual nos é ensinada, prima pelo poder de síntese e de ilações gerais, sem que atentemos para a idéia de que o registro histórico é um texto e, como tal deve ser observado, isto é, um texto que tem um agente por trás de si, um autor que possui sua visão de mundo, suas ideologias e, assim, o historiador não pode ser considerado o arauto da verdade única e exclusiva. Tanto isto é certo que sobre o mesmo evento, podemos encontrar visões, enfoques diferenciados. Um texto que trate da Guerra na Gália sob o ponto de vista de Júlio César seguramente trará por trás de si os interesses pessoais de Júlio César, bem como os interesses populares na República Romana do período, ao passo que, se nos restassem narrativas gaulesas sobre o mesmo evento, o ocorrido teria outra dimensão que não a proposta pelo general romano que, diga-se de passagem, possui vasta obra historiográfica, na qual se encontram seus comentários sobre a guerra na Gália (De Bello Gallico).
Essa mesma idéia que atinge a tarefa do historiador, também poderia ser aplicada ao jornalismo de hoje, desde assuntos mais prosaicos como o futebol até questões de relevância indubitável como o aquecimento global. O ex-jogador e médico Tostão, em sua coluna na Folha de São Paulo de 17 de fevereiro de 2008, mostra como isso pode acontecer, isto é, como uma observação objetiva dos fatos, ou melhor, dos eventos, pode estar a serviço de uma obra de ficção: “Percebi ainda que, quando há pequena diferença técnica entre duas equipes, o resultado de um jogo depende menos desses detalhes técnicos e táticos e mais do erro de um árbitro, de uma bola que bateu em alguém e mudou a trajetória e tantas coisas inesperadas. Após o resultado de uma partida, criamos, com ótimos ou maus argumentos, uma história ficcional, que parece muito ou pouco com a realidade”. (Andrade, Eduardo Gonçalves de (Tostão) – “O tempo passa”. In: Folha de São Paulo, p. D5. São Paulo. 17/02/08.)
Essa visão na Antigüidade Clássica estava descartada por princípio, pois estava na própria formação do homem grego, e, principalmente, do romano, o conhecimento de uma disciplina unificadora dos textos: a Retórica. Contudo, vale aqui eliminar um preconceito que curiosamente é romântico: a Retórica como algo pejorativo. Hoje quando falamos “isto é pura retórica”, estamos dizendo que o discurso ou fala de alguém é absolutamente vazia, sem conteúdo, o próprio Dicionário Houaiss assim propõe em uma de suas acepções: “discussão inútil; debate em torno de coisas vãs.” Tal posição se coaduna com uma aversão ou maldição a que foi submetida toda teoria clássica do texto no século 19. O mesmo preconceito ocorre quando chamamos alguém de “poeta”, como que esse indivíduo fosse um ser de outro planeta, alguém que vivesse no mundo da lua, fora da realidade, o mesmo dicionário indica: “aquele que é dado a devaneios ou tem caráter idealista”. A recusa da teoria poética e retórica clássicas é um marco histórico da produção literária romântica que, como limite estético, valoriza o individual, o gênio, o inspirado, o diferente e menospreza, desqualifica a técnica genérica que independe de recursos mentais pessoais diferenciados para sua consecução.
Se a Retórica não é isso a que estamos acostumados a entender, o que seria então? Nada mais ou menos do que uma disciplina que regula a produção dos textos, lhes impõe limites para que não haja dúvidas para o que se quer significar quando se fala ou se escreve. Podemos dizer que além de regular a produção textual, instrui a audiência, o leitor para os limites do próprio texto. Assim, se um determinado autor propõe uma metáfora ou uma metonímia dentro de seu discurso, seguindo para tanto a utilização de uma das virtutes elocutionis que é o ornatus, a recepção apta, portanto, conhecedora dos recursos discursivos, jamais as lerá como literais. Para ser mais preciso, a Retórica destina-se a operar cada momento específico da produção textual, independentemente do gênero do texto, isto é, se é filosófico, histórico, oratório ou poético.
Assim, o leitor ou até mesmo uma audiência iletratada diante de uma tragédia ou de um relato histórico procurava reconhecer a habilidade do autor, discernindo se o autor atendia ou não as normas reguladoras do gênero textual que produzira.
Pensando, portanto, a História como texto e, dessa maneira, sujeita aos regulamentos da disciplina organizadora e reguladora dos discursos, podemos dizer que ela, a História, pode e deve ser observada sob dois prismas imbricados: um primeiro que é a própria linguagem e um segundo que é o evento. Contudo, o primeiro interfere na significação do segundo, pois ele é a sua matéria prima e o segundo é apenas uma representação do ocorrido. Fazer História para os antigos pressupunha esses dois níveis, assim todos os textos históricos da Antigüidade Clássica greco-romana contam preliminarmente com um prefácio e/ou uma metodologia que esclarecem não só a prática de investigação, mas também, aspectos da própria concepção de representação e, por conseguinte, de escrita.
Não é de outra forma que devemos avaliar os escritos de Herótodo, Tucídides, Salústio, Tito-Lívio, Tácito, Suetônio, Eutópio ou Plutarco. Tomemos o exemplo de “o pai da História”: “Os resultados das investigações de Heródoto de Halicarnasso são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam. (...) Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira a ofender os helenos, e assim prosseguirei com a minha história, pois muitas cidades outrora grandes agora são pequenas, e as grandes no meu tempo eram outrora pequenas. Sabendo portanto que a prosperidade humana jamais é estável, farei menção a ambas igualmente.” (Heródoto – Histórias, Brasília: Ed.UnB. pp.19-20. Trad.: Mário da Gama Cury)
Heródoto de Halicarnasso - c.485-420 a.C.
Heródoto de chofre aponta seu objetivo de escrita “para que a memória não se apague com o passar do tempo, e para que os feitos (...) não deixem de ser lembrados”. Tal asserção deve ser observada sobre dois pontos de vista: o primeiro diz respeito à própria constituição do discurso que pressupõe função objetiva, isto é, seu “estado da questão”, pressuposto retórico do proemium. O segundo, por sua vez, diz respeito à recepção do texto no viés da narrativa helênica cuja origem é essencialmente épica, afinal há que se observar a indicação de termos que se filiam à tradição homérica: “memória”, “passar do tempo”, “feitos maravilhosos e admiráveis”, “ser lembrados”. Mais adiante, Heródoto aponta o foco particular de sua narrativa ao propor: “Quanto a mim, não direi a respeito dessas coisas que elas aconteceram de uma maneira ou de outra, mas apontarei a pessoa que, em minha opinião, foi a primeira”. Sua História, portanto, apesar de dar atenção a dois lados do evento, não exclui em hipótese alguma a “minha opinião”, o que em certa medida obtura a possibilidade da Verdade-geral e faz com que a narrativa granjeie contornos de um verossímil-particular a partir do “sujeito” que o enuncia.
Michel De Certeau: 1925-1986
Entretanto, mesmo tendo em mãos esses dois aparatos essenciais à compreensão dos textos da Antigüidade Clássica, a saber: uma Retórica e certa Metodologia, a historiografia antiga estaria sub iudice no que se refere à Verdade, pois que ela, a História, ainda seria tutelada pelo prisma, pelo foco ou pelo enfoque de um morto, de um ausente ou, simplesmente, de uma ruína que é o próprio texto, seu suporte. Michel De Certeau bem afirmou: “Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no clamo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente. Ela reitera um regime diferente, os mitos que se constroem sobre o assassinato ou uma morte originária, e que fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente de um começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer.” (De Certeau, Michel – A Escrita da História. RJ: Forense. 1982. p.57.)