Folha de São Paulo São Paulo, sábado, 28 de março de 2009
RODAPÉ LITERÁRIO
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE*
COLUNISTA DA FOLHA
QUANDO SE fala em traduções, o leitor brasileiro tem cada vez menos do que se queixar.
O mercado do livro ainda comporta preguiça ou vigarice ocasional, como no caso recente da Nova Cultural, editora que alimentou a plágio descarado toda uma coleção, mas nada disso passa mais batido. Se não chegamos a rivalizar com tradutores onívoros, como os franceses ou os americanos, aos poucos deixamos de fazer feio, e os sinais de vitalidade na extensão e na qualidade do que se traduz vêm superando os vexaminosos.
Recém-publicadas, três versões diretas das tragédias que abriram ("Aias") e encerraram ("Filoctetes", duas vezes) a produção em vida de Sófocles (496-406 a.C.), mais prolífico dos dramaturgos gregos, provam a tese. Apesar de propósitos e poéticas próprias, têm em comum o apuro editorial (textos bilíngues, apresentação e notas pertinentes, bibliografia), o cuidado filológico nas traduções e a aposta no não óbvio. Preenchem lacunas (não se trata de mais um Édipo Rei em português) e colhem frutos, todas, de uma decisão acadêmica acertada dos classicistas brasileiros: a de investir na oferta de textos criteriosos dos clássicos em vernáculo.
Heróis sofocleanos típicos, indivíduos do excesso (da excelência, no combate, da inflexibilidade, no caráter), confrontados com as razões da coletividade, Filoctetes e Ajáx sofrem ambos os reveses da sorte, privados da fama que, entre os gregos, coroa a existência dos mortais e premia a vida justa e bela. Herdeiro do arco divino de Héracles, Filoctetes é traído pelos comandantes na campanha contra Tróia, Menelau e Agamemnon e o astucioso Odisseu à frente. Sofrendo de ferida incurável no pé, vê-se abandonado numa ilha deserta, privado do convívio civilizado. Quando um oráculo mostra que sua presença é indispensável para que caia o inimigo, é hora de ajustar contas com sua honra ofendida.
Aias, ou Ájax, por sua vez, o segundo em força entre os gregos, sente-se ultrajado por não ter seu valor reconhecido e não receber as armas de Aquiles, morto em combate. Desprezando ajuda divina, arquiteta um plano de reparação do agravo imaginário, mas recebe de Atena, por punição, a loucura. Cego de fúria, avança cruento sobre ovelhas indefesas, seguro de estar matando a traição os inimigos. Quando recobra a lucidez, enfrenta o desafio de buscar uma saída digna para a vergonha pública que mancha seu nome. Conflitos entre pragmatismo político, reverência religiosa, altivez autossuficiente e compaixão humana fazem o interesse dessas peças sempre atual. Ter a chance de redescobri-las por meio de textos cuidados, essa é a boa novidade.
*Professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da FFLCH da USP.
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O mercado do livro ainda comporta preguiça ou vigarice ocasional, como no caso recente da Nova Cultural, editora que alimentou a plágio descarado toda uma coleção, mas nada disso passa mais batido. Se não chegamos a rivalizar com tradutores onívoros, como os franceses ou os americanos, aos poucos deixamos de fazer feio, e os sinais de vitalidade na extensão e na qualidade do que se traduz vêm superando os vexaminosos.
Recém-publicadas, três versões diretas das tragédias que abriram ("Aias") e encerraram ("Filoctetes", duas vezes) a produção em vida de Sófocles (496-406 a.C.), mais prolífico dos dramaturgos gregos, provam a tese. Apesar de propósitos e poéticas próprias, têm em comum o apuro editorial (textos bilíngues, apresentação e notas pertinentes, bibliografia), o cuidado filológico nas traduções e a aposta no não óbvio. Preenchem lacunas (não se trata de mais um Édipo Rei em português) e colhem frutos, todas, de uma decisão acadêmica acertada dos classicistas brasileiros: a de investir na oferta de textos criteriosos dos clássicos em vernáculo.
Heróis sofocleanos típicos, indivíduos do excesso (da excelência, no combate, da inflexibilidade, no caráter), confrontados com as razões da coletividade, Filoctetes e Ajáx sofrem ambos os reveses da sorte, privados da fama que, entre os gregos, coroa a existência dos mortais e premia a vida justa e bela. Herdeiro do arco divino de Héracles, Filoctetes é traído pelos comandantes na campanha contra Tróia, Menelau e Agamemnon e o astucioso Odisseu à frente. Sofrendo de ferida incurável no pé, vê-se abandonado numa ilha deserta, privado do convívio civilizado. Quando um oráculo mostra que sua presença é indispensável para que caia o inimigo, é hora de ajustar contas com sua honra ofendida.
Aias, ou Ájax, por sua vez, o segundo em força entre os gregos, sente-se ultrajado por não ter seu valor reconhecido e não receber as armas de Aquiles, morto em combate. Desprezando ajuda divina, arquiteta um plano de reparação do agravo imaginário, mas recebe de Atena, por punição, a loucura. Cego de fúria, avança cruento sobre ovelhas indefesas, seguro de estar matando a traição os inimigos. Quando recobra a lucidez, enfrenta o desafio de buscar uma saída digna para a vergonha pública que mancha seu nome. Conflitos entre pragmatismo político, reverência religiosa, altivez autossuficiente e compaixão humana fazem o interesse dessas peças sempre atual. Ter a chance de redescobri-las por meio de textos cuidados, essa é a boa novidade.
*Professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da FFLCH da USP.
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Título: Filoctetes
Autor: Sófocles
Editora: 34
Tradutor: Trajano Vieira
Título: Filoctetes
Autor Sófocles
Editora Odysseus
Tradutor: Fernando Brandão dos Santos
Título: Aias (Ájax)
Autor: Sófocles
Editora: Iluminuras
Tradutor: Flávio Ribeiro de Oliveira
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