Texto publicado na Revista Bravo!, 41. 01 de Fevereiro de 2001. pp.114-17. Por ocasião do lançamento do primeiro volume de obras escolhidas de Pe. Antonio Vieira, organizado por Alcir Pécora (UNICAMP)
A mão portuguesa de Deus
Por Paulo Martins
Padre Antonio Vieira (1608-1697) é certamente um dos maiores escritores da língua portuguesa. Não é por acaso que, academicamente, seja pleiteado ora pela Literatura Portuguesa, ora pela Brasileira - e que possa ser considerado o primeiro caso de transnacionalidade nas literaturas dessa língua. Veio para o Brasil aos 7 anos e, como jesuíta, dedicou parte de sua vida à colônia (Bahia, Olinda e São Luís), algo comum em pregadores do século 17 que tinham como missão a catequização dos povos. Também chegou a importantes investiduras na corte e no mundo, em diferentes períodos em que esteve fora do país: ocupou missões diplomáticas em Paris, Haia e Roma. Convicto de certas posições, em 1665/67 foi processado pela Inquisição por defender os cristãos-novos, condenado por "opiniões heréticas" e logo depois anistiado.
Longe das estantes das bibliotecas, estava muito difícil ter acesso a ele. Apenas excertos didáticos eram encontráveis. Ou ainda, espalhados pelos sebos e alfarrábios das grandes cidades, edições da década de 50 em quinze volumes, cujo preço está bem longe do razoável. Agora, acaba de chegar às livrarias o primeiro volume de uma coletânea em quatro, a ser lançada até o fim do ano pela editora Hedra e organizada por Alcir Pécora. A coleção é composta de dois volumes dedicados aos Sermões, um às obras proféticas (História do futuro e Defesa perante o Santo Ofício) e o último às Cartas.
Grande parte da crítica descontextualiza Vieira, atribuindo-lhe perfis inverossímeis, costurando-lhe máscaras imprecisas e pregando-lhe etiquetas incompatíveis. Se é certo que não devemos nos esquecer da afirmação de Italo Calvino - de que "os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa" -, é certo, também, que o próprio Calvino diz que "um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe". Assim, a despeito de todo e qualquer juízo crítico ou de valor que se faça acerca da obra de Vieira, é mais conveniente refletir sobre a pertinência de sua leitura hoje.
Pode-se afirmar que há pelo menos três razões que o tornam indispensável. A primeira diz respeito ao retrato da correlação de forças observadas à época de seus textos. Outra parte da delimitação de preceitos técnicos na elaboração de textos no século 17. A última é a aferição de um estilo preciso e difícil que deleita, ensina, convence, intriga e faz pensar sobre sua recepção.
A obra de Vieira é pragmática, longe de qualquer fruição romântica; é determinada pelo binômio poder eclesiástico e poder político. Suas letras são mundanas, práticas, efetivas e encerram a ação da Companhia de Jesus naquilo que lhe é mais característico: a expansão da fé como simulacro do poder político. O papel da Igreja, regulado pelo padroado real, que determinava a subserviência de Roma em relação a Lisboa, consistia na manutenção dos interesses econômicos e políticos da Coroa. A Igreja mantinha o monopólio da fé nas terras "descobertas" enquanto o Estado detinha o direito de recolher o tributo devido pelos fiéis, criar dioceses e nomear bispos.
Vieira devia zelar pelo Estado Colonial Português. Para tanto, construiu e proferiu diversos Sermões, entre os quais se destaca o famoso Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640). Sua intenção era dupla: barrar o avanço dos hereges reformistas holandeses e garantir a viabilidade da máquina mercantil portuguesa, usando uma argumentação de fundo teológico. Ele dizia que Deus não pode serconivente com as mazelas heréticas e deve se posicionar de forma que a justiça divina abençoe os portugueses: "(...)Vossa mão [Senhor] foi que venceu, e sujeitou tantas nações bárbaras, belicosas e indômitas, e as despojou do domínio de suas próprias terras, para nelas os plantar, como plantou com tão bem fundadas raízes; e para nelas os dilatar, como dilatou, e estendeu em todas as partes do mundo, na África, na Ásia, na América.(...)". A mão de Deus, portanto, só poderia ser portuguesa. Não parece que em qualquer momento histórico algum texto tenha tido poder suficientemente abrangente para conseguir atingir objetivo semelhante.
Mas o monopólio jesuíta da fé não era hegemônico; outra ordem, a dos dominicanos, emulava com a primeira. Não só pela possibilidade expansionista, mas também pela capacidade de ser o instrumento verbal de Deus. Enquanto os primeiros diziam-se donos do estilo preciso, direto e eficiente para conservação e conquista de novos fiéis, os segundos praticavam o verbum, aproximando-se de uma organização discursiva sublime e engenhosa cuja complexidade, senão semelhante, estava para eles muito próxima da complexidade divina - uma engenhosidade celeste enigmática e culta. A querela estilística, que extemporaneamente foi proposta como dicotomia cultismo versus conceptismo (forma versus conteúdo), trazia à tona a luta de dois modelos eclesiásticos, o primeiro dado às cameratas da corte e o segundo interessado na conversão dos gentios.
Como adversário contumaz da elocução e da "ideologia" dominicana, Vieira constrói o Sermão da Sexagésima, que nada mais é do que a chave "metalingüística" de seus Sermões, aguda e prudentemente construída com vistas à posição hegemônica dos jesuítas diante da catequese. Ou melhor, diante daquele poder político associado a questões econômicas e eclesiásticas obviamente defendidas pelos "filhos" de Santo Inácio de Loyola ("E esta maravilha fez Deus em Santo Inácio. O livro foi a flor, ele o fruto; um fruto que contém em si todos os sabores; um Santo que sabe a tudo o que cada um deseja e há mister" - Sermão da terceira dominga da quaresma - 1655).
Assim, existe uma função intrínseca para os sermões. Eles não podem se efetivar apartados do reconhecimento de suas máximas, de seus preceitos; devem efetivamente significar, isto é, devem ser concebidos de acordo com a adequação entre linguagem e público. Fato que, do ponto de vista de Vieira, não era observado pelos dominicanos: "Sim, Padre; porém esse estilo de pregar, não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português, e não havemos de entender o que diz?" (Sermão da Sexagésima - 1655).
Ao lermos Vieira hoje, outro aspecto é intrigante. Será que oralmente seus textos eram entendidos? Uma coisa é lê-lo, podendo-se fazer o percurso das linhas com olhos num vai-e-vem constante, para daí termos certeza de sua mensagem; outra é ouvirmos sem a possibilidade de retornar, de rever a trajetória da argumentação, que tanto nos apraz.
Facilmente se chega à conclusão que seria quase impossível a compreensão completa da mensagem dos Sermões, quando ouvidos, dada sua construção complexa e imbricada. Logo, tanto jesuítas como dominicanos estariam longe da missão primeira que, segundo o próprio Vieira, seria a disseminação da palavra de Deus (uerbum semen Dei - a palavra de Deus é a semente). Dentro dessa mesma perspectiva, em 1657 ele elabora o Sermão do Espírito Santo, cujo argumento principal é a importância do aprendizado da língua portuguesa pelos gentios. Esse aprendizado, segura e intencionalmente, deveria ir além do ABC; caso contrário, o efeito dos seus sermões seria o mesmo que o dos dominicanos: nenhum. Ou seja, absortos ou não na palavra de Vieira, ou melhor, na de Deus, nobres ou índios podiam ou não entender os Sermões (não saberemos jamais). Independentemente disso, estes se constituem como registros significativos da história e das letras do século 17.
É freqüente a recuperação de sua elocução. Os jornais, as revistas e até mesmo as universidades são devedores de suas construções, de suas imagens, de suas metáforas agudas e prudentes e, mais, de sua excelência. Apesar de sua ínfima circulação, Vieira ainda encontra epígonos, que por si não valem muito mas, por conta de sua filiação estilística e técnica, devem ser observados com cautela e atenção.Por isso é obrigatório se ler Vieira - o Vieira absolutamente distante da crítica que lhe medeia. Aquele que, por si, é representante do que há de melhor em língua portuguesa. Resta esperar por um maior empenho editorial para termos a totalidade de sua obra: a publicação da famigerada Clavis Prophetarum (A Chave dos Profetas), ainda inédita em português - foi escrita em latim. Mesmo assim já podemos comemorar: temos de novo algum Vieira!
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