Por Paulo Martins
Encenada pela primeira vez em 431 a.C., Medéia – obra absoluta de Eurípides – talvez seja uma das mais discutidas, relidas e revisitadas da história do teatro ocidental. Com argumento fundado na última parte da lenda de Jasão e Medéia, cujo ciclo inicia com viagem dos Argonautas para conquistar o velocino de ouro e termina justamente com a sina da filha de Eetes, rei da Cólquida, Medéia representa o limite a que pode chegar a alma feminina diante da recusa amorosa. Esse mesmo tema, após sua primeira apresentação, ou melhor, sua reconstituição em forma literária, foi retomado pelo menos três vezes por outros autores: Sêneca, no primeiro século de nossa era; Corneille no século 17; e, mais proximamente, na década de 70, com a montagem da Medéia Brasileira de Paulo Pontes e Chico Buarque, no musical Gota D’água. Em todas versões, a magistralidade do texto intenta função precípua da tragédia: o efeito catártico e, justamente por isso, nos faz refletir acerca da permanência dos mitos.
Fernando Pessoa já disse que “o mito é o nada que é tudo”. Isto é, se, de um lado, não passa de história, de caso, de fábula, de nada; de outro, é tudo, pois nos representa no âmbito do imaginário, a partir de ações que são típicas e, essencialmente, humanas, que se repetem ao infinito, independente das sociedades e épocas. É certo que os gregos antigos foram aqueles que mais adequada e vivamente entenderam o que isso significa, traduzindo e representando ações de homens em enfabulações poéticas, que além de servirem de modelos, chegaram a ser consideradas perniciosas, tamanha força vivaz possuíam - a crítica platônica à poesia comprova isso. Assim, são guias e exemplos típicos de ações sem idade e unívocas.
Não é de outra forma que sistematicamente os mitos são reaproveitados, reutilizados e aplicados às formas mais diversas de expressão que podem ser científicas – Freud e Jung são exemplares - ou literárias e plásticas, e, aqui se avolumam nomes a serem lembrados: Velázquez, com Las Hiandreras, Racine, com Fedra, ou Joyce, com Ulisses. O que se nota, portanto, é a adesão dos mitos à vida. E por isso, Pessoa já advertira que, paradoxalmente, “Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre” Por isso, sempre será inevitável sua releitura e “redicção”. Afinal, eles, os mitos, nos advertem, ameaçam, comovem e convencem que humanos somos e iguais seremos sempre, suscetíveis a inúmeras formas e tipos de ação e reação, impostas pelo inefável e entediante convívio humano e suas conseqüências mais banais, ou mesmo, as mais inusitadas.
Eurípides entre os trágicos, apesar da discordância aristotélica que o desqualifica se comparado a Sófocles, é aquele que aos nossos olhos românticos, modernos, pós-modernos, pós-tudo ou nada mais consegue traduzir a essência humana - se é que ela existe. Afinal, sempre estamos diante surpresas. Ele produz a combinação entre imaginário e real. Faz com que a lenda escorra na realidade e passe a perpetrá-la: tem-se a nítida impressão que seus textos não contam uma lenda, mas algo real que pode se tornar uma lenda. E essa característica de Eurípides é facilmente observável em Medéia.
Construída a partir de caracterização interessante, seu nome é cognato do verbo grego que indica engendrar, calcular, produzir, tramar, maquinar, Medéia nasce na Cólquida, região dos ungüentos, dos tônicos e dos venenos. Sua habilidade “farmacêutica” é notória e dela se utiliza, por vezes, para conduzir suas ações. Por outro lado, suas relações de parentesco não lhe comovem, não se inibe diante da possibilidade de matar um irmão ou trair o pai. Sempre o que lhe move é o imponderável, o inesperado.
Pontilhada de momentos patéticos, a tragédia adquire contornos interessantes uma vez que é desvendado logo de início o fato motivador do enredo (o repúdio de Jasão), porém a ação é conduzida para a catástrofe aos poucos e os acontecimentos soam absolutamente naturais como frutos próprios da necessidade. A protagonista, epicentro do enredo, mescla momentos de fúria –como os gritos e maldições que saem do interior de sua casa ao ser rejeitada (“Ouvi a voz, ouvi os gritos dela,/ da infortunada princesa estrangeira”) – com os de uma absoluta racionalidade – como aquele em que se põe diante do coro a falar sobre a sorte das mulheres em geral e de sua própria (“Das criaturas todas que têm vida e pensam/ somos nós, as mulheres, as mais sofredoras”) .
Essa mescla de horrores e racionalidade é a característica fundamental da personagem. Se, de um lado, se vê fragílima diante do abandono, de outro, é forte o suficiente para engendrar e produzir “remédios” para o seu mal. Se, de uma parte, é capaz de voltar-se contra o pai e o irmão, de outra, é capaz de construir aos poucos “em doses homeopáticas” sua vingança contra Jasão, seu grande amor. Tais contrastes, que despontam das ações, produzem efeito singular na personagem. Mas, o que a audiência deve pensar sobre Medeia, será fruto do ódio ou da compaixão?
O coro, que, como Jean-Pierre Vernant já demonstrou, é um elemento passível de ambigüidades, ocupa a posição da cidade de Corinto. Apesar disso, torna-se seu cúmplice e nós, audiência, passamos a ocupar o seu lugar. Talvez, essa seja a deixa. Se o coro fosse de homens, certamente, se colocariam a favor do rei e sua filha, e não contra. O coro, além de possibilitar o contraste natural das ações, também é, em si, contrastivo. E nós que posição ocupamos diante dela? A resposta é dupla: a favor e contra.
Medéia encontra seu caminho, pois antes não sabia o que iria fazer para se vingar. Mais uma vez opera o confronto de duas possibilidades concretas. Dubiedade e duplicidade, esse é o sentido. Seus dois filhos serão, ao mesmo tempo, vingança e instrumento de vingança. Ao enviar seu presente de escusas a Creúsa e a Creonte, por seu intermédio, utiliza mais uma vez suas habilidades de feiticeira, as mesmas que selam o destino dos próprios filhos, pois ao tomarem contato com o veneno do presente, não poderão mais sobreviver. Simultaneamente, apesar do amargor e tristeza que isto lhe traz, mata-os e finaliza a segunda parte da vingança, na qual os meninos eram a própria vingança contra Jasão.
Movida por um amor desmedido, o mesmo que a colocou contra o próprio sangue duas vezes, Medéia representa e é engendrada pelo binômio amor e ódio, o limiar de dois sentimentos, de duas afecções, que ora são patéticas ora éticas. Além disso, simboliza em essência a capacidade de reação transformadora e de conversão, utilizando-se de sua absoluta racionalidade para dar fim ao seu sofrimento irracional. Na batalha de sua alma, entrechocam-se o desejo de vingança e o amor pelos filhos. Uma de suas últimas falas para Jasão é: “Chamas-me agora, se te der vontade, monstro e leoa. Quis simplesmente devolver teus golpes ao meu coração como podia”.
Assim, seja pela absoluta humanidade, seja pela grandeza de sentimentos que dissemina, Medéia pode ser caracterizada, como quase toda obra de Eurípides, retrato fiel da alma humana, com seus contrastes e devaneios, com sua fúria e seu amor. Logo, pode-se observar nesta tragédia uma mudança de dicção da tragédia grega, pois, se em Ésquilo ou em Sófocles assistimos ao desvelar do mundo absolutamente mítico, no qual os homens cedem lugar aos heróis e deuses que operam ações superiores do ponto de vista de Aristóteles; nela, o que observamos é o espaço do homem como nós, ou melhor, do mito como homens, com limites e profundo realismo de sentimentos.
Las Hilandreras, que superficialmente pode refletir apenas a intencionalidade barroca de figurar uma preocupação manufatureira e massiva da cultura como bem explicitou Maravall (A cultura do barroco, p. 162) no rastro de Max Weber, indubitavelmente produz uma série de indagações pertinentes que determinam uma segunda visada não tão superficial e mais aguda. Isto sem falar, é claro, da observação formal e técnica das habilidades do pintor no que diz respeito ao movimento, à luz, ao claro-escuro, à profundidade e à sombra.
Contudo, parece pouco provável que apenas esta tenha sido a real intenção do poeta-pintor em questão, pois que são evidentes outros elementos figurados no quadro, a começar por seu nome efetivo A lenda de Aracne. O nome remete ao mito greco-latino que nos indica a história de Aracne, excelente tecelã lídia que aprendera com Palas Atena sua arte e que, por conta de sua soberba em querer rivalizar com a deusa, foi punida sendo transformada em aranha (cf. Ovídio, Metamorfoses, vv. VI, 1-145). Pois bem, a tela indica três planos distintos que interagem. Um primeiro no qual está figurada uma oficina de fiação onde cinco mulheres empenham-se em seu trabalho. Duas delas, metáforas do mito: na roca, Palas Atena; a trabalhar com os fios, Aracne. Velázquez adapta o mito à realidade do século 17 (como nas telas Menipo, 1639-40 e Esopo, 1639-41). Num segundo plano, observa-se um vestíbulo, ao fundo da tela, ricamente iluminado, no qual são apresentadas mais três mulheres, duas das quais observando o terceiro plano e uma o primeiro e, consequentemente, a nós, espectadores. Estas mulheres como que estabelecem liame entre nós e o terceiro plano, entre realidade figurada metaforicamente, o mito em si e nós, pois que vale dizer que no terceiro e último plano, encontra-se uma tapeçaria – O rapto de Europa – que oferece contribuição no âmbito do mito, relaciona-se com Aracne – é uma de suas tapeçarias – ; de outro lado, composicionalmente, é alusão, é intertexto, é emulação, afinal, seu autor é Ticiano (considerado por Velázquez um dos maiores pintores).
De chofre, Las Meninas não parece ser algo excepcional. Uma figuração da vida cortesã, da família real, cuja centralidade está na infanta Margarida e suas aias. No entanto, observa-se, também, a representação do avesso de um quadro e seu pintor – um auto retrato de Velázquez – a observar, quem sabe, aquele que está sendo pintado. Certamente, este não é a infanta, pois ela já está representada em Las Meninas, no nível primeiro de observação, este é o seu quadro. Quem seria então? Nós a vê-lo? Talvez. Ou simplesmente, aquele que no ato da representação observa, como nós, a cena. Se assim é, este quadro é singular, pois representa a todos indistintamente , bastando para tal, estar-se a frente dele. Isto é, Las meninas é o quadro de quem não está no quadro, pelo menos, a princípio.


Estas antíteses também podem ser provocadas pela presença do idealizado e do vulgar simultaneamente. E ambas são surpreendentes. Nesse sentido, as célebres telas: Baco entre 1628 e 1629 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1170) e A forja de Vulcano em 1630 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1171); sem falarmos, naturalmente, na presença da figura megalocéfala figurada em Las meninas.