sexta-feira, 8 de junho de 2007

Horácio das Odes

Paulo Martins


Quinto Horácio Flaco nasceu em 65 a.C. em Venúsia, atual Venosa na região da Basilicata, e, escravo liberto, somou fileiras com Bruto, assassino de Júlio César. Mais tarde, tendo sido anistiado durante o segundo triunvirato, passou a fazer parte de um grupo de poetas e escritores financiados pelo lugar-tenente de Augusto, Mecenas. É desse período que nos resta sua produção poética.

Se a literatura clássica antiga deve sua importância a alguém – e seguramente deve – Horácio coloca-se entre os primeiros. Poeta de copiosa obra, singular e diferenciada, operou diversos gêneros poéticos dos quais talvez apenas a poesia épica tenha ficado fora de seu alcance. Dessa maneira, suas odes (4 livros), seus epodos (1 livro), suas sátiras (2 livros) e epistolas (2 livros, afora a Arte Poética) avolumam-se, produzindo um preciso retrato de seu tempo, a época de Augusto, além de representarem fielmente um repertório de formas e modos poéticos que até hoje encontram eco na vida literária. Entretanto, talvez, de todos os gêneros poéticos trabalhados por ele, suas odes sejam as peças literárias mais significativas, uma vez que a rapidez, suavidade, limpeza e, mais precisamente, a concisão dos versos, nesses textos, sem falarmos em seus conteúdos, despertem espanto ao crítico moderno.

Quando falamos “ode”, estamos tratando de um gênero poético, cuja origem remonta à Grécia arcaica e que possuía certa unidade regular métrica e estrófica, invarialvemente acompanhada musicalmente seja pelo aulós - um tipo de instrumento de sopro - seja pela lira – uma espécie de instrumento de corda - e que, ainda, do ponto de vista de seu tom, tratava de assuntos cotidianos de forma elevada e sublime, a despeito de, na maioria das vezes, tratar de matéria humana e, não necessariamente, divina.

No entanto, há que se lembrar que, na época de Horácio, essas características da ode já haviam se moldado a um novo tipo de sociedade em que a escrita era supervalorizada e, portanto, o virtuosismo da performance, da actio (ação) já cedera lugar ao da elocução. A despeito da citação de lugares comuns e da emulação com autores gregos como Arquíloco de Paros (Discutindo Literatura, 11) e Alceu e, ainda, do reconhecimento de ser sua poesia devedora aos modos gregos de composição, afinal ele mesmo diz em uma de suas Sátiras: “Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit agresti Latio” (A Grécia capturada tomou o ferro vencedor e trouxe ao Lácio agreste as artes - Sátira, 2, 1), Horácio é responsável pela consolidação da tradição literária ocidental em suas bases clássicas. Isto é, em que se pese a importância da literatura grega, aquela que se produz em Roma, no Lácio é a que efetivamente dita modelos na literatura européia moderna.

Um exemplo preciso do virtuosismo de Horácio é a quinta ode do primeiro livro, chamada Ode à Pyrra (ad Pyrram) que propomos a seguir numa excelente tradução de Nelson Ascher:

Que jovem grácil entre rosas
urge-te ungido de perfumes,
Pyrra, em teu antro?
Pra quem singelos ornas

louros cabelos? Ele a fé
maldirá logo e instáveis deuses,
sofrendo, inábil,
mar bravo e negro vento,

pois áurea frui-te ingênuo como
se sempre livre, sempre amável
e ignora as auras
falazes. Pobres desses

que, intacta, ofuscas. Sacro muro
por painel votivo atesta
que alcei molhada
a veste ao deus do mar.

As quatro estrofes dessa pequena ode tratam sucinta e rapidamente de um caso amoroso, mais precisamente de um triângulo amoroso: a mulher Pyrra (segunda pessoa) , um jovem homem (terceira pessoa) e o eu lírico (primeira pessoa), que insta Pyrra acerca de seu novo amor, logo na segunda estrofe o desenlace é proposto, pois externa que ele sofrerá a impossibilidade do desejo amoroso, maldizendo a fé, os deuses e as potências naturais, mar e vento. Afinal é característica de Pyrra não se entregar facilmente e, ainda, são incautos os homens que se interessam por ela por desconhecerem suas falácias, imaginando ela estar sempre livre e amável. A última estrofe finalmente indica que o próprio eu lírico é testemunha dos descasos de Pyrra uma vez que já entregou ao deus do mar em sinal de prece sua veste molhada, seja de suas lágrimas pelo o amor não correspondido, seja como resultado do ato amoroso que nunca mais se repetiu. Esta ode talvez seja o melhor exemplo daquilo a que se convencionou chamar de poética Alexandrina, pois que está assentada em pelo menos duas características fundamentais desta: o “leptós” – aquilo que é fino, diminuto – e o “malakós” – o que é suave.
A despeito de sistematicamente trabalhar em suas odes estas duas vertentes estilísticas, a saber, a suavidade e a fineza, o que proporcionaria uma suposta fragilidade do ponto de vista da composição literária se comparadas à grandiosidade e gravidade da épica virgiliana (Discutindo Literatura, 7), por exemplo, as odes, como um todo, são tratadas pelo próprio poeta como um monumento, algo grandioso sem precedentes na história literária de Roma. Tanto isto é verdade que Horácio na última ode do livro terceiro, que deveria ser a última nesse sub-gênero lírico, pois não pretendia mais à época produzir odes, sugere seu próprio inventário poético:

“Eregi obra mais perene que bronze,
Mais alta que pirâmides reais para
Que nem chuva edaz nem Áquilo colérico
Destruir possam ou inumeráveis séries
De anos ou fuga dos tempos. De todo não
Morrerei e mor parte de mim à Libitina
Sobreviverá, sempre e em todo lugar, novo
Renascerei por louvor até que o Pontífice
Com tácita virgem Capitólio escale.
Conhecido, onde Áufido violento ruge
E onde Dauno pobre reinou, n’águas, sobre
Campesinos, serei. Eu, de origem humilde,
O primeiro que trouxe canções eólicas
Ao metro itálico. Toma a grandeza por
Mérito obtida e cinge-me a cabeça,
Melpómene, desejando, com délfico louro.”
(tradução de Paulo Martins).

Vale ressaltar nesta ode a consciência da perenidade da obra de arte e sua grandeza, apesar de não estar produzindo um texto elevado aristotelicamente falando, pois não escreve uma épica nem tampouco uma tragédia e, antes, opera a lírica. Assim, mesmo sendo este gênero dedicado à leveza e à suavidade, ele é capaz de ser reconhecido como algo representativo de uma dimensão humana extremamente valorizada pela sociedade romana.

Em contrapartida à perenidade da poesia, a fugacidade da vida é outro elemento constante nas odes de Horácio. Assim, se de um lado aquilo que escreve é mais duradouro do que o bronze por sua altiva importância comparável à pirâmide de Qeops, e daí, ser lembrado o poeta até a eternidade, sempre novo sendo reconhecido, ultrapassando em existência os ritos ancestrais e, hiperbolicamente, superando a própria natureza do tempo, do vento e das águas; de outro lado, reconhece as limitações do homem natural, limitado por excelência, cujo fim é sempre o pó e a ruína. Isto é exatamente o que propõe a sétima ode do livro quarto:

Dissolveram-se neves, já vergéis retornam
Aos campos e às árvores, comas;
Mudam vezes a terra e às margens tornam
Descendentes os regatos.
A Graça com Ninfas e com gêmeas irmãs
Ousa nua conduzir coros.
Vida eterna não esperes, ano e hora que rapta
Dia propício advertem.
Frios abrandam com Zéfiros, verão suplanta
Vera até que morto esteja;
Logo outono pomífero trará frutos e
Reviverá inverno sem pomos.
Luas céleres recuperam celestes danos
Quando, então, nós descemos
Onde estão Enéias pai, rico Tulo, Anco
E somos pó e sombra apenas.
Quem sabe se súperos somam ao todo,
De amanhãs um intervalo?
O que terás dado com ânimo amigo,
De ávido herdeiro fugirá.
Quando tiveres morrido e Minos tiver
Feito de ti juízo notável,
Nem estirpe, Torquato, nem fluência, nem
Piedade te darão vida;
Pois nem Diana livra de atroz inferno
Seu casto Hipólito,
Nem Teseu é forte para romper oblívios
Vínculos do caro Pirítoo.
(tradução de Paulo Martins)

Confundem-se nesta ode dois tipos de rapidez. A primeira no âmbito da elocução, os versos extremamente ligeiros e, em certa medida, simples e doces são propostos em estrofes de dois versos, dísticos, que imprimem agilidade ao poema. A segunda, por sua vez, no âmbito do pensamento, do conteúdo, por assim dizer, reflete a passagem do tempo, a fugacidade desta convenção humana, lá medida pela passagem das estações. Ainda neste âmbito observa-se a transposição do tempo natural e humano para o tempo mítico, isto é, quando as estações se nos passam, estamos entregues ao mundo do mito, do em si. E lá conviveremos com personagens da primeva história de Roma: Anco, Tulo e Enéias e teremos, sim, condição de avaliar o que somos “pó e sombra”. É mister observar que, neste rápido poema, o tempo humano e o tempo da eternidade e/ou mítico se misturam e, nesse sentido, somos regidos pela piedade dos deuses que poderão nos dar algo mais: “Quem sabe se os súperos somam ao todo / de amanhãs um intervalo?”, contudo isto é uma incógnita não só para os mortais como também Hipólito ou Pirítoo.

A incerteza com a existência, a fugacidade da vida - pedra de toque destas odes - produziu como efeito um lugar comum da literatura ocidental, uma vez que nem os homens, tampouco os mitos são capazes de saber exatamente a sua extensão. A este “tópos” da literatura deu-se o nome de carpe diem, isto é, colha o dia. Assim, se não sabemos quanto tempo temos, gozemos a vida ao máximo. A origem desse lugar comum está na ode onze do primeiro livro:

Não procures – ímpio é saber – que fim
deuses te darão e a mim também, Leucônoe,
nem consultes babilônios números,
tanto melhor será tudo sofrer! ou
porque Jove deu vários invernos
ou último que já fere o Tirreno em
opostas rochas. Sê sábia, vinhos
filtra e suprime em breve espaço longa
espera. Ao falar, vida foge ínvida:
Colhe o dia e pouco crê no futuro.
(tradução de Paulo Martins)

A interlocutora do eu lírico, Leucônoe, é advertida para que não procure saber o tamanho de sua própria existência, antes deve ela tudo suportar tendo sido dado por Júpiter um dia apenas ou vários e, dessa forma, deve também buscar a verdadeira felicidade independentemente de qualquer coisa. Termina dizendo que a incredulidade nas coisas futuras é um sinônimo de sabedoria.

Na literatura de língua portuguesa, o autor que mais se aproximou de Horácio seguramente foi o heterônimo de Pessoa, Ricardo Reis. Todas as características elencadas para definir as odes do poeta romano podem ser facilmente encontradas nos poemas do modernista. Mais do que isto, pode-se dizer que Ricardo Reis alude sistematicamente Horácio, produzindo aquilo a que se convencionou chamar de intertextualidade como é o caso da ode 1, 38:

Da Pérsia, menino, adornos odeio;
Coroas com a tília atadas me cansam;
Não vás rebuscar a rosa em que partes
Tardia perdure.

Ao mirto simples não lavres lavores
Com zelo, peço: nem a ti que serves
Desdoura o mirto, nem a mim sob densa
Videira bebendo.
(tradução de João Angelo Oliva Neto)

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas

Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão Cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves,
E basta.
(Ricardo Reis)

5 comentários:

Anônimo disse...

rigado por disponibilizar tento conhecimento...
com seu estudo foi possivel que eu adiquerice conhecimento o suficiente para elaborar um trabalho escolar.
muito obrigado!...

Sandra Maria disse...

Oi Paulo....
Preciso saber, se possível, sobre a personagem Cynara, que aparece em versos do Horácio. Quem era, qual sua importância, e mais especificamente em qual verso/ode/poema, ele diz: "Non sum qualis eram bonae sub regno Cynarae" e por quê?

Abraços e aguardo notícias
sandramaria
samam49@hotmail.com

Unknown disse...

Oi Paulo, tudo bem?
Que bom vc estuda lingua latina!
Tem algum comentário ou ensaio sobre a Aurea Mediocritas?

abraços
Neya M
franca_ny@yahoo.com.br

Blog de: Ricardo disse...

Olá, Paulo!

Acabo de ver a excelente matéria sobre Horácio e não poderia deixar de registrar aqui minha admiração.

Num rápido passeio pelo Blog, vejo também a riqueza do material e o ótimo nível da pauta.

Agrada-me, ainda, observar que, em vários momentos, meu Blog tem percorrido trilhas parecidas com as do seu, razão por que estou adicionando-o entre os links que recomendo.

Parabéns
José Ricardo
http://www.fotoseletras.blogspot.com

Jéssica Carvalho disse...

Olá, Paulo!
Muito interessante seu blog, é de grande auxílio para os estudantes de letras. Agora mesmo tenho que fazer um ensaio sobre literatura latina, quero realizá-lo com base Care Diam.
Eu queria que vc postasse algo sobre isso, Odes de Horácio...