domingo, 2 de setembro de 2007

Tarantino's Mind - Uma preciosidade

Apesar de a discussão sobre cinema não ser meu objetivo neste blog, não posso deixar de dividir com vocês esta preciosidade de curta-metragem. O filme chama-se Tarantino's mind, dirigido pela dupla carioca 300ml, da Hungry Man e produzido pela Republika Filmes.

Ele foi exibido pela primeira vez no Festival Rio 2006. E está sendo exibido no programa Panorama Brasil, da 18ª edição do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Na época de sua apresentação no Rio, há quem diga que foi o que ocorreu de melhor e, agora, tendo eu assistido, concordo plenamente, apesar de não ter visto os outros concorrentes.

O curta ambienta-se no antigo bar paulistano Pandoro (Av. Europa) e põe em cena dois personagens protagonizados por Selton Mello e Seu Jorge numa conversa de botequim, regada a chopp e batatas fritas.

O enredo, extremamente simples, gira em torno da possibilidade de decifração da "cabeça" do cineasta norte-americano Quentin Tarantino (do qual sou fã). Na verdade, o que o personagem de Selton Mello propõe é uma unidade possível dos filmes do afamado diretor, isto é, a partir de cenas, personagens e elementos cenográficos, ele verefica que o diretor recicla, repropõe, retoma os mesmos elementos, cenas e personagens constantemente, gerando, por assim dizer, um moto-continuo de intertextualidade ou dialogismo.

Assim, teria o criador de Pulp Fiction, Kill Bill, Grindhouse e Reservoir Dogs, segundo o diálogo impagável e mirabolante, feito um único filme, exibido em etapas. Por sua vez, a montagem curiosa e acurada faz com que a teoria proposta do “código Tarantino” torne-se visível a olhos nus para nós, meros espectadores leigos.

O filme será exibido e estará concorrendo a prêmios nos seguintes Festivais:

Festival de Curtas de Los Angeles - 05 a 16 de setembro.
Festival de Curtas de Veneza - 01 a 07 de setembro.

Clique e confira, são apenas 12 minutos. Vale mesmo!!!

http://video.google.com/videoplay?docid=1511515986562993804

sábado, 1 de setembro de 2007

VERNANT, J.-P. ET VIDAL-NAQUET, P. - Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo, Perspectiva. 1999.


Paulo Martins

O livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga, que a editora Perspectiva acaba de relançar em sua impecável série "Estudos", possui uma história peculiar no mercado editorial brasileiro. Além de se constituir num exemplo preciso de referência obrigatória para aqueles que se debruçam sobre a questão da tragédia grega, é preciosa sua repercussão nos estudos estruturalistas que se desenvolvem a partir da segunda metade deste século. Dessa maneira, ora pode ser avaliado do ponto de vista dos estudos helênicos, ora do ponto epistemológico e metodológico das Ciências Humanas.


A obra em questão, na verdade, são duas uma vez que compreende a soma de duas publicações que originariamente, tanto na língua em que foi escrita como na sua tradução para o português, compreendiam dois livros separados cronologicamente por alguns anos. No Brasil, Mito e Tragédia I foi inicialmente publicada pela editora Duas Cidades em meados da década de 70, muito bem traduzida pelas professoras: Anna Lia de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata e Maria da Conceição Cavalcante. Aproximadamente, dez anos mais tarde a editora Brasiliense a reedita, com pequenas alterações, apresentando ao público brasileiro, também, o segundo volume. O que hoje é apresentado ao publico, portanto, é a soma destes duas, com pequeno estudo introdutório do professor Trajano Vieira da UNICAMP.


O que faria certo livro possuir tal história editorial em país onde dificuldades de publicação são inúmeras e, conseqüentemente, acesso à leitura é restrito? A resposta a para este questionamento está associada à classificação que pode ser atribuída à obra: indispensável, tanto no que se refere à contribuição para os estudos do fenômeno literário, psicológico e social, a tragédia grega, como no que se revela intrinsecamente à escritura analítica, ou seja, seus aspectos metodológicos e epistemológicos.


Tendo como ponto de partida os estudos de Meyerson e Gernet, Naquet e Vernant conseguem sistematizar e orientar a leitura da tragédia grega, alvo sistemático de leituras equivocadas e, até certo ponto, perniosas que propunham anacronicamente visadas sobre o assunto, aplicando seus conceitos próprios ao objeto que deveria ser observado dentro de critérios científicos e metodológicos, coetâneos à própria tragédia grega.


Nesse sentido, o que se tem é série de leituras e análises das mais diversas obras do gênero trágico grego que chegaram até nós dentro da perspectiva que opta recuperar estruturas sociais e de pensamento à época da produção do objeto, procurando, nos textos as chaves para sua própria decifração, sem deixar que as mesmas se estabeleçam impregnadas de desvios que acabam por torná-las equivocadas.


Essa postura, entretanto, cumpre uma série de procedimentos que, via de regra, servem para manter a análise dentro de balizas sustentáveis. A isto Vernant chama de contexto, ou melhor, subtexto que deve ser observado dentro das obras trágicas gregas, contudo sem jamais se afastar por demasiado. Diz: “Mais que um contexto, constitui um subtexto que uma leitura erudita deve decifrar na própria espessura da obra por um duplo movimento, uma caminhada alternada de idas e vindas. É preciso, em primeiro lugar, situar a obra, alargando o campo da pesquisa ao conjunto das condições sociais e espirituais que provocara a aparição da consciência trágica. Mas é preciso, em seguida, concentrá-lo exclusivamente na tragédia, nisto que constitui sua vocação própria: suas formas, seu objeto, seus problemas específicos”.


Do ponto de vista destas especificidades, encontramos ensaios excepcionais sobre as obras de Sófocles (sete), Ésquilo (três) e Eurípides (um), além de um conjunto de mais seis ensaios/capítulos de âmbito mais geral que versam sobre aspectos diversos da obra trágica na Grécia antiga. Muito embora possa parecer uma obra escolar a princípio, o livro não pode ser lido sem atenta observação do objeto em questão, ou seja, não há como penetrar nos conceitos trabalhados por Vernant e Naquet, sem antes se fazer o percurso saboroso e instigante dos tragediógrafos gregos. Quem pensa encontrar no decorrer do livro simplificações didáticas, deve afastar-se do mesmo, porquanto apenas mais dúvidas terá ao fim da leitura.


Talvez uma das formulações mais interessantes do texto (e são muitas), seja a constatação do equívoco psicanalítico na interpretação da tragédia, imposta por Freud e seus epígonos: “Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda (Édipo) muito mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que freqüentavam seu consultório?” Ou “Mas onde se situa este ‘sentido’ que se revelaria, assim, diretamente a Freud e, depois dele, a todos psicanalistas como se, novos Tirésias, um dom de dupla visão lhes tivesse sido outorgado para atingir, além das formas de expressão míticas e literárias, uma verdade invisível ou profana?”.


Por outro lado, não só Freud é colocado no centro das argumentações de Vernant e Naquet. No texto nos deparamos com um longo preâmbulo que conduz à discussão sobre um tópico extraído da Introdução geral à crítica da economia política de Karl Marx. Mas, o que Marx poderia nos oferecer acerca do mito e da tragédia da Grécia antiga? A tese funda-se numa questão de método, porque “se os produtos da arte (...) estão ligados a um contexto, como explicar que permanecem vivos (...) quando as formas de vida social se transformaram e as condições necessárias à sua produção se dissiparam?”.


A resposta estaria, inicialmente, na pseudo-ingenuidade dos textos gregos que recuperariam a infância “normal” da humanidade; seu frescor e ingenuidade, próprios da criança sadia, seduzem e deleitam o adulto, que encontra nelas “as primícias do que ele se tornou na maturidade, uma fase dele próprio, tão mais preciosa por ter se dissipado para sempre”. Esta tese marxista é refutada. Contudo, por outra do mesmo autor em o Esboço de uma crítica da economia política, obra na qual Marx observa o desenvolvimento dos sentidos humanos como resultado de fenômeno sócio-cultural. Daí, o prazer que o texto grego antigo atualmente produz, segundo Vernant, relaciona-se com este desenvolvimento. Portanto, “o objeto artístico – como qualquer outro produto – cria um público sensível à arte, um público que sabe usufruir a beleza”. “Em arte, a produção não produz apenas um objeto para o sujeito, mas um sujeito para o objeto”. Logo, a partir desse ponto de vista, a tragédia ainda hoje repercutiria porquanto construiu a partir dos gregos sensibilidade trágica que propõe ao espectador dúvida de caráter geral sobre a própria condição humana.


Contudo, mais interessante do que estas leituras críticas que são feitas ora do ponto de vista do vitupério, ora do louvor, o livro(s) de Vernant e Naquet nos oferece lições precisas e científicas acerca da tragédia grega. Hoje, vinte e sete anos após sua primeira publicação estas lições continuam sendo de essencial valor para os apreciadores e estudiosos do gênero. Não é de outra maneira que podemos ler, sem a menor ressalva, capítulos/ensaios como "Tensões e Ambigüidades na Tragédia Grega" no qual se discute o papel do coro e suas repercussões dentro da estrutura trágica ou "Ambigüidade e Reviravolta. Sobre a Estrutura Enigmática de Édipo-Rei" onde são estudados a ambigüidade das palavras e seu efeito dentro de um contexto dividido e dilacerado do Édipo de Sófocles, ou ainda, "Ésquilo, o passado e o presente", cuja centralidade está na discussão da obra de Ésquilo, diante das mudanças sócio-políticas ocorridas na Grécia em meados do V século a.C.


Por fim, quaisquer propostas de leitura sobre a obra de Jean-Pierre Vernant e de Pierre Vidal-Naquet não serão capazes de traduzir honestamente a importância e a vitalidade desse jovem texto de 27 anos, porquanto esbarrarão sempre na superficialidade e na limitação de seus comentadores, como é o caso que hoje se propõe. Entretanto, sempre será de suma importância alertar aos menos informados de que Mito e Tragédia na Grécia Antiga constitui-se numa obra de valor inestimável que vale ser lida e relida inúmeras vezes.

A tragédia das tragédias – Édipo Rei de Sófocles

Édipo e a Esfinge - Museu do Louvre - Paris

Paulo Martins



Talvez entre as poucas tragédias gregas que nos chegaram, uma seja realmente muito especial: Édipo Rei. Não que as demais de Sófocles (496-405 a.C.): Antígona, Ájax, Édipo em Colono, Electra, Filoctetes ou As Traquinas, ou mesmo as de Ésquilo (525-456 a.C.) e as de Eurípides (480-406 a.C.) sejam obras menores, longe disto! Contudo, a dimensão humana e divina, a trama e a constituição das personagens desenhadas nesta obra ultrapassam, de longe, ao que se via nos festivais de teatro da Grécia dos séculos V e IV a.C., ou mesmo, ouso dizer, ao que se vê nos dias de hoje em relação ao gênero dramático. Outro fator que pode ter colaborado para sua popularização, a despeito de sua qualidade literária, foi ter sido ponto de referência de Freud e Jung – este último deu nome ao conceito descrito pelo primeiro – para uma peculiar constelação de desejos amorosos e hostis que a criança vivencia em relação aos seus pais no pico da fase fálica. Porém, creio que para nós, que gostamos de literatura antiga, Freud hoje possa ser deixado de lado, afinal, Sófocles jamais foi a Londres ou a Viena, tampouco, fez terapia.


Quando, no século IV a.C., Aristóteles (384-322 a.C.) propôs uma teoria da tragédia em seu texto a Arte Poética, sistematicamente, usou como exemplo de tragédia bem construída o Édipo Rei. Apontou elementos que deveriam ser seguidos pelos futuros autores de teatro a fim de lograrem sucesso com suas composições. E, de fato, a tradição clássica nos mostra que seus conselhos eram profícuos. Entre muitos, três são fundamentais: o terror e a piedade, o reconhecimento e a peripécia e, por fim, a função do coro dentro do enredo. Tais elementos observados no interior da obra podem, em certa medida, justificar a fama e a glória desta peça.


Édipo é uma personagem que já nasceu com seu destino predeterminado, seus pais verdadeiros, Laio e Jocasta, antes do nascimento, souberam que o destino dele era matar o próprio pai. Nesse sentido, houve por bem eliminá-lo ao nascimento e, para tanto, deram-no a um escravo para que o matasse, pendurando-no pelos pés no alto do monte Citéron na Beócia – vale dizer que Édipo significa “de pés inchados”. Lá colocado, foi salvo por um pastor, que o entregou aos reis de Corinto, Políbio e Mérope, os quais o criaram como se fosse seu filho. Já na maturidade, Édipo vai ao oráculo de Delfos para saber de Apolo qual seria seu destino e, esse lhe informa que mataria seu pai e se “casaria” com a mãe. Horrorizado com tal vaticínio, foge para tentar evitar o destino prenunciado. É quando volta, sem saber, ao seio dos pais verdadeiros. Entretanto, nessa viagem encontra-se com Laio e o mata. Ao chegar a Tebas, sua cidade natal, a mesma era assolada por uma esfinge, que devorava a todos que não conseguissem decifrar seus enigmas. Édipo para o suposto “bem da cidade” decifra o enigma e devolve a paz à cidade. Com isso e com a morte do rei de Tebas (Édipo já matara Laio, seu pai), Édipo assume o poder da cidade, além de os cidadãos darem-lhe Jocasta como esposa. Tal situação trágica corresponde ao início da peça de Sófocles, pois que é a partir desse ponto que o teatro se desenrola. A cidade, por conta da confirmação do oráculo inicial de Apolo, passa a ser dizimada por uma peste sem que o rei, Édipo, e toda população entendam o porquê.


Toda tragédia deve, pois, suscitar dois sentimentos: terror e piedade e, estes podem advir do espetáculo cênico, isto é, de uma montagem bem elaborada e do bom desempenho dos atores; como, também, da excelência da trama, do enredo. Neste segundo caso, o texto se desprenderia da encenação e autonomamente sobreviveria, despertando aquelas sensações que caracterizam a tragédia, ou seja, a íntima conexão entre os atos seria capaz de despertar em nós a purgação dos males (catarse) que afligem as personagens e, segundo o filósofo, isso acontece no Édipo Rei. Assim, não precisaríamos assistir ao Édipo, bastaria lê-lo.


Outra característica importante da tragédia é a presença do reconhecimento e a peripécia. No primeiro caso, um mecanismo de composição que determina que uma personagem passa do desconhecer ao conhecer, impondo uma alteração no rumo dos acontecimentos. Diz Aristóteles: “O ‘reconhecimento’, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita.” Já o segundo seria a alteração no rumo da história em seu contrário, isto é, “a mutação dos sucessos no contrário”. Esses dois elementos constitutivos da tragédia quando ocorrem simultaneamente produzem um efeito belíssimo e é o que acontece na peça de Sófocles: Édipo deverá chegar à conclusão, sozinho, de que ele é o flagelo de Tebas, a não confirmação de sua morte inicial instaurou um confronto entre o plano humano e o plano divino do qual só pode haver um vencedor, os representantes de forças superiores. A descoberta por parte do protagonista de que ele mesmo é o causador dos danos, ao mesmo tempo em que se caracteriza como um reconhecimento, também produz uma peripécia na tragédia, alterando o desenrolar dos fatos em seu contrário, culminando com o desenlace da trama que se reduz a uma autopunição que é a cegueira física de Édipo, reflexo de uma cegueira existencial.


Ainda segundo Aristóteles, uma tragédia bem escrita não pode deixar de lado a função do coro que deve ser considerado uma personagem como outra qualquer, contudo com suas características próprias, ou seja, uma personagem coletiva que se atém ao representar o pensamento da cidade, da polis e se ocupa da dimensão humana da tragédia, desempenhando um papel coerente ao enredo. Édipo Rei de Sófocles, muito além de nos colocar diante de forças divinas superiores e irreprocháveis, também nos coloca diante a clareza, vitalidade e racionalidade do mundo humano grego, que não é outro senão o nosso próprio.