Retrato de Aristóteles. Mármore pentélico, cópia do período Imperial (1o. ou 2o século da nossa era), a partir de uma escultura em bronze de autoria de Lisipo.
Museu do Louvre - Paris
Paulo Martins
Ao invés de falar a respeito de um autor essencialmente literário, como venho fazendo nesta coluna, abro espaço a um filósofo, talvez dos mais significativos e copiosos que os gregos antigos nos legaram: Aristóteles. Isto não sem motivos. Afinal, pode-se dizer, de um lado, que, no âmbito das práticas letradas da Antigüidade Clássica greco-romana, a filosofia, sob a perspectiva da constituição do texto, assim como a história, representa um gênero que, por si, pode ser observado literariamente; de outro lado, não apenas na obra ora observada, a Arte Poética, o filósofo de Estagira centra sua reflexão sobre uma questão literária, mas também em outra cujo fulcro é o texto em prosa e, nesse sentido, encontramos a Arte Retórica, texto, sem o qual pouco ou quase nada poderíamos aferir das técnicas de construção literária até pelo menos o século XVIII. Dessa forma, falar de Aristóteles é também falar dos primeiros textos de teoria literária no ocidente.
Nascido em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C., aos 17 anos, muda-se para Atenas onde passa a fazer parte da Academia platônica, isto é, passa a ser discípulo de Platão até a morte deste em 347. Em 343, assume a função de preceptor de Alexandre, o grande na Macedônia onde fica até 336. Retorna a Atenas e funda o Liceu. Apesar de sua filiação platônica, Aristóteles é conhecido, pelo menos, sob o ponto de vista de uma teoria literária antiga, como antípoda daquele filósofo. Enquanto Platão, seja n’A República, seja no Íon, assim como no Fedro, critica a idéia de valorização da poesia como imitação, julgando-a distante da Verdade e observando que o único tipo de poesia que deve ser valorizada é a inspirada - aquela que sobrevém como inspiração divina ou como “mania” (possessão) - Aristóteles, por seu turno, defende a concepção de poesia como técnica (técne/ars) e mimese (imitação), não construindo, em momento algum, juízo de valor sobre o fato de ela ser Verdadeira, ou ainda, perniciosa ou infesta como um todo à formação do homem político (homem da pólis).
Ao exalçar a atividade humana da técne (ars-técnica) como forma de conhecimento, o filósofo dedicou-se a descrever a atividade literária grega em duas grandes obras: A Poética e a Retórica. A primeira dividida em dois livros dos quais nos restou apenas o primeiro, trata da fundamentalmente de dois gêneros literários muito caros aos gregos: A epopéia e a tragédia. Há a informação de que o segundo livro da Poética trataria de outros dois gêneros: a comédia e a poesia jâmbica (típica da invectiva). Já a segunda obra, dividida em três livros, ocupa-se fundamentalmente da oratória e seus subgêneros: o judiciário, o deliberativo e o demonstrativo. Em que se pese a distinção entre prosa e poesia, vale dizer que os conceitos tratados na Poética podem ser aplicados à prosa, assim como os tratados na Retórica podem ser observados na produção poética. Dessa forma, há quem julgue que estas duas obras podem, de certa maneira, abarcar a totalidade do conhecimento literário antigo como doutrina, como sistema.
A poética parte, portanto, do pressuposto de que a poesia é imitação. Seja da realidade na qual estamos inseridos, seja da tradição poética a que pertence o poeta e, este axioma decorre do fato de ser inato ao ser humano imitar. A poesia como mimese pode ser observada sob três aspectos distintos: por imitar por meios diferentes, por imitar objetos distintos ou por imitar diferentemente ou de modo diferente. Estas três possibilidades de avaliação delimitam genericamente a composição poética, isto é, ao propor tal taxonomia, Aristóteles acabou por estabelecer as primeiras distinções de gêneros poéticos que, por vezes, algo distam da nossa concepção moderna de gêneros.
A imitação “por meios diferentes” decorre da possibilidade da utilização do ritmo e da harmonia: poesias há em que a música é indissociável – um exemplo seria a poesia lírica dos gregos antigos – já, outras existem em que a música seria utilizada em parte dela como ocorre nas tragédias onde a harmonia é trabalhada pelo coro e não nas partes dialogadas. Porém, também, existem poesias dissociadas da música como é o caso da epopéia. Por sua vez, “o imitar objetos diferentes” significa dizer que a atividade poética pode ser observada de acordo com aquilo que imitamos e ,nesse sentido, encontramos aquelas que se ocupam de ações superiores (a tragédia e a epopéia); aquelas que tratam de ações inferiores como ocorre na sátira e na comédia; ou ainda, aquelas que devem observar as ações de homens como nós, isto é, a lírica em geral. Já o “modo diferente da imitação” pode ser detectado quando verificamos que uma mesma ação pode ser apresentada de forma narrativa ou com a presença de agentes e, daí, derivaria a distinção entre poesia épica e trágica.
Certas categorizações aristotélicas são de suma importância. Um bom exemplo disto é a determinação das partes da tragédia e da epopéia. No processo de elaboração poética, o autor de tragédias não pode descuidar das suas partes constitutivas, a saber: o espetáculo cênico (a ópsis), a música (a melopoía), os personagens (os éthe/caracteres), o enredo (o mythos), a elocução (a léxis) e o pensamento (a diánoia). Mais uma vez, o filósofo propõe uma distinção entre tragédia e épica: a segunda, quanto às suas partes constitutivas está inserida na primeira, excetuando-se, assim, o espetáculo cênico e a música que não aparecem na epopéia.
Ao observar a tragédia mais atentamente, Aristóteles também indica que nela podem-se verificar enredos construídos de forma diferente. Um a que ele dá o nome de “simples”; outro a que ele chama de “complexo”. Seria o último o que não possuísse nem “peripécia”, tampouco “reconhecimento”, mecanismos que interferem na sucessão dos acontecimentos no enredo. A “peripécia” constitui na inversão do encaminhamento dos fatos em seu oposto, ou seja, uma “reviravolta”. Já, o “reconhecimento”, a que os gregos davam o nome de “anagnórisis”, ocorre quando certa personagem toma conhecimento de algo e tal fato muda o sucesso dos acontecimentos. Tais diferenciações quanto ao tipo de enredo (“mythos”), lá apreciados pelo filósofo, podem ocorrer na poesia épica.
Talvez, entre seus comentários acerca da poesia, levados a termo na Arte Poética, aquele que seja mais controverso e polêmico é o que aparece no capítulo IX quando compara poesia e história. Diz Aristóteles: “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.”
Propondo a poesia como “mais filosófica e mais séria que a história”, Aristóteles acabou por, de certa forma, “agredindo” o caráter científico das investigações? Ao que parece, por muito tempo historiadores importantes viram-se vilipendiados por ele, uma vez que o fato de a história ser menos séria ou menos filosófica, pode parecer um menosprezo pela “atividade científica” em nome de uma certa “criatividade poética”. Valeria mais o exercício de uma técne/ars do que a observação e análise dos eventos ocorridos. Tal leitura do texto parece-me equivocada. Aristóteles não menospreza a atividade das “históriai” (investigações em grego), antes a propõe como atividade específica, aquela que trata de questões pontuais e inequívocas.
Já a poesia, para ele, por ser uma atividade imitativa, abre a possibilidade de ser uma fictio/ficção e, assim observada, não trata de um evento específico, mas de um fato generalizante e genérico, no mais das vezes, exemplar que pode atingir por similaridade a todos aqueles que o observam, inserindo-os no eixo ativo da fruição poética. Dessa forma, a poesia trabalha o universal em contrapartida à história que se fixa no particular. Daí o caráter educativo da poesia e da pintura que tão bem é verificado em outra obra do filósofo de Estagira, a Política.
Outro aspecto curioso da obra aristotélica é a sistemática aproximação entre a poesia e a pintura. Essa relação que, dentro da tradição ocidental, muitos atribuem a Horácio (Discutindo Literatura, 12) quando observa o “ut pictura poesis” (“como a pintura é a poesia”) na sua Arte Poética (Epístola aos Pisões), é muito anterior a ele. Na verdade, Simônides, poeta lírico grego arcaico já no século 6 a.C., tinha proposto: “a pintura é a poesia muda e a poesia é a pintura que fala”. Ou mesmo, Platão n’A República no século 5 a.C., quando critica a poesia mimética também se opõe a outras formas de mimese como a pintura. Entretanto, parece ponto recorrente na Arte Poética de Aristóteles esta aproximação. Compara, por exemplo, que pode haver pintura sem e com éthos (caráter), assim como poesia. Diz ainda que quanto ao objeto da imitação há pintores que se ocupam de imitar seres superiores; outros, de seres inferiores. Assim da mesma forma, que há uma poesia de caráter elevado ou baixo, também há pinturas desses matizes.
A Arte Poética, portanto, muito além de nos informar sobre o processo de composição de poesia na Antigüidade Clássica, nos indicando todos os passos que devem ser observados pelos poetas em sua atividade técnica, também registra certos aspectos culturais mormente aqueles que se filiam à educação e à formação do homem ocidental. Registre-se aqui, no entanto, um inconformismo que, talvez, tenha sido o mesmo que levou Umberto Eco a escrever o livro “O nome da rosa”: o desaparecimento do segundo livro da Poética.
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Para ler em português:
Aristóteles - Poética. Tradução: Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda. 1992.