Epoque archaïque, vers 550-540 av. J.-C.
© Musée du Louvre
Paulo Martins
O período, compreendido entre os séculos VII e V a.C., na Grécia – lembrem que a geopolítica da época inclui como Grécia não só a península Balcânica, como também as ilhas do Mediterrâneo e a chamada Ásia Menor –, marca significativas mudanças naquela que viria a ser talvez a mais importante civilização ocidental. A relevância desse agrupamento humano, unificado pela língua e pelos costumes, pode ser aferida em todos os ramos de atividade humana: desde a poesia até a medicina, da filosofia às artes visuais, da economia até a astronomia.
Mas que mudanças são estas tão importantes para uma sociedade que já se tornara conhecida no mundo conhecido à época? Uma sociedade que já havia nos legado Homero e Hesíodo? Bem, para que compreendamos isso, alguns pressupostos são fundamentais. O primeiro deles diz respeito à organização sóciopolítica dessa civilização que durante séculos - e isto pode ser verificado a partir dos textos épicos e trágicos, que nos restaram, e a partir da cultura material, que a Arqueologia nos trouxe à luz, – cuja forma era marcadamente centralizada na figura de um rei, ou como eles chamavam um “basiléos”, que, responsável hereditário por um “génos”, grupo expandido de um núcleo familiar, geria a justiça, a política, a economia, a guerra e a religião. Esses reinos mantinham entre si, dependendo principalmente de sua origem, não rara vez, certa rivalidade o que os levava com freqüência à guerra, ao conflito bélico. Exemplo maior: a campanha de Tróia.
Marca expressiva dessa sociedade era também sua agrafia, isto é, os helenos – como eram chamados -, a despeito de em épocas imemoriais terem tido acesso a uma forma de escrita (o linear B do período minóico é uma constatação), no período pré-homérico e homérico não possuíam escrita e, portanto podiam ser caracterizados como cultuadores da memória e da oralidade. A partir, no entanto, do colapso desses reinos, surge um fator geopolítico importantíssimo, a “pólis”, a cidade estado e com ela a escrita e a moeda. Tais criações em certa medida eliminavam o poder centralizador do “basiléos” em nome de um poder coletivo que em sua forma ateniense veio a receber o nome de democracia.
Essas novidades imbricadas - e não poderia ser de outra forma – a cidade, a moeda e a escrita – dialeticamente configuram ou determinam um novo homem, um ser que doravante passa a ser o centro dos questionamentos e das preocupações comuns aos comuns homens: De onde vim? Como vivo? Para onde vou? Quem sou eu? A dimensão divina, ainda que longe de ser descartada, passa a dividir certo espaço dentro das mentes gregas com a dimensão humana. O “mythos” cede, pois, lugar ao “lógos”. O discurso racional valoriza-se diante do discurso religioso, e escrita, por seu turno, é o meio para disseminação desse pensamento, dessas preocupações e desses questionamentos. É nesse ambiente, agora, que novas formas de expressão são valorizadas. Surgem os primeiros discursos filosóficos a que a doutrina vai dar o nome de fisiólogos, uma vez que se atêm à observação e explicação da physis, a natureza. Anaximandro (609-547) e Anaxímenes de Mileto (585-528), Pitágoras de Samos (571-532), Tales de Mileto (625-558), Heráclito de Éfeso (540-470), Parmênides de Eléia (530-460) e outros são exemplos de filósofos ou fisiólogos, hoje conhecidos como pré-socráticos.
Não só a filosofia floresce no bojo dessa nova sociedade, mas também a poesia em outras modalidades que não épicas ou sapienciais – Homero e Hesíodo são prototípicos. Tal poesia, a que hoje em sentido mais amplo dá-se o nome de lírica, passa ocupar lugar de destaque na produção literária grega. Vale lembrar, entretanto, que, ao contrário do que possa parecer, ela não é um fenômeno novo, antes tem suas origens em tempos tão remotos quanto à épica. Teria ela assento dentro da oralidade que caracterizara o mundo helênico pré-homérico junto aos ritos religiosos, às festas de semeadura e colheita, aos funerais, aos banquetes e a outros eventos típicos daquela antiga sociedade. Agora no século VII e VI a.C., no entanto, não se fixa especificamente a estes ritos ou momentos de performance, mas, sim, como meio expressivo do novo homem grego afeito a um tipo de sociedade em que as angústias e anseios do “ânthropos” (o ser humano) devem ser observados e discutidos. O herói isoladamente não é mais uma preocupação a não ser quando colocado lado a lado ao mortal, ao ser como nós, como bem alertou Aristóteles na Arte Poética, trezentos anos mais tarde.
Marcada por uma multifacetada gama de motivos, a lírica arcaica grega, sob essa perspectiva que acabamos de apontar foi explorada amiúde em várias cidades gregas, e, entre os nomes mais significativos encontramos: Safo de Lesbos, Alceu, Estesícoro, Calino, Tirteu, Arquíloco e Mimnermo entre outros. Não se apegando a uma temática específica, tampouco a uma unidade métrica, a poesia lírica arcaica pode ser entendida na Antigüidade Clássica a partir de uma afirmação do poeta latino Tertuliano (150-222 d.C.): “multicolor, de várias cores, versicolor, nunca a mesma, mas sempre outra, embora sempre a mesma quando outra, tantas vezes enfim mudando-se quantas movendo-se.” Outro dado importante acerca dessa era sua subdivisão de gêneros. Poderia a lírica ser monódica ou coral, isto é, além do fato de ser cantada – toda ela o era – poderia ser cantada por um cantor apenas, ou por um grupo deles. Poderia também ser observada de acordo com o tipo de acompanhamento musical: a aulética e a citarística são exemplos de poesia lírica cujo acompanhamento era o aulós, espécie de flauta e a cítara, um de instrumento de cordas respectivamente.
Nascido na ilha de Paros, Arquíloco talvez seja o poeta que mais amplamente trabalhou com a diversidade temática possível para o gênero lírico uma vez que não só se ateve à invectiva (maledicência), mas também se ocupou de tratar de assuntos relativos à guerra e vida comum. Mais do que o simples tratamento de temas diversos, este poeta observou a vida do homem em sociedade: “Coração, coração de imediatos nojos agitado,// levanta, às aflições resiste lançado um contrário // peito, a embustes de inimigos de perto contraposto // com firmeza; e nem vencendo abertamente exultes // nem derrotado em casa abatido te lamentes, // mas com alegrias te alegra e com reveses te aflige // sem excesso; e conhece qual ritmo regra os homens.” (trad.: José Cavalcante de Souza) A temperança e a justa medida das coisas que coíbem o excesso é marca clara nesse poema que se constitui numa clara “crítica” ao pensamento épico ou trágico grego.
Aliás, curioso é o tratamento ao tema bélico que o poeta de Paros oferece a essa nova sociedade se compararmos àquele dado por Homero na Ilíada e na Odisséia: “o escudo um Saio dele se orgulha, numa moita // arma impecável deixei-o sem querer, // mas eu mesmo o fim da morte evitei; aquele escudo // que se vá; de novo um comprarei não pior.” (trad.: José Cavalcante de Souza) Havia uma máxima grega que dizia que uma mãe espartana falara um dia a seu filho que ia à guerra “volte com seu escudo ou sobre ele”. Este pequeno fragmento comprova séria alteração no modo de pensar a guerra, ao contrário, pois, do que ditava a tradição bélica dos helenos, Arquíloco sugere que em nome da própria sobrevivência seria conveniente abandonar as armas, pois esta é facilmente substituível, enquanto a vida não. Outro poema que segue esta mesma chave é: “Vamos, de Canecão pelo convés de veloz nau // anda e a bebida tira dos cavos tonéis // e caça o vinho até a borra; pois também nós // sem beber nesta vigília não poderemos.”(trad.: Antônio Medina Rodrigues). Afora a circunstancialidade do texto, o último verso deste poema é fundamental, pois aponta para os limites de tolerância do homem comum na guerra. Aquela sobriedade épica do guerreiro, agora é trocada pela embriaguez lírica: a guerra é suportável desde que acompanhada de um bom vinho.
Já Mimnermo, nascido na cidade Cólofon (630-600 a.C.), restringe sua poesia lírica não só a uma unidade métrica específica – o dístico elegíaco, como, também, a uma só temática: o passar dos anos e a dicotomia existente entre a velhice e a juventude. Conhecido no século XIX, como o poeta do hedonismo helênico, caracterização absolutamente discutível, além anacrônica uma vez que a idéia de hedonismo solidifica-se a partir de uma visão psicologizante, o poeta pode ser considerado como pai de certos lugares comuns da poesia clássica, como, por exemplo, o da efemeridade da vida: “Nós, como a tantas flores faz a primavera// Abrir as folhas, nós, quais flores tenras, // Ébrios vamos vivendo efêmero fulgor, // Sem sabermos o mal ou bem que os deuses tramam // As negras Parcas espionam, entretanto, // Uma em torturas arremata o tempo nosso, // Outra costura a morte, e dura a juventude // O tanto quanto o sol passeia ao solo. // Morrer prefiro, antes que suma a primavera. // Dentro da alma, depois dela, caem os males, // E, arrematada a queda, sobra a feita mágoa: // Um vai dentro do Inferno uivar os filhos // Que não teve, outro adoece e morre, qual! // Aos males que nos manda Zeus ninguém escapa!” (trad: Antônio Medina Rodrigues). A despeito do fato de a comparação do homem com as plantas já ter ecos na poesia épica, a sua solidificação dá-se a partir do século VII a.C.. Nós, assim, estaríamos sujeitos às mesmas limitações de vida daquelas, além de absolutamente subordinados às benesses dos deuses imortais. Enquanto na épica e na tragédia, em certa medida, os homens se colocam lado a lado aos imortais; aqui eles estão resignados a sua condição de inferioridade. Contudo, sem abrir mão da racionalidade, do “lógos”, pois que, como bem assevera o fragmento de Mimnermo, a velhice e seus males podem estar sujeitos também a uma opção de sobrevivência: “Morrer prefiro”.
Se de um lado, o homem pode optar pela morte – reflexo da imperativa razão –, não é de se estranhar que vitupere contra a velhice e seus limites: “Qual vida tem valor, sem de Afrodite// As da dádivas douradas? Antes quero a morte,// Se os beijos não tiver, e a cama e os apetites,// Que são da rubra mocidade a sorte, // Varões a porem nus e senhoritas.// A idade, ao descambar num ser humano, // Imprime nele os males todos: tudo o irrita. // Nem o aviva mais o sol, o céu de Urano, // Nem nas crianças vê coisa bonita. // E as fêmeas o desprezam, tanto o Soberano // Ao homem no final da vida prejudica.” (trad.: Antonio Medina Rodrigues) É interessante verificar que Mimnermo associa a vida à consumação do amor. Isto é, se já não temos mais condições físicas que façam Afrodite nos “propiciar”, a vida não tem mais motivo de ser.
É tônica desta poesia, portanto, além desse tipo de reflexão humana acerca dos limites da vida, o lamento. Tal fato, de certa forma, corrobora a tese de origem do subgênero lírico: a elegia: “Um sopro, um sonho leve dura a preciosa // Juventude, antes de que em nós se enlace // A insídia gris dessa velhice odiosa, // Que a pele nossa enruga e o corpo infama, // E faz de nós quem nunca fomos, cinza e frio // Da alma com seu simples espraiar-se.” (trad.: Antonio Medina Rodrigues)
Talvez, mais do que a poesia épica de Homero ou a trágica de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a lírica grega arcaica seja a poesia com a qual nós mais nos identifiquemos hoje em dia. Tal identificação só pode encontrar guarida em seu caráter universal, ou seja, a efetiva imbricação entre razão e sentimento, medidas absolutas e definitivas do homem. Arquíloco, de um lado, ao observar limites que devemos transpor ou superar uma vez que não somos deuses ou heróis e Mimnermo, de outro, ao ditar que podemos nos contrapor a imperativos categóricos da própria existência, perfazem, ambos, a figuração do homem que se nos é imposta hoje: limitados, porém com todas as condições de transgressão às razões da natureza e dos deuses.