sexta-feira, 8 de junho de 2007

Diego de Silva Velázquez: poeta e poesia na pintura

Paulo Martins

(Texto publicado originariamente no extinto Caderno de Sábado do Jornal da Tarde em 26/06/99)

"Oh não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada"
Gregório de Matos

Os gregos antigos utilizavam o verbo poeîn para designar quaisquer atividades de manufatura e produção, assim sua primeira acepção aproxima a elaboração de um móvel qualquer, por exemplo, uma cadeira à de um objeto intelectual, texto, pintura. Contudo, essas atividades de elaboração não se restringiam ao universo mundano, físico, limitado por excelência; os próprios deuses eram agentes desse mesmo verbo quando nas palavras de Hesíodo (Cf. Os trabalhos e os dias v.110) criaram as cinco raças de homens (a de ouro, a de prata, a de bronze, a de heróis e a de ferro). Poder-se-ia inferir, portanto, que homens são o resultado da ação de poeîn dos deuses, ou seja, sua poesia. Apropriando-se desse verbo tanto no que diz respeito à ação humana como naquilo que é resultado da ação divina, podemos afirmar seguramente que Diego de Silva Velázquez, pintor sevilhano, nascido em 6 de junho de 1599 e morto em 6 de agosto de 1660, é poeta e poesia.
Velázquez é poeta. Esta assertiva, naturalmente, exclui qualquer possibilidade de atribuir-lhe certo gênio, qualidade capaz de produzir inexplicavelmente obra que, via de regra, seria ícone de inspiração divina, e logo, apartada de um programa sistemático de produção humano, essencialmente, humano. Nesse sentido, o pintor sevilhano iconiza o caráter de uma época cuja característica central é protocolar ações inventivas capazes de produzir certo efeito, muita vez, enigmático, contudo, absolutamente previsíveis para aqueles que observam os objetos de perto, tendo em mãos o sistema normatizador que regula a produção artística.
Talvez, esta característica afaste, hoje em dia, objeto produzido da recepção, isto é, poucos são aptos a observar a obra pictórica de Velázquez, por completa carência de conhecimento das regras que nortearam a sua produção. Seríamos ineptos (non aptum) e néscios (non scio) diante do engenho (ingenium) do pintor. Este fato provoca duas possibilidades de atitude. A primeira minimiza a importância da obra e a segunda proporciona uma atenção redobrada na sua observação.
Obviamente, não seria interessante desconsiderar seu valor, mesmo porque, isto é impensável. Resta-nos, pois, desvelar os enigmas de suas composições para, talvez, nos aproximarmos da recepção apta do século XVII e, assim, aferirmos toda a grandiosidade desse poeta-pintor que mais do que qualquer outro representa o que há de mais belo no dito século barroco.
O enigmatismo barroco é algo formidável, porquanto descortina uma intencionalidade não imediata diante do processo inventivo. O que se vê pode não ser o que se deseja figurar imediatamente. No entanto aquilo que se pode dizer de imediato também serve à proposta inicial de produção. Assim, há no barroco um acúmulo de mensagem e a recepção pode simplesmente observar sua superfície óbvia, limitada e néscia, como também adicionar a esta outra subliminar, enigmática e complexa. Há nesse caso uma adição de possibilidades de leitura e cabe ao receptor acioná-las de forma simultânea. Dois produtos exemplares dessa concepção em Velázquez são Las Hilandreras (1644-48, Museu do Prado, Madri, Inv.: 1173) e Las meninas (1656-57, Museu do Prado, Madri, Inv.: 1174).

Las Hilandreras, que superficialmente pode refletir apenas a intencionalidade barroca de figurar uma preocupação manufatureira e massiva da cultura como bem explicitou Maravall (A cultura do barroco, p. 162) no rastro de Max Weber, indubitavelmente produz uma série de indagações pertinentes que determinam uma segunda visada não tão superficial e mais aguda. Isto sem falar, é claro, da observação formal e técnica das habilidades do pintor no que diz respeito ao movimento, à luz, ao claro-escuro, à profundidade e à sombra.
Imediatamente, o quadro figura uma oficina. Segundo Antonio Maravall esta obra revela-nos a mentalidade de época que aprecia um modo de produção industrial. Estaria o artista barroco preocupado com a representação de estratos da sociedade cujo modo de vida se distingue dos ilustres de vida cortesã, não é, pois, de outra forma que o mesmo Velázquez opera retratos como o de Juan de Pareja (1649-50, Metropolitan Museum of Arts, Nova Iorque, Inv.: 1971.86), seu assistente.
Contudo, parece pouco provável que apenas esta tenha sido a real intenção do poeta-pintor em questão, pois que são evidentes outros elementos figurados no quadro, a começar por seu nome efetivo A lenda de Aracne. O nome remete ao mito greco-latino que nos indica a história de Aracne, excelente tecelã lídia que aprendera com Palas Atena sua arte e que, por conta de sua soberba em querer rivalizar com a deusa, foi punida sendo transformada em aranha (cf. Ovídio, Metamorfoses, vv. VI, 1-145). Pois bem, a tela indica três planos distintos que interagem. Um primeiro no qual está figurada uma oficina de fiação onde cinco mulheres empenham-se em seu trabalho. Duas delas, metáforas do mito: na roca, Palas Atena; a trabalhar com os fios, Aracne. Velázquez adapta o mito à realidade do século 17 (como nas telas Menipo, 1639-40 e Esopo, 1639-41). Num segundo plano, observa-se um vestíbulo, ao fundo da tela, ricamente iluminado, no qual são apresentadas mais três mulheres, duas das quais observando o terceiro plano e uma o primeiro e, consequentemente, a nós, espectadores. Estas mulheres como que estabelecem liame entre nós e o terceiro plano, entre realidade figurada metaforicamente, o mito em si e nós, pois que vale dizer que no terceiro e último plano, encontra-se uma tapeçaria – O rapto de Europa – que oferece contribuição no âmbito do mito, relaciona-se com Aracne – é uma de suas tapeçarias – ; de outro lado, composicionalmente, é alusão, é intertexto, é emulação, afinal, seu autor é Ticiano (considerado por Velázquez um dos maiores pintores).
Pode-se falar muito mais desse quadro, mas, efetivamente, ele nos fornece algo essencial para se ler Velázquez, ou seja, ele mostra que uma mera observação depurada pelo gosto não é suficiente para se acatar a produção desse poeta-pintor. O mesmo fato pode ser aferido em seu principal e mais famoso quadro: Las Meninas.
De chofre, Las Meninas não parece ser algo excepcional. Uma figuração da vida cortesã, da família real, cuja centralidade está na infanta Margarida e suas aias. No entanto, observa-se, também, a representação do avesso de um quadro e seu pintor – um auto retrato de Velázquez – a observar, quem sabe, aquele que está sendo pintado. Certamente, este não é a infanta, pois ela já está representada em Las Meninas, no nível primeiro de observação, este é o seu quadro. Quem seria então? Nós a vê-lo? Talvez. Ou simplesmente, aquele que no ato da representação observa, como nós, a cena. Se assim é, este quadro é singular, pois representa a todos indistintamente , bastando para tal, estar-se a frente dele. Isto é, Las meninas é o quadro de quem não está no quadro, pelo menos, a princípio.
Contudo, o observador mais atento verificará a presença espelho no fundo da câmara e nele perceberá a presença de uma imagem do rei Felipe IV e da rainha Mariana. Seriam eles, portanto, os observadores da cena, aqueles que ocupariam originariamente o lugar a nós reservado na observação. Assim, simultaneamente, são observadores, espectro e figuração em curso, imagem enigmática que está sendo elaborada pelo pintor dentro do quadro. Nesse sentido, Michel Foucault (cf. As Palavras e as coisas) em brilhante ensaio sobre esta tela informa: “Talvez haja, neste quadro de Velázquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo - que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.”
O espelho, aliás, sempre se constituiu como elemento cativante da representação, mesmo que comecemos com a proposição platônica em A República, livro X, onde é proposta imitação de todas as coisas do mundo a partir dele. Seria ele o artefato essencialmente mimético capaz de reproduzir com exatidão tudo que há. Dessa forma, os eikones produzidos, se não satisfazem a Platão – não são verdadeiros –seguramente, são fundamentais aristotelicamente. Por outro lado, a partir do século XV, amiúde, encontra-se a utilização deste artefato nas figurações. Observe-se a famosa tela de Jan van Eyck, O retrato dos esposos Arnolfini de 1434 (National Gallery, Londres).





Velázquez já se utilizara do espelho antes de Las Meninas, pelo menos duas vezes: Crista en Casa de Marta y Maria (The Trustees of the National Gallery, Londres, Inv.: 1375) e A Vênus do espelho (The Trustees of the National Gallery, Londres, Inv.: 2057), muito embora, em nenhuma destas duas obras se verifique a agudeza e engenho como no caso já explicitado.
Mesmo assim, é notável no caso do primeiro exemplo (Crista en Casa de Marta y Maria) o contrafluxo visual imposto pela tela. Os olhares de Maria e Marta nos capturam de forma avassaladora, tem-se a impressão de sermos o alvo da atenção iconizada, porém, na realidade o alvo é Cristo que para nós, simples mortais, não passa de uma imagem, um ícone da perspicácia do pintor-poeta. Mais uma vez, Velázquez nos constrange, porquanto, nos coloca como observadores ideais da cena. Em Las meninas como reis e agora como o próprio filho de Deus.
Segundo Maravall (op.cit. p. 316-7), esta forma enigmática de representar o mundo liga-se, fundamentalmente, à noção de que é necessário provar às pessoas da época que tudo é regido pelo protocolo, logo tudo que se lhes aponta é ilusório, regido pelo saber e pela prudência. "Por isso são tão importantes as técnicas empregadas para sublinhar a condição aparente e ilusória do mundo empírico. Compreende-se o grande desenvolvimento que elas adquirem e seu papel decisivo em todas as formas de comunicação com um público. Na arte, os efeitismos aos quais se recorre para se produzir um certo grau de indeterminação acerca de onde acaba o real e começa o ilusório correspondem ao delineamento que acabamos de fazer. Entre os efeitos desse tipo – para explicitar o que queremos dizer – citaríamos como exemplos alguns quadros fundamentais de Velázquez, tais como Las Meninas ou Crista en Casa de Marta y Maria. Observemos que agora não se trata do ingênuo virtuosismo de copiar algo com realismo tal que nos leve a acreditar que é coisa real e viva o que é apenas imagem pintada. O ensaio velazquiano é muito mais complexo: trata-se de multiplicar uma imagem dentro de outras, tão funcionalmente articuladas que chegam a produzir alguma incerteza sobre o momento no qual, nesse jogo de imagens, se transfere do representado para o real."
Uma outra questão que nos intriga em Velázquez é a aproximação entre dois tipos antagônicos de composição. Uma pública, até certa medida, idealizada e outra privada, apensa à realidade mais sensível. Tal dicotomia torna-se absolutamente visível e óbvia, quando observamos, lado a lado, sua dedicação na representação não só dos membros da casa real de Espanha (são inúmeras as telas), como também de outros insignes nomes do século 17 como no Retrato do Papa Inocêncio X em 1650 (Galleria Doria-Pamphili, Roma) e de personalidades vulgares da vida cotidiana, mormente, os que apresentam certas anomalias anatômicas como o Retrato do bufão Juan Calabazas entre 1637-39 (Museu do Prado, Madri, Inv: 1205) ou o Retrato do anão Francisco Lezcano entre 1643-45 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1204).
Estas antíteses também podem ser provocadas pela presença do idealizado e do vulgar simultaneamente. E ambas são surpreendentes. Nesse sentido, as célebres telas: Baco entre 1628 e 1629 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1170) e A forja de Vulcano em 1630 (Museu do Prado, Madri, Inv.: 1171); sem falarmos, naturalmente, na presença da figura megalocéfala figurada em Las meninas.
No caso das anomalias, segundo José López-Rey (cf. Velázquez - Obra Completa, p. 129-30), um dos maiores especialistas em Velázquez, estas estariam a serviço da figuração da natureza humana e seus desvirtuamentos. Além disso, Vale dizer que estas pessoas tinham uma posição no mundo cortês, serviam à quebra do tédio, do fastio que o mundo das aparências, regido pelos protocolos, proporcionava. Isto é, estas imagens são mirabilia, que, retoricamente, atendem a esta situação de quebra do taedium.
A simultaneidade de imagens vulgares e ideais poderiam atender à preocupação barroca das ruínas que indubitavelmente se associam à fugacidade da vida, ou seja, ao propor Baco ao lado de bêbados, Velázquez proporia análogos distantes, onde o primeiro representaria a perenidade - é um deus - e os demais aquilo que há de mais fugaz, o humano. Não é de outra forma que se nos apresenta a megalocéfala de Las meninas em contraponto à idealidade real da infanta Margarida e seus pais espectrais. Ou mesmo, em A forja de Vulcano, onde percebe-se a mesma atenção. "Nelas pretende encontrar o testemunho de um tempo, respondendo à incipiente consciência histórica que procura abrir caminho. (...) Mas as ruínas, além do mais, são um material muito adequado para estudar a estrutura da obra humana e, portanto, a condição da vida do homem que a criou, sem poder livrá-la de sua própria fugacidade. São um patente testemunho da luta entre a natureza perene, embora cambiante, e o homem perecedouro e dotado da capacidade de fazer mudar as coisas. (...) O tempo, portanto, é o puro processo dinâmico das transformações.(...)As imagens saturnais com que o século XVII o simboliza correspondem a essa consciência do fluxo ininterrupto de uma transformação universal, aniquiladora das coisas, mas também fonte de verdade e de fecundidade", escreve Maravall (op.cit. p. 301-2).
Tais observações acerca de Velázquez indicam apenas algumas características que não devem ser deixadas de lado ao tomarmos contato com a esplendorosa obra desse poeta-pintor sevilhano do século 17 e comprovam que, se uma de suas preocupações era figurar a fugacidade da vida, conseguiu apenas ser a representação real daquilo que há de mais perene, podendo inclusive citar o poeta latino Horácio: "exigi monumentum aere perenius" (Erigi um monumento mais perene que o bronze).

Um comentário:

Yan disse...

Creio que entra em erro quando escreve "Velázquez já se utilizara do espelho antes de Las Meninas, pelo menos duas vezes: Crista en Casa de Marta y Maria." Neste quadro não existe nenhum espelho. É uma abertura na parede.
Cumprimentos,
António