sexta-feira, 8 de junho de 2007

30 anos com e sem Bandeira

Paulo Martins

(Texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 17/10/98)

Certos poetas não deveriam ser lembrados no dia de aniversário de sua morte, mas ser festejados a cada ano na data de seu nascimento, porque, simplesmente, são imortais e, dessa forma, seria um desrespeito comemorarmos a ausência de alguém permanentemente presente. Este é o caso de Manuel Bandeira.
Porém, nossa cultura crê nos vivos. Deixa ao relento mortos e os perpetua como se sua obra tivesse chegado ao fim com o dia de sua morte. Sério equívoco. Seguramente, a crítica de poesia não comentou sequer um milésimo da obra de Bandeira, logo, mesmo após 30 anos de sua morte no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, continua vivo, eterno e infinito.
Talvez só os poetas compreendam a imortalidade e saibam, pois, nos traduzir que sempre há vida após a morte de um grande poeta. As palavras escritas permanecem, as faladas voam (uerba uolant, scripta manent). Se forem dignas de atenção – o autor medieval deveria ter completado a máxima.
Mas, por que é dado aos poetas este privilégio? Seriamos nós, simples mortais, incapazes de entender que boa poesia não morre jamais? A resposta certamente é não. Contudo, os poetas desde sempre compreenderam isto. Sabem que seu ofício, sua arte, encontrará acolhida na alma, sob os olhos atentos de bons leitores, independentemente de época. Não é de outra forma que ainda hoje lemos Homero. Porém, poucos sabem ler poesia. Assim, poucos além dos poetas entendem que não há relação direta entre a morte do poeta e o fim de sua poesia.
Se tal premissa é verdadeira, continuaremos a escrever homenagens aos mortos-vivos até o fim dos tempos, tentando alertar o maior número de pessoas de que há vida após a morte de um grande poeta.
Em 1977, mais precisamente no dia 17 de abril (Jornal do Brasil), o magistral Carlos Drummond de Andrade – outro imortal – conseguira sintetizar a obra de Manuel Bandeira, não escrevendo um texto de crítica literária, mortal e limitado (se comparado à arte de escrever poesia), mas elaborando a respeito do amigo Manuel e de sua poesia um belo poema (“Manuel faz novent’anos”) aos moldes daquele a quem se referia, afinal Bandeira foi assíduo nas homenagens poéticas.
Pois bem, é justamente falando acerca da imortalidade que Drummond, bem à maneira de Bandeira, começa seu poema:
“Oi, poeta!
Do lado de lá, na moita, hem? Fazendo seus novent’anos...
E se rindo, eu aposto, dessa bobagem de contar tempo,
De colar números na veste inconsútil do tempo, o inumerável,
O vazio-repleto, o infinito onde seres e coisas
Nascem, renascem, embaralham-se, trocam-se,
Com intervalos de sono maior, a que, sem precisão científica,chamamos
[de morte.(...)”
Assim, a carência de precisão científica da morte é sua completa inexistência para Drummond. Bandeira está apenas do outro lado de uma moita, se rindo de nós. O tempo para ele é uma dessas bobagens ao qual se colam números a seus trajes não costurados. Para Drummond, pois, Bandeira apenas dorme “profundamente”.
Esta idéia desde sempre perseguiu o poeta do Recife. O poema “Profundamente” do livro Libertinagem, por exemplo, alia o referido tema à memória distante do Recife e à memória mais próxima do Rio, transfigurando o tempo em algo inerte e sem valor. “Onde estão todos eles? // – Estão todos dormindo // Estão todos deitados // Dormindo // Profundamente”.
O local do sono eterno, ou, simplesmente, do sono maior, a que se refere Drummond, por sua vez, possui características ideais. Talvez, portanto, para os poetas este espaço, a que nós mortais denominamos morte, seja o local ideal da poesia. Lá, possivelmente, todas as coisas sejam em si verdadeiras, platonicamente tomadas. Ilatentes. Não é de outra forma, pois, que no Érebo (“Pasárgada”), um tuberculoso pratique ginástica, ande de bicicleta, suba em pau-de-sebo, monte em burro brabo, etc. O irrealizável tem espaço no universo da eternidade. Tudo é possível.
Porém, se a poesia refere-se ao eterno com letras e vozes do hic et nunc (aqui e agora), qual será a consistência da prática poética no mundo do sono eterno? Drummond questiona:
“(...) Hoje me sobe o desejo
de saber o que fazes, como,
onde:
em que verbo te exprimes, se há verbo?
em que forma de poesia, se há poesia,
versejas?
em que amor te agasalhas, se há amor?
Em que deus te instalas, se há deus?

Que lado, poeta, é o lado de lá,
Não me dirás, em confiança?(...)”
Drummond quer nos enganar, ao questionar sobre o outro lado da vida, a morte, sobre como os mortos se comunicam, como escrevem poesia e como se amam. Ele sabe que a voz do amigo lá não é diferente de sua voz cá na terra. Bandeira já prenunciara ao propor em “O último poema” que:
“Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como o soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”
A forma ideal de poesia é um universal que serve a qualquer mundo, ao dos vivos e dos mortos. A forma ideal é simples, é ardente, é bela, é chama, é paixão. E, nesse sentido, ecoa em seu versos modernos um platonismo camoniano, plasmado em seus versos livres.
Mais do que isso, Bandeira é capaz de atingir a perfeição da poesia, operando materiais diversos que percorrem o absolutamente mundano, cotidiano e vulgar até o inacessível sublime. Desde a simplicidade de um “Café com pão // Café com pão // Café com pão // Virge Maria que foi isso maquinista?(...)” até a sublime delicadeza complexa de um “Quando a morte cerrar meus olhos duros //- Duros de tantos vãos padecimentos, // Que pensarão teus peitos imaturos // Da minha dor de todos os momentos?(...)”.
Acerca deste ideal que permeia a obra de Bandeira, Gilda e Antônio Cândido de Mello e Souza já haviam pensado na introdução ao volume Estrela da Vida Inteira de 1966: “A mão que traça o caminho dos pequenos carvoeiros na poeira da tarde, ou registra as mudanças do pobre Misael pelos bairros do Rio, é a mesma que descreve as piruetas do cavalo branco de Mozart entrando no céu, ou evapora a carne das mulheres em flores e estrelas de um ambiente mágico, embora saturado das paixões da terra. É entre estes dois modos poéticos, ou dois pólos da criação , corre como unificador um Eu que se revela incessantemente quando mostra vida e o mundo, fundindo os opostos como manifestações da sua integridade fundamental.”
Por outro lado, é certo que o modernista Bandeira prima pela capacidade de se expressar sob a égide de qualquer matiz estético, dessa forma o ideal corporifica-se em qualquer meio de expressão. Vale dizer, contudo, que não foi Bandeira que encontrou o modernismo, mas, ao contrário, foram os modernistas (e Mário tem responsabilidade nisto) que , o encontraram. Seu ecletismo formal e temático os tocou. Aqueles que buscavam ruptura, encontraram nele a síntese renovadora e avassaladora necessária à fratura estética.
Assim, ao observamo-lo filiado a certo simbolismo, cuja musicalidade exacerbada salta aos olhos de leitores mais atentos; a um romantismo, que tão bem soube comentar e traduzir; a um radicalismo poético na conformidade de certo modernismo mais visceral; aos experimentos formais característicos da poesia concreta, tão distante de sua formação poética e a uma sexualidade psicanalítica, que o remete a uma impossibilidade da vida real e sensível, podemos dizer que o mundo ideal preconizado concretizara-se em forma e conteúdo.
A esta diversidade de Bandeira, que certamente induz à universalidade ideal, Drummond, belamente, sintetiza:
“(...)Manuel canção de câmara, Manuel
canção de quarto e beco,
ritmo de cama e boca
de homem e mulher colados no arrepio
do eterno transitório: traduziste
para nós a tristeza de possuir e de lembrar,
a de não possuir e de lembrar,
a de passar,
mescla do que foi, do que seria,
simultaneamente projetados
na mesma tela branca de episódios
- em nós, vaga, soprada a cinza,
em ti, o sopro intenso de poesia.(...)”
A “mescla do que foi, do que seria , // simultaneamente projetados// na mesma tela branca de episódios” que Drummond fala é justamente a fusão dos dois pólos da criação de Candido e aquilo a que nos referimos acerca do ideal universal para o qual convergem concepções estéticas diversas e para o qual a diversidade mundana e supra real, consiliadas, reagem sob forma de poesia, que intensamente lírica, atinge a todos, ora pela simplicidade humilde do discurso (a que propala David Arrigucci Jr.) ora pela complexidade ontológica.
Destarte, o simbolismo de Bandeira, facilmente observável em Cinza das Horas (seu livro inaugural - 1917), nasce de uma poesia sujeita a uma técnica extremamente acurada que não visa ao efeito exterior, não se dirige tanto ao sentimento, ao coração, como a regiões menos exploradas da alma, como já alertara Sérgio Buarque. É assim que afirma em “Versos escritos nágua”:
“Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.”
Indelevelmente ligado a esta tradição, Bandeira afirma em Itinerário de Pasárgada: “compreendi, ainda antes de conhecer Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com idéias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia.”
Da mesma forma, a poesia romântica alemã é tópica em sua poesia. Sua estadia na Europa antes da Primeira Grande Guerra possibilita contato mais direto com o alemão, e assim, pôde conhecer toda a força de Göethe, Hoelderlin, Schiller e tantos outros.
Contudo, a sua afinidade com a poesia moderna, realmente, é seu ponto mais alto. Constrói para si uma poética que deglute, absorve, alimenta-se da tradição e do cânone, conhecidos e trabalhados, para produzir um efeito reorganizador de sua poesia e conseqüentemente de outros que virão, ou melhor da poética moderna. Seu contato prévio com formas alheias de expressão poética lhe possibilitam uma crítica severa às mesmas. Mário de Andrade assim fala de Libertinagem, no qual sua maturidade moderna nos atinge avassaladoramente: “Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia de Manuel Bandeira, pois que este livro confirma a grandeza dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já publicou. Aliás também nunca ele atingiu com tanta nitidez os seus ideais estáticos, como na confissão de agora”.
Mário refer-se-ia ao poema. “Poética”, talvez um dos maiores instrumentos estéticos compostos pelo modernismo brasileiro, antológico em cada um de seus versos. Este poema reflete os ideais de toda uma geração de poetas. Seu último verso é uma bela hipérbole que restringe e, ao mesmo tempo, universaliza a produção poética moderna: “- Não quero mais saber do lirismo que não seja libertação.” Ao mesmo tempo que determina uma redução, ao negar o lirismo, propõe uma sua universalização ideal que é a libertação.
Tal movimento dialético proposto pode ser observado, por exemplo, no dístico “Poema do Beco” de 1933:
“Que importa a paisagem, a glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.”
Ou em “Última Canção do Beco”:
“Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades(...)
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais, (...)
Adeus para nunca mais!”
O beco tão presente em sua obra corresponde a um universo limitado físico que se contrapõe a universalidade do mundo. Entretanto, esta limitação física é trabalhada de forma a ser transposta e reavaliada universalmente dentro do mundo lírico, eclodindo em libertação. Assim temos que o universo ideal em Bandeira que parece estar restrito por uma simplicidade aparente, por uma pequenez do mundo cogitado, transforma-se no mote aglutinador das expectativas universais.São justamente estas expectativas universais, aparentemente simples de seus poemas que convertem-no, Bandeira, em um poeta da imortalidade e imortal.

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