Paulo Martins
“Demos sem dúvida grande demonstração de paciência; e se os tempos antigos viram o que havia de extremo em liberdade, nós o tivemos quanto à servidão, porque até o uso do falar e do ouvir, por espionarem, nos tiraram. A própria memória teríamos perdido com a palavra, se estivesse tão em nosso poder esquecer quanto calar.”
Tácito – A vida de Agrícola, 2.
A Literatura e a História são disciplinas muito próximas se observarmos as práticas letradas do mundo greco-romano. Aristotelicamente, apenas se distanciariam pelo fato de a primeira tratar do que poderia ser e a segunda do que teria sido. Esta, assim, se ocuparia do particular, aquela, do universal. Entre as diversas possibilidades de subgêneros historiográficos antigos (comentários, histórias pragmáticas, histórias universais, monografias, breviários, anais etc.), temos um que, modernamente, encontra-se mais no limite das duas artes (História e Literatura): a biografia, a que os romanos chamavam uitae (vidas), e os gregos, bíoi (igualmente, vidas). Afinal quem não afirmaria esse limite ao ler os livros de Ruy Castro (O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha, Carmen: Uma biografia), de Fernando Morais (Chatô, O Rei do Brasil ou Olga), ou de Nelson Motta mais recentemente (Vale Tudo: Tim Maia).
Alguém, entretanto, poderia dizer que esses textos, antes de ser literatura, seriam, sim, jornalismo, ou pelo menos aquilo a que se dá o nome de grande reportagem, portanto apegando-se ao que foi – logo, à História. Em parte tal afirmativa é correta, porém, inegável também é que nesses livros, antes de qualquer intenção dos autores em produzir um retrato ou relato objetivo do biografado, preocupam-se com a construção de retratos subjetivos, eivados, contaminados, assim, de focos específicos, de argumentos pessoais, de parcialidades claras e afetivas e, nesse sentido, mais do que retratarem ou relatarem o que foi, efetivam o que poderia ser e, logo, seriam uma ficção.
Pois bem, essa mesma questão se coloca na literatura greco-romana. Penso aqui em duas obras e dois autores, um grego e um romano: Plutarco (45-120 d.C.) e Suetônio (69-141 d.C.). O primeiro, escritor grego, formou-se na Academia de Atenas e foi autor de mais de 200 obras entre as quais está Vidas Paralelas. O segundo entrou para o serviço imperial como encarregado de bibliotecas e arquivos, conselheiro cultural, foi secretário da correspondência do imperador Adriano (não o da Internzionale de Milão), tendo escrito muitas obras entre as quais A Vida dos Doze Césares, talvez seja a mais famosa.
Apesar de Plutarco ser grego, pode-se afirmar que esse subgênero historiográfico é romano, pois que apenas temos registros isolados de sua existência entre os peripatéticos, sem que as obras propriamente ditas tenham nos chegado, o que em certa medida é um índice de sua apequenada importância entre os helênicos de maneira geral. Assim, seu desenvolvimento e circulação são pródigos entre os romanos desde o final da República no final do século 1 a.C. – Cornélio Nepos (De illustribus uiris – Acerca dos Homens Ilustres) é uma referência – até os estertores do Império com Aurélio Victor (Liber De Caesaribus – Livro sobre os Césares) no século 4 d.C..
Vitae illustrium virorum. Rome, printed by Ulrich Han (Udalricus Gallus), 1470 - Collection: University of Leeds Library
Sob o ponto de vista de sua constituição, é possível dizer que as biografias, ao contrário da analística (outro subgênero historiográfico) que se ocupa da narração dos fatos tendo em vista o encadeamento cronológico ou causal dos episódios, elas se detêm na efetivação de um retrato verbal, isto é, na construção de uma imagem que passa por categorias aristotélicas do discurso demonstrativo que prevê o louvor ou o vitupério das coisas da alma, das coisas do corpo e das coisas externas. Assim são figuradas nas biografias tais categorias assim dispostas pelo primeiro tratado de retórica romana de que se tem notícia, a Retórica a Herênio, livro III, 6, 10:
“Agora passemos para o gênero demonstrativo da causa. Como esta causa divide-se em louvor e vitupério, consideraremos o louvor a partir de certos pensamentos e o vitupério será cotejado a partir dos contrários. O louvor pode, pois, ser das condições externas, do corpo e da alma. As condições externas são as que, por acaso ou fortuitamente, podem ocorrer favoráveis ou adversas: estirpe, educação, riqueza, poder, glórias, civilidade, amizades e as que são semelhantes ou as que são contrárias. As condições do corpo são as que a natureza atribuiu ao corpo vantajosa ou desvantajosamente: velocidade, força, elegância e vigor. As condições da alma são aquelas que consistem de nossa ponderação e reflexão: prudência, justiça, coragem, modéstia e as contrárias.” (Tradução Paulo Martins)
Os biografados, portanto, são revistos e revisitados a partir de sua origem, de sua educação e riqueza, de seu poder e glória, de sua civilidade e amizades, de sua velocidade e força, de sua elegância e vigor, de sua prudência e justiça, de sua coragem e modéstia. Entretanto, tais categorias poderiam ser observadas para o bem ou para o mal, de acordo com o foco do historiador (biógrafo) e, isso, talvez imprimisse ao texto final certo caráter subjetivo e, portanto, carente da objetividade científica desejável pela História e indiferente à Literatura. Plutarco em suas Vidas Paralelas assim escreve:
“Escrevendo neste livro a vida do rei Alexandre e a de César, por quem Pompeu foi derrotado, em vista da abundância das ações implicadas, não diremos nada como preâmbulo, apenas suplicando ao leitor que não nos denigra por não relatarmos tudo que foi celebrado, nem abordarmos cada coisa a fundo, abreviando a maioria dos fatos. É que não escrevemos histórias, mas vidas – e não é nas ações mais célebres, em absoluto, que está a demonstração de virtude ou do vício, mas, muitas vezes, um breve feito, uma palavra, uma brincadeira dão ênfase ao caráter mais que os combates mortais, as maiores batalhas e os assédios de cidades. 3. Portanto, como os pintores salientam as semelhanças a partir do rosto e das formas visíveis em que se manifesta o caráter, preocupando-se menos com as outras partes, assim também deve-se permitir-nos penetrar antes nos sinais da alma e, através disso, desenhar a vida de cada um, deixando as grandezas e os combates." (Tradução Jacyntho Lins Brandão)
Essa intencionalidade de Plutarco permeia toda sua obra biográfica que curiosamente é divida aos pares, produzindo ao final de cada dupla o que a tradição chamou de síncrise, isto é, o contraste, o confronto entre os biografados de forma a produzir uma comparação ética entre os ilustres. Assim em Vidas Paralelas estão biografados: 1) Teseu e Rômulo; 2) Licurgo e Numa; 3) Sólon e Publícola; 4) Temístocles e Camilo; 5) Péricles e Fabio Máximo; 6) Alcibíades e Coriolano; 7)Timoleonte e Emilio Paulo; 8) Pelópidas e Marcelo; 9) Aristides e Catão o velho; 10) Filópedes e Flamínio; 11) Pirro e Mário; 12) Lisandro e Sila; 13) Cimón e Lúculo; 14) Nícias e Crasso; 15)Eumenes e Sertório; 16) Agesilau e Pompeu; 17) Alexandre e César; 18) Fócio e Catão o jovem; 19 e 20) Ágis e Cleômines/Tibério e Caio Gracco; 21) Demóstenes e Cícero; 22) Demétrio e Antônio; 23) Dion e Bruto.
A estrutura do conteúdo (res) da obra se Suetônio é a mesma, ou seja, fundada nas categorias que devem ser louvadas e/ou vituperadas. Entretanto, os objetos de imitação do historiador romano são mais “perigosos”, afinal ele trata dos 11 primeiros imperadores romanos, antecedidos por Júlio César que não fora um deles, mas sim precursor e pavimentador de um novo sistema que a partir de Otávio Augusto ganha a posteridade até o fim do chamado Império Romano. O suposto “perigo” na figuração dos imperadores reside no “como”, muita vez, Suetônio os registra, inserindo anedotas, os ridiculariza, produz avaliações apimentadas e picantes, contudo sem abrir mão de uma ponderação científica. Vale salientar, contudo, que muita fonte historiográfica do autor não passa de boataria o que equivaleria a uma possível “ficção” histórica. Desfilam pelas linhas do livro assim Júlio César, Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero, Galba, Otão, Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano. Sobre Augusto, Suetônio diz:
“Nem os amigos negam que tivesse cometido adultérios, mas o desculpam: não o teria feito por luxúria, mas por inteligência, para que mais facilmente pudesse, pelas mulheres, descobrir os desígnios dos adversários. Acusou-o Marco Antônio de ter precipitado o casamento com Lívia e de ter, à vista do marido, tirado do triclínio a esposa de um consular, levando-a para o quarto e trazendo-a depois com as orelhas rubras e o cabelo em desordem (...)” (Tradução Agostinho da Silva)
Suetônio
Sejam esses registros história ou ficção, certo é que antes de tudo registram a maneira de ser dos homens ilustres da Antigüidade Clássica. E se essa foi modelo de algo no mundo ocidental, isso não independe dos agentes, dos construtores dessa cultura. Portanto, fato ou ficção, isso pouco importa.
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